Capitulo III. A economia e a revolta contra a razão
1. A revolta contra a razão
Houve, ao longo da história, filósofos que não hesitaram em superestimar a capacidade da razão. Supunham que o homem fosse capaz de descobrir, pelo raciocínio, as causas originais dos eventos cósmicos ou os objetivos que a força criadora do universo, determinante de sua evolução, pretendia alcançar. Discorreram sobre o “absoluto” com a tranquilidade de quem descreve o seu relógio de bolso. Não hesitaram em anunciar valores eternos e absolutos nem em estabelecer códigos morais que deveriam ser respeitados por todos os homens.
Houve também uma longa série de criadores de utopias. Imaginavam paraísos terrestres onde só prevaleceria a razão pura. Não percebiam que aquilo que consideravam como razões finais ou como verdades manifestas eram tão somente fantasia de suas mentes. Consideravam-se infalíveis e, com toda tranquilidade, defendiam a intolerância e o uso da violência para oprimir dissidentes e heréticos. Preferiam a implantação de um regime ditatorial, ou para si mesmo, ou para aqueles que se dispusesse a executar fielmente os seus planos. Acreditavam que essa era a única forma de salvação para uma humanidade sofredora.
Houve Hegel. Certamente foi um pensador profundo; suas obras são um rico acervo de ideias estimulantes. Não obstante, escreveu sempre dominado pela ilusão de que Geist, o Absoluto, revelava-se por seu intermédio. Não havia nada no universo que não estivesse ao alcance da sabedoria de Hegel. Pena que sua linguagem fosse tão ambígua, a ponto de ensejar múltiplas interpretações. Os hegelianos de direita entenderam-na como um endosso ao sistema prussiano de governo autocrático, bem como aos dogmas da igreja prussiana. Os hegelianos de esquerda extraíram de suas teorias o ateísmo, o radicalismo revolucionário mais intransigente e doutrinas anarquistas.
Houve Augusto Comte. Pensava conhecer o futuro que estava reservado para a humanidade. E, portanto, considerava-se o supremo legislador. Pretendia proibir certos estudos astronômicos, por considerá-los inúteis. Planejava substituir o cristianismo por uma nova religião e chegou a escolher uma mulher para ocupar o lugar da Virgem. Comte pode ser desculpado, já que era louco, no sentido mesmo com que a patologia emprega este vocábulo. Mas como desculpar os seus seguidores?
Muitos outros exemplos deste tipo poderiam ser enumerados. Mas não podem ser usados como argumentos contra a razão, o racionalismo ou a racionalidade. Tais desvarios não têm nada a ver com o problema essencial que consiste em procurar saber se a razão é ou não o instrumento adequado e único de que dispõe o homem para obter tanto conhecimento quanto lhe seja possível. Aqueles que, honesta e conscienciosamente, procuram a verdade jamais pretenderam que a razão e a pesquisa científica possam responder a todas as questões.
Sempre tiveram plena consciência das limitações da mente humana. Não podem ser responsabilizados pela tosca filosofia de um Haeckel, nem pelo simplismo de diversas escolas materialistas.
Os filósofos racionalistas sempre estiveram preocupados em mostrar tanto os limites da teoria apriorística quanto os da investigação empírica.[1] David Hume, o fundador da economia política inglesa, os utilitaristas e os pragmatistas americanos não podem ser acusados de haver superestimado a capacidade do homem para alcançar a verdade. Seria mais justificável acusar a filosofia dos últimos duzentos anos de um excesso de agnosticismo e de cepticismo do que de um excesso de confiança no que poderia ser alcançado pela mente humana.
A revolta contra a razão, atitude mental típica de nossa época, não se origina na falta de modéstia, cautela ou autocrítica por parte dos filósofos. Tampouco pode ser atribuída a falhas na evolução da moderna ciência natural. Ninguém pode ignorar as fantásticas conquistas da tecnologia e da terapêutica. É inútil atacar a ciência moderna, seja do ponto de vista do intuicionismo e do misticismo, seja de qualquer outro ângulo. A revolta contra a razão foi dirigida para outro alvo. Não tinham em mira as ciências naturais, e sim a economia. O ataque às ciências naturais foi uma consequência lógica e natural do ataque à economia. Seria inconcebível impugnar o uso da razão em um determinado campo do conhecimento, sem impugná-lo também nos demais.
Esta insólita reação teve sua origem na situação existente em meados do século XIX.
Os economistas já tinham, naquela época, demonstrado cabalmente que as utopias socialistas não passavam de ilusões fantasiosas. Entretanto, as deficiências da ciência econômica clássica os impediram de compreender por que qualquer plano socialista é irrealizável; mas eles já sabiam o suficiente para demonstrar a futilidade dos programas socialistas. As ideias comunistas já estavam derrotadas. Os socialistas não tinham como responder às devastadoras críticas que lhes eram feitas, nem como aduzir qualquer argumento novo em seu favor.Parecia que o socialismo estava liquidado, e para sempre.
Só havia um caminho para evitar a derrocada: atacar a lógica e a razão e substituir o raciocínio pela intuição mística. Estava reservado a Karl Marx o papel histórico de propor esta solução. Com base no misticismo dialético de Hegel, Marx, tranquilamente, arrogou-se a capacidade de predizer o futuro. Hegel pretendia saber que Geist, ao criar o universo, desejava instaurar a monarquia de Frederico Guilherme III. Mas Marx estava mais bem informado sobre os planos de Geist: havia descoberto que a evolução histórica nos conduziria, inevitavelmente, ao estabelecimento do milênio socialista. O socialismo estava fadado a acontecer “com a inexorabilidade de uma lei da natureza”. E como, segundo Hegel, cada fase ulterior da história é melhor e superior do que a que a antecedeu, não cabia nenhuma dúvida de que o socialismo, a etapa final da evolução da humanidade, seria perfeito sob todos os aspectos. Assim sendo, resultava inútil a discussão dos detalhes do funcionamento de uma comunidade socialista. A história, no devido tempo, disporia todas as coisas da melhor maneira; e para isso não necessitava da ajuda dos homens, meros seres mortais.
Mas havia ainda um obstáculo principal a superar: a crítica devastadora dos economistas. Marx, entretanto, já tinha uma solução para superar este obstáculo. A razão humana, afirmava ele, por sua própria natureza, não tem condições de descobrir a verdade. A estrutura lógica da mente varia segundo as várias classes sociais. Não existe algo que se possa considerar como uma lógica universalmente válida. A mente humana só pode produzir “ideologias”, ou seja, segundo a terminologia marxista, um conjunto de ideias destinadas a dissimular os interesses egoístas da classe social de quem as formula. Portanto, a mentalidade “burguesa” dos economistas é absolutamente incapaz de produzir algo que não seja uma apologia ao capitalismo. Os ensinamentos da ciência “burguesa”, que são uma consequência da lógica “burguesa”, não têm nenhuma validade para o proletariado, a nova classe social que abolirá todas as classes e transformará a Terra num paraíso.
Mas, evidentemente, a lógica da classe proletária não é apenas a lógica de uma classe. “As ideias que a lógica proletária engendra não são ideias partidárias, mas emanações da lógica mais pura e simples”.[2] Mas ainda, em virtude de algum privilégio especial, a lógica de certos burgueses não estava manchada pelo pecado original de sua condição burguesa. Karl Marx, o filho de um próspero advogado, casado com a filha de um nobre prussiano, e seu colaborador Frederick Engels, um rico fabricante de tecidos, se consideravam acima de suas próprias leis e, apesar da origem burguesa, se julgavam dotados da capacidade de descobrir a verdade absoluta.
Compete à história explicar as condições que fizeram com que essa doutrina tão primária se tornasse tão popular. A tarefa da economia é outra. Compete-lhe analisar o polilogismo marxista, bem como todos os demais tipos de polilogismo formados segundo o mesmo modelo, e demonstrar suas falácias e contradições.
2. O exame lógico do polilogismo
O polilogismo marxista assegura que a estrutura lógica da mente é diferente nas várias classes sociais. O polilogismo racial difere do polilogismo marxista apenas na medida em que atribui uma estrutura lógica peculiar a cada raça, e não a cada classe. Assim, todos os membros de uma determinada raça, independentemente da classe a que pertencem, são dotados da mesma estrutura lógica.
Não há necessidade de fazer, agora, uma análise crítica de como essas doutrinas entendem os conceitossociais, classe e raça. Não é necessário perguntar aos marxistas como e quando um proletário que ascende à condição burguesa transforma sua mente proletária em uma mente burguesa. Tampouco interessa solicitar aos racistas que explique qual a lógica peculiar a alguém cuja estirpe racial não seja pura. Existem objeções bem mais sérias a serem levantadas. Nem os marxistas, nem os racistas, nem os defensores de qualquer outra forma de polilogismo foram além de afirmar que a estrutura lógica da mente é diferente para as várias classes, raças ou nações. Nunca tentaram demonstrar precisamente em que aspectos a lógica dos proletários difere da lógica dos burgueses, ou de que modo a lógica dos arianos difere da lógica dos não arianos, ou a lógica dos alemães, da lógica dos franceses ou dos ingleses. Aos olhos dos marxistas, a teoria dos custos comparativos elaborada por Ricardo é falsa, porque seu autor era burguês. Os racistas alemães condenam a mesma teoria, porque Ricardo era judeu; e os nacionalistas alemães, porque ele era inglês. Alguns professores alemães recorreram aos três argumentos para invalidar as teorias ricardianas. Entretanto, não basta rejeitar uma teoria inteira meramente em função da origem do seu autor. O que se espera é que, primeiro, seja apresentado um sistema lógico diferente do utilizado pelo autor criticado para, em seguida, examinar ponto por ponto da teoria contestada e mostrar onde, em seu raciocínio, são feitas inferências que, embora corretas do ponto de vista da lógica do autor, sejam desprovidas de validade segundo o ponto de vista da lógica proletária, ariana ou alemã. Finalmente, deveria ser explicado o tipo de conclusões a que chegaríamos pela substituição de inferências defeituosas por inferências corretas, segundo a lógica adotada pelo crítico. Como todos sabem esta tentativa nunca foi e nunca poderá ser feita por ninguém.
Além disso, é fato inegável que existem divergências, quanto a questões essenciais, entre pessoas que pertencem à mesma classe, raça ou nação. Infelizmente existem alemães — diziam os nazistas — que não pensam como um verdadeiro alemão. Mas se um alemão nem sempre pensa como deveria, e, ao contrário, pensa segundo uma lógica não germânica, a quem caberá decidir qual forma de pensar é verdadeiramente alemã e qual não é?
O já falecido professor Franz Oppenheimer assegurava que “o indivíduo erra com frequência, por perseguir seus interesses; uma classe, no geral, não erra nunca”.[3] Esta afirmativa sugere a infalibidade do voto majoritário. Entretanto, os nazistas rejeitavam o critério de decisão pelo voto majoritário como sendo manifestamente antigermânico. Os marxistas fingem aceitar o princípio democrático do voto majoritário.[4]Mas, na hora da verdade, são a favor de que uma minoria governe, desde que esta minoria pertença ao seu próprio partido. Lembremo-nos de como Lenin dissolveu, à força, a Assembleia Constituinte — eleita sob os auspícios de seu próprio governo, sob sufrágio universal de homens e mulheres — porque apenas um quinto de seus membros eram bolchevistas!
Um defensor do polilogismo, para ser consistente, terá de sustentar que certas ideias são corretas, porque seu autor pertence a uma determinada classe, nação ou raça. Mas a consistência lógica não é uma de suas virtudes. Por isso, os marxistas não hesitam em qualificar como “pensador proletário” qualquer pessoa que defenda suas doutrinas. Todos os outros são taxados de inimigos da classe e de traidores da sociedade. Hitler, ao menos, era mais franco ao afirmar que o único método disponível para distinguir os verdadeiros alemães dos “mestiços” e dos alienígenas consistia em enunciar as características de um alemão genuíno e verificar quem nelas se enquadrava.[5] Ou seja, um homem moreno, cujas características físicas de modo algum se enquadravam no protótipo da raça superior dos louros arianos, se arrogou ao dom de descobrir a única doutrina adequada à mente alemã e de não aceitar como alemães todos aqueles que não aceitassem essa doutrina, quaisquer que fossem as suas características físicas. Não é necessário acrescentar mais nada para provar a insanidade dessa teoria.
3. O exame praxeológico do polilogismo
Uma ideologia, no sentido com que os marxistas empregam o termo, é uma doutrina que, embora errada do ponto de vista da autêntica lógica proletária, é conveniente aos interesses egoístas da classe que a formulou. Assim sendo, uma ideologia é sempre falsa, mas atende aos interesses da classe que a formulou, precisamente por causa de sua falsidade. Muitos marxistas acreditam ter provado este princípio ao alegarem que as pessoas não almejam o conhecimento em si. O que interessa ao cientista é ser bem-sucedido. As teorias são formuladas, invariavelmente, objetivando-se sua aplicação prática. A ciência pura ou a desinteressada busca da verdade é algo que, na realidade, não existe.
Só para argumentar, admitamos que todo esforço para alcançar a verdade seja motivado por considerações sobre sua aplicação prática para atingir determinado objetivo. Ainda assim, isto não explica por que uma teoria “ideológica” — isto é, falsa — seria mais proveitosa do que uma teoria correta. O fato de a aplicação prática de uma teoria produzir o resultado previsto é universalmente aceito como uma confirmação de sua validade. É um paradoxo afirmar que uma doutrina falsa possa ser mais útil do que uma doutrina correta.
Os homens usam armas de fogo. Para aprimorá-las, desenvolveu-se a balística. Mas é claro que, precisamente porque desejavam uma maior eficácia, fosse para caçar animais, fosse para se matarem uns aos outros, procuraram desenvolver uma teoria balística correta. De nada serviria uma balística meramente “ideológica”.
Para os marxistas, não passa de uma “pretensão arrogante” o fato de os cientistas afirmarem ter na simples busca do conhecimento uma motivação suficiente para seu trabalho. Assim, afirmam que Maxwell chegou à sua teoria das ondas eletromagnéticas graças a interesses comerciais na implantação do telégrafo sem fio.[6]É irrelevante, neste nosso exame da questão da ideologia, se isto é verdade ou não. O que importa é saber se o suposto interesse dos industriais do século XIX, que consideravam o telégrafo sem fio como “a pedra filosofal e o elixir da juventude”,[7] induziu Maxwell a formular uma teoria correta sobre as ondas eletromagnéticas ou se o induziu a formular uma superestrutura ideológica dos interesses egoístas da classe burguesa. Não há dúvida de que a pesquisa bacteriológica foi motivada não apenas pelo desejo de combater doenças contagiosas, mas também pelo desejo dos produtores de vinho e de queijo em melhorar seus métodos de produção. Mas o resultado obtido, certamente, não é “ideológico”, no sentido com que os marxistas empregam este termo.
O que levou Marx a formular sua doutrina sobre ideologias foi o desejo de solapar o prestígio da ciência econômica. Marx tinha plena consciência da sua incapacidade para refutar as objeções levantadas pelos economistas quanto à praticabilidade dos projetos visionários dos socialistas. Na verdade, estava tão fascinado pelas teorias dos economistas clássicos ingleses, que as considerava intocáveis. Ou Marx nunca chegou, a saber, das dúvidas que a teoria clássica de valor suscitava nas mentes mais judiciosas, ou, se chegou, a saber, não compreendeu suas transcendências. Suas ideias econômicas são pouco mais do que uma versão deturpada das teorias de Ricardo. Quando Jevons e Menger abriram uma nova era do pensamento econômico, a carreira de Marx como autor de textos sobre economia já tinha terminado; o primeiro volume de Das Kapital já havia sido publicado alguns anos antes. A única reação de Marx à teoria do valor marginal foi o adiamento da publicação dos subsequentes volumes de sua obra principal, que só vieram a ser publicados depois da sua morte.[8]
Ao desenvolver sua doutrina sobre ideologia, Marx tinha em vista a economia e a filosofia social do utilitarismo. Sua única intenção era destruir a reputação dos ensinamentos econômicos que não conseguia refutar por meio da lógica e do raciocínio. Deu à sua doutrina o caráter de lei universal, válida para todas as classes sociais em todos os tempos, porque, se sua aplicabilidade ficasse restrita a um único evento histórico, não poderia ser considerada como lei universal. Pelas mesmas razões não limitou a validade de sua doutrina ao pensamento econômico, estendendo-a a todos os ramos do conhecimento.
Segundo Marx, a economia burguesa prestou à burguesia um duplo serviço. Primeiro, na luta contra o feudalismo e o despotismo real e, depois, na luta contra a nascente classe proletária. A economia propiciava uma justificativa racional e moral para a exploração capitalista. Era se quisermos empregar um termo posterior a Marx, a racionalização das reivindicações dos capitalistas.[9] Foram os capitalistas, envergonhados de sua cobiça e das motivações mesquinhas de sua própria conduta, e desejosos de evitar a condenação por parte da sociedade, que encorajaram seus sicofantas, os economistas, a formular doutrinas que lhes reabilitassem perante a opinião pública.
Ora, recorrer ao conceito de racionalização proporciona apenas uma descrição psicológica dos motivos que impelem um homem ou um grupo de homens a formular um teorema ou mesmo toda uma teoria. Mas não nos informa nada sobre a validade ou nulidade da teoria em exame. Se for constatada a falsidade da teoria proposta, o conceito de racionalização serve apenas como uma interpretação psicológica das causas que levaram seus autores ao erro. Mas, se não conseguimos apontar falhas na teoria proposta, nenhum apelo ao conceito de racionalização pode anular sua validade. Se fosse verdade que os economistas não teriam outro intuito que não o de defender as injustas reivindicações dos capitalistas, ainda assim suas teorias poderiam ser bastante corretas. O único meio aceitável de refutar uma teoria é submetê-la ao exame da razão e substituí-la por outra teoria melhor. Ao lidar com o teorema de Pitágoras ou com a teoria dos custos comparativos, não estamos interessados na motivação psicológica que impeliu Pitágoras e Ricardo a formularem estes teoremas, embora isto possa ser importante para o historiador ou para o biógrafo. Para a ciência, a única questão relevante é saber se esses teoremas resistem a um exame lógico e racional. Os antecedentes sociais ou raciais de seus autores são irrelevantes do ponto de vista da ciência.
É verdade que as pessoas, quando querem justificar seus interesses particulares, procuram usar doutrinas que são mais ou menos aceitas pela opinião pública em geral. Mais ainda, são perfeitamente capazes de inventar e propagar doutrinas que possam servir aos seus próprios interesses. Mas isto não explica por que tais doutrinas, que favorecem os interesses de uma minoria em detrimento dos demais, são aceitas pela opinião pública em geral. Essas doutrinas “ideológicas” quer seja o produto de uma “falsa consciência” que força o homem a pensar inadvertidamente de uma maneira que convém aos interesses de sua classe, quer seja o produto de uma deliberada distorção da verdade, terão sempre que se defrontar com as ideologias formuladas pelas demais classes e superá-las. Surge então uma disputa entre ideologias conflitantes. Os marxistas explicam a vitória ou a derrota nesses conflitos como uma consequência do determinismo histórico. Geist, a fonte mítica de toda energia, segue um plano definido e predeterminado. Conduz a humanidade, etapa por etapa, até o estágio final representado pela bem-aventurança do socialismo. Cada etapa é o produto de certo estágio tecnológico; todas as demais características da época são a necessária superestrutura ideológica daquele estágio tecnológico. Geist vai forçando o homem a conceber, e a realizar, no devido tempo, a tecnologia adequada ao momento que está vivendo. Tudo o mais é consequência desse estágio tecnológico. O moinho manual tornou possível a sociedade feudal; a máquina a vapor, por seu turno, deu lugar ao capitalismo.[10] À vontade e a razão humanas desempenham apenas um papel secundário nessas mudanças. A inexorável evolução histórica obriga o homem — independentemente de sua vontade — a pensar e agir de acordo com os padrões correspondentes à sua época. Os homens se iludem ao acreditar que são livres para escolher entre várias ideias ou entre o que pensam ser certo e errado. Os homens em si não pensam; é o determinismo histórico que se manifesta através de seus pensamentos.
Isto é simplesmente uma doutrina mística, que se apoia apenas na dialética hegeliana: a propriedade privada capitalista é a primeira negação da propriedade privada individual; provoca, com a inexorabilidade de uma lei da natureza, a sua própria negação, qual seja, a propriedade pública dos meios de produção.[11] É claro que uma doutrina mística, baseada na intuição, não deixa de ser mística por se apoiar em outra doutrina igualmente mística. Este artifício, de forma alguma, explica por que um pensador tem que necessariamente formular ideologias que atendam aos interesses de sua classe. Admitamos, só para argumentar, que o homem formule doutrinas benéficas aos seus interesses. Mas, será que o interesse de um homem coincide sempre com o interesse de toda a sua classe? O próprio Marx teve de admitir que a organização do proletariado como classe e, consequentemente, como partido político, foi continuamente perturbada por conflitos entre os próprios trabalhadores.[12] É fato inegável que existem conflitos de interesses irreconciliáveis entre os trabalhadores que recebem salários obtidos pelos sindicatos e os trabalhadores que permanecem desempregados porque a obrigação de pagar os salários obtidos por pressão sindical impede que haja demanda para atender a toda a oferta de mão de obra. Também não se pode negar que os trabalhadores de países relativamente mais populosos e os de países menos populosos têm interesses nitidamente antagônicos em relação às leis de imigração. A declaração de que a substituição do capitalismo pelo socialismo é do interesse de todos os proletários não passa de afirmativa arbitrária de Marx e de outros socialistas. Não pode ser provada pela mera alegação de que ideia socialista é a emanação do pensamento proletário e, portanto, certamente benéfica aos interesses do proletariado.
Com base nas ideias de Sismondi, Frederick List, Marx e da Escola Historicista Alemã, foi elaborada, e teve grande aceitação, a seguinte interpretação acerca das vicissitudes do comércio exterior britânico: na segunda metade do século XVIII e na maior parte do século XIX, era conveniente aos interesses da burguesia inglesa uma política de livre comércio. Como consequências disso, os economistas ingleses elaboraram uma doutrina do livre comércio e os empresários organizaram um movimento popular que, finalmente, conseguiu abolir as tarifas protecionistas. Mais tarde, mudaram as condições: a burguesia inglesa, já não podendo suportar a competição dos produtos estrangeiros, passou a exigir tarifas protecionistas. Os economistas, então, elaboraram uma teoria protecionista para substituir a ideologia do livre comércio e a Inglaterra retornou ao protecionismo.
O primeiro erro dessa interpretação é considerar a “burguesia” como uma classe homogênea composta de membros cujos interesses são os mesmos. Um empresário está sempre premido pela necessidade de ajustar sua atividade empresarial e comercial às condições institucionais de seu país. Sua atuação como empresário ou como capitalista, em longo prazo, não é favorecida nem prejudicada pela existência ou não de tarifas. Quaisquer que sejam as condições institucionais ou de mercado, o empresário procurará produzir os produtos que lhe proporcionam maior lucro. O que pode prejudicar ou favorecer seus interesses, em curto prazo, são apenas as mudanças no cenário institucional. Mas estas mudanças não afetam da mesma maneira, nem com a mesma intensidade, todos os ramos de negócio ou todas as empresas. Uma medida que beneficia um setor ou uma empresa pode ser prejudicial a outros setores ou empresas. Quando são estabelecidos direitos alfandegários, apenas um reduzido número de itens pode interessar a cada empresário. E, para cada item, os interesses das diversas firmas e setores são geralmente antagônicos.
Um determinado setor ou empresa pode ser favorecido pelos privilégios concedidos pelo governo. Mas, se os mesmos privilégios são concedidos a todos os setores e empresas, todo empresário perde — não só como consumidor, mas também como comprador de matérias primas, produtos quase acabados, máquinas e equipamentos — de um lado, tanto quanto ganha de outro. O interesse egoísta de um indivíduo pode levá-lo a solicitar proteção para seu próprio setor ou empresa. Mas não pode motivá-lo a solicitar proteção generalizada para todos os setores ou empresas, se não estiver certo de que será mais protegido do que todas as outras atividades.
Os industriais ingleses, do ponto de vista dos interesses de sua classe, não estavam mais interessados do que os demais cidadãos ingleses na revogação das Corn Laws.[13] Os proprietários de terra se opunham à revogação dessas leis, porque uma diminuição nos preços dos produtos agrícolas reduziria o valor do aluguel da terra. Um interesse que seja comum a todos os industriais só pode ser concebido com base na já ultrapassada lei de ferro dos salários ou na não menos insustentável doutrina que estabelece serem os lucros o resultado da exploração dos trabalhadores.
Num mundo organizado com base na divisão do trabalho, qualquer mudança afeta, de alguma maneira, os interesses imediatos de muitos setores. Por isso, é sempre fácil rejeitar uma doutrina que proponha alterações nas condições existentes, acusando-a de ser um disfarce “ideológico” dos interesses de um determinado grupo. Este tipo de acusação tem sido a principal atitude de muitos escritores contemporâneos. Não foi Marx o primeiro a assim proceder; antes dele, outros já haviam adotado tal procedimento.
Neste sentido, cabe recordar as tentativas de alguns escritores do século XVIII de qualificar os credos religiosos como uma maneira de os sacerdotes iludirem fraudulentamente as pessoas, com o objetivo de aumentar o poder e a riqueza, tanto para si, como para seus aliados, os exploradores. Os marxistas endossaram esta afirmativa, ao qualificar a religião como “ópio das massas”.[14] Nunca ocorreu aos defensores dessas ideias que, onde existem interesses egoístas a favor, deve necessariamente haver também interesses egoístas contra. O fato de simplesmente proclamar que um evento favorece os interesses de uma determinada classe não pode ser aceito como explicação satisfatória para a realização desse evento. O que se faz necessário é procurar saber por que o resto da população, cujos interesses foram prejudicados, não conseguiu frustrar os esforços daqueles a quem tal evento favorecia.
Qualquer firma e qualquer ramo de negócio tem interesse em aumentar as vendas de seus produtos. Entretanto, em longo prazo, prevalece a tendência para equalizar o retorno das várias atividades produtoras. Se a demanda para os produtos de um determinado setor aumenta, fazendo crescer os seus lucros, novos capitais se deslocarão para esse setor e a competição provocada pelos novos investimentos fará diminuir os lucros. De forma alguma se pode afirmar que a venda de produtos nocivos é mais lucrativa do que a venda de produtos saudáveis. Se a produção de determinada mercadoria é considerada ilegal e aqueles que a produzem correm o risco de serem processados, multados ou presos, seus lucros deverão ser suficientemente altos para compensar os riscos incorridos. Este fato, entretanto, não altera a taxa média de retorno dos produtores da mercadoria em questão.
Os ricos, os proprietários das fábricas que já estão em operação, não têm um interesse específico na manutenção do mercado livre. Embora não desejem que suas fortunas sejam confiscadas ou expropriadas, são favoráveis a medidas que os protejam de novos competidores. Aqueles que defendem a livre iniciativa e o livre mercado não defendem os interesses dos que são ricos hoje. Ao contrário, querem que seja aberta a possibilidade para homens desconhecidos — os empresários de amanhã — usarem sua habilidade e engenho, proporcionando, desta forma, uma vida mais agradável para as gerações vindouras. Querem que se mantenha aberto o caminho para maior progresso econômico. São eles que formam a verdadeira vanguarda do progresso.
As ideias a favor do livre comércio, que foram tão bem-sucedidas no século XIX, estavam respaldadas pelas teorias dos economistas clássicos. O prestígio dessas ideias era tão grande, que nada, nem mesmo os grupos cujos interesses eram contrariados por elas, podia impedir que fossem apoiadas pela opinião pública e que as medidas legislativas necessárias ao seu funcionamento fossem promulgadas. São as ideias que fazem a história e não a história que faz as ideias.
É inútil argumentar com místicos e profetas. Eles baseiam suas afirmativas na intuição e não são capazes de submetê-las ao exame racional. Os marxistas se julgam dotados de uma voz interior que lhes revela o curso da história. Se existem pessoas que não houve esta voz, isto é apenas uma evidência de que não fazem parte do grupo dos eleitos. É uma insolência dessas pessoas, que vivem no mundo das trevas, pretender contradizer os iluminados. Deviam, por uma questão de decência, retirar-se para um canto e lá permanecerem calados.
Não obstante, a ciência não pode deixar de examinar todas as questões, embora seja óbvio que nunca conseguirá convencer aqueles que negam a supremacia da razão. Para estabelecer, entre várias doutrinas antagônicas, qual é a certa e quais são as erradas, a ciência não pode recorrer à intuição. É fato inegável que o marxismo não é a única doutrina existente.
Existem outras “ideologias” além do marxismo. Os marxistas alegam que a aplicação dessas outras doutrinas seria prejudicial à maioria. Mas os defensores dessas doutrinas dizem exatamente o mesmo em relação ao marxismo.
Os marxistas consideram que só um autor de origem proletária pode elaborar uma doutrina que não seja viciada pelos interesses da classe dominante. Mas, quem é proletário? Certamente o doutor Marx, o industrial e “explorador” Engels e Lênin, descendentes de famílias nobres, não eram de origem proletária. Por outro lado, Hitler e Mussolini eram genuínos proletários que conheceram a pobreza quando jovens. O conflito entre os bolcheviques e os mencheviques, ou entre Stálin e Trotsky, não pode ser considerado como conflito de classes. Foram conflitos entre seitas de fanáticos que se acusavam, uns aos outros, de traidores.
A essência da filosofia marxista consiste em proclamar: somos nós que temos razão, porque somos os porta-vozes da nascente classe proletária; a argumentação lógica não pode invalidar nossos ensinamentos, porque eles são inspirados no poder supremo que determina o destino da humanidade. Nossos adversários erram, porque lhes falta a intuição que guia o nosso pensamento; não podemos culpá-los de, por pertencerem a outras classes, não serem dotados da genuína lógica proletária e se tornarem vítimas de ideologias. O impenetrável desígnio da história, que nos escolheu para a vitória, os condenou à derrota. O futuro nos pertence.
4. O polilogismo racista
O polilogismo marxista é uma tentativa fracassada de salvar as insustentáveis doutrinas socialistas. Tentou substituir o raciocínio pela intuição, apelando para o supersticioso das massas populares. Mas é precisamente esta atitude que coloca o polilogismo marxista e seu subproduto, a chamada “sociologia do conhecimento”, numa posição definitivamente antagônica em relação à ciência e ao raciocínio.
Com o polilogismo dos racistas, as coisas se passam de maneira diferente. Este tipo de polilogismo está em consonância com tendências atuais do empirismo, tendências estas que, embora erradas, estão muito em moda. É irrefutável o fato de que a humanidade está dividida em várias raças, que têm características físicas diferentes. Para os partidários do materialismo filosófico, os pensamentos são uma secreção do cérebro, como a bílis é uma secreção da vesícula biliar. Sendo assim, a consistência lógica lhes impede de rejeitar a hipótese de que os pensamentos segregados pelas diversas raças possam ter diferenças essenciais. O fato de a anatomia, até o momento, não ter descoberto diferenças anatômicas nas células do cérebro das diversas raças não invalida a doutrina segundo a qual a estrutura lógica da mente seria diferente nas diversas raças, uma vez que sempre seria possível, em futuras pesquisas, descobrir tais diferenças.
Na opinião de alguns etnólogos, não se pode falar de civilizações superiores ou inferiores, nem considerar certas raças como mais atrasadas. Há civilizações, de várias raças, diferentes da civilização ocidental dos povos de origem caucasiana, mas elas não são inferiores. Cada raça tem uma mentalidade própria. Não se podem comparar civilizações usando padrões de comparação extraídos de uma delas. Os ocidentais consideram a civilização chinesa como estagnada e os habitantes da Nova Guiné como bárbaros primitivos.
Mas os chineses e os nativos da Nova Guiné desprezam a nossa civilização tanto quanto desprezamos a deles. Tais opiniões são julgamentos de valor e, portanto, arbitrárias. As diversas raças têm estruturas lógicas diferentes. Cada civilização é adequada à mente da sua raça, assim como a nossa civilização é adequada à nossa mente. Somos incapazes de compreender que aquilo que chamamos de atraso, para alguns, não é atraso. Visto pelo ângulo de sua lógica, é uma forma de se ajustar às condições da natureza, melhor do que a nossa, supostamente progressista.
Estes etnólogos enfatizam, com razão, que não é tarefa do historiador — e o etnólogo também é um historiador — formular juízos de valor. Entretanto, estão inteiramente errados quando pretendem que as outras raças tenham sido guiadas por objetivos distintos daqueles que estimularam o homem branco. O maior desejo dos asiáticos e dos africanos, tanto quanto dos povos de origem europeia, é o sucesso na luta pela sobrevivência; e, para isso, usam a razão, sua arma mais importante e mais antiga. Procura livrar-se dos animais ferozes e da doença, evitar a fome e aumentar a produtividade do trabalho. Não há dúvida de que na consecução desses objetivos os brancos foram mais bem-sucedidos. Todas as outras raças procuram aproveitar-se das conquistas do mundo ocidental. Aqueles etnólogos estariam certos se os mongóis ou os africanos, atormentados por uma doença penosa, renunciassem a ajuda de um médico europeu, porque, segundo sua mentalidade ou sua visão do mundo, é preferível sofrer a ser aliviado da dor. Gandhi negou a sua própria teoria, ao dar entrada num hospital moderno para ser operado da apendicite.
Aos índios norte-americanos faltou a engenhosidade para inventar a roda. Os habitantes dos Alpes não foram capazes de fabricar esquis que lhes tornariam a vida bem mais agradável. Tais deficiências não se devem a uma mentalidade diferente daquelas outras raças que há muito tempo já conheciam a roda e os esquis; foram falhas, mesmo quando consideradas do ponto de vista dos índios ou dos montanheses alpinos.
Entretanto, estas reflexões se referem apenas aos motivos que determinam ações específicas e não ao único problema realmente relevante, qual seja, o de saber se existe entre as várias raças uma diferença na estrutura lógica da mente, uma vez que é isto que os racistas alegam.[15]
Podemos repetir aqui o que já foi dito nos capítulos precedentes sobre a estrutura lógica da mente e sobre os princípios categoriais do pensamento e da ação. Umas poucas observações adicionais serão suficientes para refutar definitivamente o polilogismo racial ou qualquer outro tipo de polilogismo.
As categorias pensamento e ação humana não são nem produtos arbitrários da mente humana, nem convenções. Não têm uma existência própria, externa ao universo e alheio ao curso dos eventos cósmicos. São fatos biológicos e têm uma função específica na vida e na realidade. São instrumentos do homem na sua luta pela existência, no seu esforço para se ajustar tanto quanto possível à realidade do universo e para eliminar o desconforto até onde lhe seja possível. São, portanto, apropriadas às condições do mundo exterior e refletem as circunstâncias com que a realidade se apresenta. Funcionam e, neste sentido, são verdadeiras e válidas.
Consequentemente, erram todos aqueles que supõem que a percepção apriorística e o raciocínio puro não nos proporcionam informações sobre a realidade e sobre a estrutura do universo. As relações lógicas fundamentais e as categorias pensamento e ação constituem a fonte de onde brota todo conhecimento humano. São adequadas à estrutura da realidade, revelam esta estrutura à mente humana e, nesse sentido, são para o homem fatos ontológicos básicos.[16]
Não podemos saber o que um intelecto super-humano seria capaz de pensar ou compreender. Para o homem, toda cognição está condicionada pela estrutura lógica de sua mente e implícita nesta estrutura. Os êxitos alcançados pelas ciências empíricas e sua aplicação prática são uma demonstração desta evidência. Onde a ação humana é capaz de atingir os fins a que se propõe não há lugar para agnosticismo.
Se tivesse existido uma raça que houvesse desenvolvido uma estrutura lógica da mente diferente da nossa, ela não teria podido recorrer à razão na sua luta pela vida. Os únicos meios de que disporia para sobreviver seriam suas reações instintivas. A seleção natural se encarregaria de eliminar todos os espécimes desta hipotética raça que tentassem empregar o raciocínio para determinar o seu comportamento; só sobreviveriam aqueles que se fiassem apenas nos seus instintos. Isto significa que só poderiam sobreviver aqueles cujo nível mental não fosse superior ao dos animais.
Os pesquisadores ocidentais reuniram uma expressiva quantidade de informações relativa às civilizações mais refinadas da China e da Índia, bem como acerca das civilizações primitivas dos aborígenes asiáticos, americanos, australianos e africanos. Podemos dizer que tudo o que vale a pena saber sobre estas raças, já o sabemos. Mesmo assim, nunca um defensor do polilogismo tentou usar estes dados para explicar a alegada diferença lógica desses povos ou dessas civilizações.
5. Polilogismo e compreensão
Alguns defensores dos princípios do marxismo e do racismo interpretam a base epistemológica de seus partidos de uma maneira peculiar. Admitem que a estrutura lógica da mente seja a mesma para todas as raças, nações ou classes. O marxismo, ou o racismo, afirmam seus defensores, nunca pretendeu negar este fato inegável. O que estas doutrinas queriam dizer é que a compreensão histórica, a apreciação estética e os juízos de valor dependem dos antecedentes pessoais de cada um. Esta nova interpretação, na realidade, não encontra apoio no que escreveram os defensores das doutrinas polilogistas. Não obstante, devemos analisá-la como se fosse uma doutrina nova e independente.
Não há necessidade de repetir uma vez mais que os julgamentos de valor, assim como a escolha de objetivos de qualquer pessoa, refletem suas características físicas e todas as vicissitudes de sua vida.[17] Mas, do reconhecimento disto à crença de que a herança racial ou o fato de pertencer a uma classe social, em última análise, determinam os julgamentos de valor e a escolha de objetivos, vai uma grande distância. As notórias diferenças na forma de ver o mundo ou nos padrões de comportamento de maneira alguma correspondem às diferenças de raça, nacionalidade ou classe.
Seria difícil imaginar uma maior discrepância quanto a julgamento de valor do que a existente entre os ascetas e os desejosos de gozar a vida despreocupadamente. Um abismo separa devotos, monges e freiras do resto da humanidade. Entretanto, existem pessoas que se dedicam a uma vida monástica entre todas as raças, nações, classes ou castas. Enquanto alguns descendiam de reis e de nobres, outros eram simples mendigos. São Francisco e Santa Clara e seus ardentes seguidores eram todos nascidos na Itália, e não se pode dizer que os italianos sejam um povo que despreze os prazeres temporais. O puritanismo é de origem anglo-saxônica, mas também o mesmo se pode dizer da luxúria que existia nos reinados dos Tudor, dos Stuart e da casa de Hannover. O principal defensor do ascetismo no século XIX foi o conde Leon Tosltoy, um rico membro da libertina aristocracia russa. Tolstoy considerava a sonata Kreutzer, de Beethoven, obra-prima de um filho de pais extremamente pobres, como a manifestação mais importante da filosofia que ele tanto considerava.
O mesmo ocorre com valores estéticos. Todas as raças e nações tiveram períodos clássicos e românticos. Apesar de todo esforço de propaganda, os marxistas nunca conseguiram criar uma arte ou literatura especificamente proletária. Os escritores, pintores e músicos “proletários” não criaram novos estilos nem estabeleceram novos valores estéticos. O que os caracteriza é tão somente a tendência a qualificar tudo o que detestam como burguês” e tudo o de que gostam como “proletário”.
A compreensão histórica, tanto do historiador como do agente homem, reflete a personalidade do seu autor.[18] Mas, se o historiador e o político estão imbuídos do desejo de buscar a verdade, não se deixarão iludir por preconceitos partidários, a não ser que sejam muito ineptos e ineficientes. É irrelevante que um historiador ou político considere um determinado fator como benéfico ou prejudicial; não lhes advirá nenhuma vantagem em exagerar ou depreciar a relevância de um entre os diversos fatores intervenientes. Somente um pseudo-historiador inepto ainda acredita que possa servir à sua causa ao distorcer a realidade.
Podemos dizer o mesmo com relação à compreensão do político. Que vantagem teria um defensor do protestantismo em desprezar o tremendo poder do catolicismo, ou um liberal em ignorar a relevância dos ideais socialistas? Para ser bem-sucedido, o político deve ver as coisas como elas realmente são; quem se apoia em fantasias acaba fracassando. Os julgamentos de relevância diferem dos julgamentos de valor, porque têm por objetivo avaliar uma situação que não depende do arbítrio do autor. Cada autor avaliará a relevância de uma situação segundo sua personalidade, o que impossibilita a existência de unanimidade de pontos de vista. Então, cabe novamente a pergunta: que vantagem poderia uma raça ou uma classe obter de uma distorção “ideológica” da realidade?
Como já foram assinaladas, as mais sérias divergências encontradas nos estudos de história são decorrentes de diferenças no campo das ciências não históricas e não de diferentes modos de compreensão.
Muitos historiadores e escritores modernos estão imbuídos do dogma marxista, segundo o qual o advento do socialismo é não só inevitável, como também extremamente desejável, e as forças trabalhistas foram designadas para a histórica missão de destruir o sistema capitalista. Partindo dessa premissa, consideram natural que os partidos de “esquerda”, os eleitos, recorram à violência e ao crime para atingir seus objetivos. Uma revolução não pode ser feita por meios pacíficos. Não vale a pena perder tempo com insignificâncias como a chacina das quatro filhas do último tzar, de Leon Trotsky, de dezenas de milhares de burgueses russos, e assim por diante. Por que mencionar os ovos quebrados, se todos sabem que não se pode fazer uma omelete sem quebrar os ovos? Mas, se alguma dessas vítimas ousa defender-se ou mesmo revidar a agressão, será duramente criticada. São poucos os que se atrevem a simplesmente mencionar os atos de sabotagem, destruição e violência praticados por grevistas. Em compensação, são pródigos em condenar as medidas que as companhias, quando atacadas, adotam para proteger sua propriedade e a vida de seus empregados e clientes.
Tais discrepâncias não são devidas nem a julgamentos de valor nem a uma compreensão diferente da realidade. São consequências de teorias contraditórias sobre a evolução histórica e econômica. Se o advento do socialismo é inevitável e só pode ser alcançado por métodos revolucionários, os crimes cometidos pelos “progressistas” são incidentes menores, sem importância. Por outro lado, a autodefesa e o contra-ataque dos “reacionários”, que possivelmente retardarão a vitória final do socialismo, são considerados crimes gravíssimos. Enquanto estes são amplamente destacados, aqueles são considerados meros atos de rotina.
6. Em defesa da razão
Um racionalista judicioso não teria a pretensão de afirmar que a razão humana pode chegar a fazer com que o homem se torne onisciente. Teria consciência do fato de que, por mais que aumente o conhecimento, sempre haverá dados irredutíveis que não são passíveis de elucidação ou compreensão. Não obstante, acrescentaria o nosso racionalista, na medida em que o homem é capaz de adquirir conhecimento, necessariamente terá que contar com a razão. Um dado irredutível é o irracional. Tudo o que é conhecível, na medida em que já seja conhecido, é necessariamente racional. Não existe uma forma irracional de cognição nem tampouco uma ciência da irracionalidade.
Com relação a problemas ainda não resolvidos, podemos formular diversas hipóteses, desde que não contradigam a lógica ou conhecimento incontestáveis. Mas serão apenas hipóteses.
Ignoramos quais sejam as causas das diferenças inatas da capacidade ou do talento humano. A ciência não é capaz de explicar por que Newton e Mozart foram geniais, enquanto a maioria dos homens não tem tanto talento. Mas o que não é aceitável é atribuir a genialidade à raça ou à ancestralidade. A questão a ser respondida é por que uma pessoa difere de seus irmãos de sangue e dos outros membros de sua raça.
Supor que as grandes realizações da raça branca se devem a alguma superioridade racial constitui um erro um pouco mais compreensível. De qualquer forma, não é mais do que uma hipótese vaga em flagrante contradição com o fato de que devemos a outras raças a própria origem da civilização. Tampouco podemos saber se no futuro outras raças suplantarão a civilização ocidental.
Entretanto, esta hipótese deve ser avaliada pelos seus próprios méritos. Não deve ser condenada de antemão só porque os racistas nela se baseiam para postular que existe um conflito irreconciliável entre os vários grupos raciais e que as raças superiores devem escravizar as inferiores. A lei de associação formulada por Ricardo há muito tempo já mostrou o equívoco representado por esta maneira de interpretar a desigualdade dos homens.[19] Não tem sentido combater o racismo, negando fatos óbvios. É inútil negar que, até o momento, algumas raças muito pouco ou mesmo nada contribuíram para o progresso da civilização e podem, neste sentido, ser chamadas de inferiores.
Se quisermos extrair, a qualquer preço, alguma verdade dos ensinamentos marxistas podemos dizer que as emoções influenciam muito o raciocínio humano. Ninguém pode negar este fato óbvio; tampouco devemos creditar ao marxismo esta descoberta. E nada disso tem qualquer importância para a epistemologia. São inúmeros os fatores, tanto de sucesso, como de erro. É tarefa de a psicologia enumerá-los e classificá-los.
A inveja é uma fraqueza muito comum. Muitos intelectuais invejam a renda elevada de negociantes prósperos e este ressentimento os conduz ao socialismo. Acreditam que as autoridades de uma comunidade socialista lhes pagariam salários maiores do que aqueles que poderiam ganhar no regime capitalista. Mas o fato de essa inveja existir não desvia a ciência do dever de examinar cuidadosamente as doutrinas socialistas. Os cientistas devem analisar qualquer doutrina como se os seus defensores não tivessem outro propósito a não ser a busca do conhecimento. Os vários tipos de polilogismo, em vez de analisar teoricamente doutrinas contrárias às suas, preferem revelar os antecedentes e os motivos de seus autores. Tal procedimento é incompatível com os mais elementares princípios do raciocínio.
É um artifício medíocre julgar uma teoria por seus antecedentes históricos, pelo “espírito” de seu tempo, pelas condições materiais de seu país de origem ou por alguma qualidade pessoal de seu autor. Uma teoria só pode ser julgada pelo tribunal da razão. O único critério a ser aplicado é o critério da razão. Uma teoria pode estar certa ou errada. Ocorre que, dado o nosso estágio de conhecimento, talvez não seja possível determinar seu acerto ou erro. Mas uma teoria jamais poderá ser válida para um burguês ou um americano, se não for igualmente válida para um proletário ou um chinês.
Se as doutrinas marxistas ou racistas fossem corretas, seria impossível explicar por que seus seguidores, quando estão no poder, procuram logo silenciar teorias que lhes sejam dissidentes e perseguir quem as defende. O próprio fato de que existem governos intolerantes e partidos políticos que procuram colocar seus opositores fora da lei, ou mesmo exterminá-los, é uma prova manifesta do poder da razão. Isto não significa que uma doutrina esteja correta só porque os seus adversários recorrem à polícia e à violência das massas para combatê-la. Significa que aqueles que recorrem à violência estão, no seu subconsciente, convencidos da improcedência de suas próprias doutrinas.
É impossível demonstrar a validade dos fundamentos apriorísticos da lógica e da praxeologia, sem recorrer a estes mesmos fundamentos. A razão é um dado irredutível e não pode ser analisada ou questionada por si mesma. A própria existência da razão humana é um fato não racional. A única afirmação que pode ser feita sobre a razão é que ela é o marco que separa os homens dos animais e a ela devemos todas as realizações que consideramos especificamente humanas.
Para aqueles que pensam que o homem seria mais feliz se renunciasse ao uso da razão e tentasse deixar-se conduzir somente pela intuição e pelos instintos, não há melhor resposta do que recordar as conquistas da sociedade humana. A economia, ao descrever a origem e o funcionamento da cooperação social, fornece todas as informações necessárias a uma escolha entre a racionalidade e a irracionalidade. Se o homem cogitasse de se libertar da supremacia da razão, deveria procurar saber ao que, forçosamente, estaria renunciando.
[1] Ver, por exemplo, Louis Rougier, Les paralogismes du rationalisme, Paris, 1920.
[2] Ver Joseph Dietzgen, Briefe über Logik speziell demokratisch-proletarische Logik, 2. ed. Stuttgart, 1903, p. 112.
[3] Ver Franz Oppenheimer, System der Soziologie, Viena, 1926, vol. 2, p. 559.
[4] Deve-se enfatizar que a justificação da democracia não se baseia na suposição de que as maiorias têm sempre razão, e menos ainda de que são infalíveis. Ver adiante p. ……
[5] Ver seu discurso na convenção do partido em Nuremberg, 03/09/1933, Frankfurter Zeitung, 04/09/1933, p. 2.
[6] Ver Lancelot Hogben, Science for the Citizen, Nova Iorque, 1938, p. 726-728.
[7] Ibid, p. 726.
[8] (Extraída da tradução espanhola de Human Atuem, feita por Joaquim Reig Albiol, Madrid, 1980, p. 132). Mises alude aqui, com a sobriedade de sempre, ao silêncio absoluto e suspeito em que Marx se encerra, depois da publicação do primeiro volume de O capital, circunstância que verdadeiramente chama a atenção do estudioso, levando em conta, atuem, que até o momento Marx havia sido um prolífico escritor. Com efeito, aos 28 anos, publica sua primeira obra, Economia política e filosofia (1844), seguindo-se A Sagrada Família (1845), A ideologia alemã (1846), Miséria da filosofia (1847), O manifesto comunista (1848) eContribuição à crítica da economia política (1857). Quando, em 1867, publica O capital, Marx tem 49 anos; está na plenitude de sua forma física e intelectual.
Por que, então, desde este momento, deixa de escrever, particularmente se já tinha redigido os segundo e terceiro volumes, antes mesmo de estruturar o primeiro, conforme afirma Engels ao prefaciar o citado segundo volume? Teriam por acaso os descobrimentos subjetivistas de Jevons e Menger lhe condenado ao silêncio? Há quem sustente que Marx não entregou aos seus editores o manuscrito original, por ter visto demonstrada a invalidez da célebre teoria da mais valia; por ter percebido que era indefensável a tese do salário vitalmente necessário, assim como o dogma fundamental do progressivo empobrecimento das massasno regime de mercado.Teria então decidido abandonar sua atividade científico-literária, deixando, voluntariamente, de oferecer ao público os dois volumes seguintes de O capital, que só seriam editados por Engels em 1884, quase trinta anos depois da publicação do primeiro volume. Como diria Mises, este é um tema que pode ser abordado pela via da compreensão histórica. (N.T.)
[9] Se bem que o termo racionalização seja novo, a ideia em si já era conhecida há muito tempo. Ver, por exemplo, as palavras de Benjamin Franklin: “É tão conveniente ser uma criatura razoável, porque isto nos permite encontrar uma razão para tudo o que pretendemos fazer”. Autobiography, Nova Iorque, 1944, p. 41.
[10] “Le moulin à bras vous donnera la société avec le souzerain; le moulin à vapeur, La société avec le capitaliste industriel.” Marx, Misére de la philosophie, Paris e Bruxelas, 1847, p. 100.
[11] Marx, Das Kapital, 7. ed., Hamburgo, 1914, vol. 1, p. 728-729.
[12] The Communist Manifesto, vol. 1.
[13] Corn Laws — leis que prevaleceram na Inglaterra de 1436 a 1846 para regulamentar o comércio de grãos. Por volta de 1790, foi se tornando cada vez mais evidente que estas leis tinham como principal efeito proteger os proprietários de terra da competição externa e, dessa maneira, aumentava o preço do pão e dos cereais que eram a dieta básica dos operários na indústria. Em 1838, foi fundada em Manchester a Anti-Corn Law League, liderada por Richard Cobden (1804-1865), o “apóstolo do livre comércio”, e por Jon Bright (1811-1889), que conseguiram em 1846 a revogação das Corn Laws e a aceitação crescente dos princípios do laissez-faire da Escola de Manchester. Obs: Corn, traduzido para o português geralmente como milho, é a expressão usada na língua inglesa para designar cereal ou o cereal de maior consumo na alimentação. Assim, na Inglaterra, corn é trigo; nos EUA, milho; na Escócia, aveia e, nos países da Europa continental, centeio. (N.T.)
[14] O significado que o marxismo contemporâneo atribuiu a esta expressão, a saber, que a droga religiosa tenha sido propositalmente administrada ao povo, pode ter sido o significado que lhe atribuía o próprio Marx. Mas não resulta da passagem na qual — em 1843 — Marx cunhou esta expressão. Ver R. P. Casey, Religion in Russia, Nova Iorque, 1946, p. 67-69.
[15] Ver L. G. Tirala, Rasse Geist und Seele, Munique, 1935, p. 190 e segs.
[16] Ver Morris R. Cohen, Reason and Nature, Nova Iorque, 1931, p. 202-205; A Preface to Logic, Nova Iorque, 1944, p. 42-44, 54-56, 92, 180-187.
[17] Ver pág …..
[18] Ver pág …..
[19] Ver adiante pág….