Capítulo XXVII. O governo e o mercado
SEXTA PARTE
A INTERVENÇÃO NO MERCADO
CAPÍTULO XXVII — O GOVERNO E O MERCADO
1 — A ideia de um terceiro sistema
A distinção entre propriedade privada dos meios de produção (economia de mercado ou capitalismo) e propriedade pública dos meios de produção (socialismo, comunismo ou “planejamento central”) é bastante nítida. Cada um desses dois sistemas de organização econômica da sociedade pode ser descrito e definido de maneira precisa e sem ambiguidades.
Não podem jamais ser confundidos um com o outro; não podem ser misturados ou combinados; não podem transitar gradualmente de um para o outro; são mutuamente incompatíveis. Um fator de produção ou é de propriedade privada ou pública. Se, no contexto de um sistema de cooperação social, alguns meios de produção são de propriedade pública, enquanto os demais são controlados por entidades privadas, isto não configura um sistema misto combinando socialismo e propriedade privada. O sistema continua sendo uma sociedade de mercado, enquanto o setor socializado não se tornar inteiramente separado do setor não socializado, passando a ter uma existência estritamente autárquica. (Nesse último caso, estaríamos diante de dois sistemas que coexistem independentemente lado a lado – um capitalista e outro socialista). Empresas estatais funcionando num sistema no qual existam empresas privadas e um mercado, assim como países socialistas que trocam bens e serviços com países não socialistas, estão integrados num sistema de economia de mercado. Estão sujeitos à lei do mercado e têm a possibilidade de recorrer ao cálculo econômico.[1]
Se quisermos considerar a ideia de colocar lado a lado com esses sistemas, ou entre eles, um terceiro sistema de cooperação humana sob o signo da divisão do trabalho, teremos que partir da noção de economia de mercado e não da noção de socialismo. A noção de socialismo com seu monismo e centralismo rígidos, em que uma só vontade tem o poder de escolher e agir, não dá margem a qualquer tipo de compromisso ou concessão; não é um sistema passível de ajustes ou alterações. Mas o mesmo não ocorre em relação à economia de mercado. Neste sistema, a coexistência do mercado com o poder de coerção e compulsão do governo dá margem a diversas possibilidades. Seria realmente necessário ou conveniente, perguntam-se as pessoas, que o governo se mantenha à distância do mercado? Não seria uma tarefa do governo interferir e corrigir o funcionamento do mercado? Será que não há outra alternativa além de capitalismo ou socialismo? Será que não existem outros sistemas viáveis de organização social que não sejam nem o comunismo e nem a pura economia de mercado?
Como resposta a essas questões foram arquitetadas diversas terceiras soluções que, segundo os seus criadores, estariam tão distantes do socialismo como do capitalismo. Alegam esses autores que tais sistemas não são socialistas porque preservam a propriedade privada dos meios de produção, e que não são capitalistas porque eliminam as “deficiências” da economia de mercado. Um tratamento científico dessa questão deveria ser necessariamente neutro em relação a quaisquer julgamentos de valor e, portanto, não poderia condenar nenhum aspecto do capitalismo como sendo prejudicial, defeituoso ou injusto; não faz sentido recomendar, em bases puramente emocionais, o intervencionismo. Cabe à ciência econômica analisar essas questões e buscar a verdade; não pode ser invocada para louvar ou condenar a realidade a partir de postulados preconcebidos e de preconceitos. Em relação ao intervencionismo, cabe à ciência econômica apenas perguntar e responder: como é que funciona?
2 — O intervencionismo
Existem duas maneiras de se chegar ao socialismo.
A primeira (podemos denominá-la de modelo leninista ou russo) é puramente burocrática. Todas as fábricas, lojas e fazendas são formalmente estatizadas (verstaatlicht); passam a ser departamentos do governo dirigidos por funcionários públicos. Cada unidade do aparato de produção mantém com o órgão superior central a mesma relação que uma agência local dos correios mantém com o Departamento dos Correios.
A segunda maneira (podemos denominá-la de modelo alemão ou de Hindenburg) preserva nominal e aparentemente a propriedade privada dos meios de produção, fazendo parecer que continuam a existir mercados, preços, salários e juros. Entretanto, já não existem empresários, mas apenas gerentes de empresas (Betriebsführer na terminologia nazista). Esses gerentes de empresa parecem estar efetivamente no comando das empresas que lhes foram confiadas; compram e vendem, contratam e dispensam trabalhadores, fixam remunerações, contraem dívidas, pagam juros e amortizam empréstimos. Mas, ao exercer a sua atividade, são obrigados a obedecer incondicionalmente às ordens emitidas pela agência central do governo encarregada de dirigir a produção. Essa agência (a Reichswirtschaftsministerium na Alemanha nazista) instrui os gerentes de empresa sobre o que e como produzir, a que preços e de quem comprar, por que preços e a quem vender. Designa o emprego de cada trabalhador e fixa o seu salário. Decreta a quem, e em que termos, os capitalistas devem confiar os seus fundos. Em tais circunstâncias, o mercado torna-se uma impostura. Os salários, preços e taxas de juros são fixados pelo governo; são salários, preços e taxas de juros apenas na aparência; na realidade, são meramente as expressões quantitativas das ordens do governo que determinam o emprego, a renda, o consumo e o padrão de vida de cada cidadão. O governo dirige toda a atividade econômica. Os gerentes de empresa obedecem ao governo e não à demanda dos consumidores e à estrutura de preços do mercado. Isso é socialismo, disfarçado pelo uso da terminologia capitalista. Alguns rótulos da economia de mercado capitalista são mantidos, mas com um significado inteiramente diferente do que têm na economia de mercado.
É necessário salientar este fato a fim de evitar que se confunda socialismo com intervencionismo. O intervencionismo ou a economia de mercado obstruída difere do modelo alemão de socialismo pelo simples fato de ainda ser uma economia de mercado. As autoridades interferem no funcionamento da economia de mercado, mas não desejam eliminá-lo completamente. Querem que a produção e o consumo sigam caminhos diferentes dos que seguiriam se não houvesse as obstruções, e querem atingir esse objetivo por meio de ordens, comandos e proibições, para cujo cumprimento contam com o respaldo do poder de polícia e o seu correspondente aparato de compulsão e coerção. Tais medidas, entretanto, são atos isolados de intervenção. Não pretendem, as autoridades, integrá-las num sistema que determinaria todos os preços, salários e taxas de juros, colocando em suas mãos o controle absoluto da produção e do consumo.
O sistema de economia de mercado obstruído, ou intervencionismo, procura preservar o dualismo de duas distintas esferas: a atividade do governo de um lado e a liberdade econômica do sistema de mercado de outro. O que caracteriza o intervencionismo é o fato de que o governo não limita suas atividades à preservação da propriedade privada dos meios de produção e à proteção contra as tentativas de violência ou fraude; o governo interfere na atividade econômica através de ordens e proibições.
A intervenção é sempre um decreto emitido, direta ou indiretamente, pela autoridade responsável pelo aparato administrativo de coerção e compulsão que força os empresários e os capitalistas a empregarem alguns dos fatores de produção de maneira diferente daquela que o fariam se estivessem obedecendo apenas aos ditames do mercado. Um tal decreto pode ser uma ordem para fazer ou para deixar de fazer alguma coisa. O decreto não precisa ser necessariamente emitido diretamente pelo poder legitimamente constituído e estabelecido.
Pode ocorrer que algumas outras agências se arroguem o direito de emitir tais ordens ou proibições, e as imponham por meio do seu próprio aparato de coerção e opressão. Se o governo legitimamente constituído tolera esse procedimento ou até mesmo o apoia por meio de seu aparato policial, as coisas se passam como se a ordem fosse do próprio governo. Se o governo se opõe à ação violenta dessas outras agências, e, embora o desejando, não consegue evitá-las nem com o emprego de suas forças armadas, advém a anarquia.
É importante lembrar que intervenção do governo significa sempre ou ação violenta ou ameaça de ação violenta. Os fundos gastos pelo governo em qualquer de suas atividades são obtidos por meio de impostos. E os impostos são pagos porque os contribuintes não se atrevem a desobedecer aos agentes do governo; eles sabem que qualquer desobediência ou resistência seria inútil. Enquanto perdurar esse estado de coisas, o governo tem possibilidade de arrecadar tanto quanto queira para suas despesas. Governo é, em última instância, o emprego de homens armados, de policiais, guardas, soldados e carrascos. A característica essencial do governo é a de poder fazer cumprir os seus decretos batendo, matando e prendendo. Quem pede maior intervenção estatal está, em última análise, pedindo mais compulsão e menos liberdade.
Chamar atenção para esse fato não implica em condenar a existência do governo, pois, na realidade, a cooperação social pacífica seria impossível na ausência de um instrumento que impeça, pela força se preciso, a ação de indivíduos ou grupos de indivíduos antissociais. Não nos enganemos proclamando, como fazem muitos, que o governo é um mal, embora um mal necessário e indispensável. Aquilo que é necessário para atingir um fim é um meio; é o custo a ser incorrido para atingir o fim desejado. Considerar tal custo como um mal, no sentido moral da expressão, é um julgamento arbitrário. Não obstante, diante das tendências modernas de deificação do governo e do Estado, convém que nos lembremos de que os romanos, ao simbolizarem o Estado por um feixe de varas em torno de um machado, eram mais realistas do que os nossos contemporâneos que atribuem ao Estado todas as características de uma divindade.
3- A delimitação das funções governamentais
Várias escolas de pensamento, ostentando nomes pomposos do tipo filosofia da lei e ciência política, procuram, inutilmente, determinar quais seriam as legítimas funções do governo. Partindo de suposições inteiramente arbitrárias, colocam-se no papel de juízes supremos dos assuntos terrenos, estabelecem valores e uma noção de justiça que pretensamente alegam ser absolutos e eternos. Confundem os seus próprios julgamentos de valor, baseados na intuição, com a voz do Todo-Poderoso ou com a natureza das coisas.
Na realidade, não há nada que possa ser considerado como um critério perpétuo do que seja justo ou injusto. A natureza ignora a noção de bem e mal. “Não matarás”, certamente, não é uma lei natural. O traço característico das condições da natureza está no fato de que um animal tenta matar outros e de que muitas espécies não conseguem sobreviver a não ser matando outras. A noção de bem e mal é uma invenção do homem, um preceito utilitário concebido para tornar possível a cooperação social sob o signo da divisão do trabalho. Todas as regras morais e leis humanas são meios para realização de determinados fins. Só examinando seriamente a sua utilidade para consecução dos objetivos que se pretende alcançar é que podem ser qualificadas de boas ou más.
Da noção de lei natural algumas pessoas deduzem a legitimidade da instituição da propriedade privada dos meios de produção. Outros recorrem à lei natural para justificar a abolição da propriedade privada dos meios de produção. Sendo a ideia de lei natural arbitrária, tais discussões não podem chegar a qualquer conclusão.
O Estado e o governo não são fins; são meios. Só os sádicos sentem prazer em fazer mal a outra pessoa. As autoridades estabelecidas recorrem à coerção e à compulsão para poderem salvaguardar o tranquilo funcionamento de um sistema específico de organização social. A amplitude com que poderá ser utilizada a coerção e a compulsão, assim como o conteúdo das leis que o aparato policial deve fazer respeitar, são condicionados pela ordem social adotada. Sendo o Estado e o governo criados com o objetivo de garantir o funcionamento de um sistema social, a limitação das funções governamentais dependerá necessariamente das características desse sistema social. O único critério para apreciar as leis e os métodos usados para sua implementação é verificar se são ou não eficientes para salvaguardar a ordem social que desejam preservar.
A noção de justiça só faz sentido quando referida a um sistema de normas específico que se presume incontestável e à prova de críticas. Muitas são as pessoas que se apegaram à doutrina de que a noção de bem e de mal se acha estabelecida desde tempos imemoriais e para a eternidade. A tarefa dos legisladores e das cortes de justiça seria descobrir o que é certo e justo à luz de um imutável conceito de justiça. Essa doutrina, que resultou num conservadorismo inflexível e na petrificação de velhos costumes e instituições, foi contestada pela doutrina da lei natural. Às leis positivas do país foi contraposta a noção de uma lei “superior”, a lei natural. Com base num hipotético e arbitrário direito natural, as leis e instituições vigentes seriam qualificadas de justas ou injustas. Bom legislador seria aquele que elaborasse leis positivas que coincidissem com a lei natural.
Os erros básicos implícitos nessas duas doutrinas já foram desmascarados há muito tempo. Quem por elas não se deixou iludir sabe que o apelo à justiça num debate relativo à elaboração de novas leis é um caso de círculo vicioso. De lege ferenda (em relação a uma lei a ser feita) não cabe falar de justiça. A noção de justiça só pode ser logicamente, invocada de lege data (no caso de lei existente). Só faz sentido quando significa aprovar ou desaprovar um comportamento específico com base nas leis vigentes no país. Ao se proporem mudanças no sistema legal de uma nação, ao se reescreverem ou se revogarem leis existentes e se elaborarem novas leis, a questão não é de justiça; o que cabe é examinar a utilidade ou conveniência dessas mudanças para o bem-estar geral. Não há o que possa ser considerado como uma noção absoluta de justiça sem que referência seja feita a um sistema específico de organização social. Não é a justiça que define a escolha de um determinado sistema social; é, ao contrário, o sistema social que define o que deveria ser considerado bom e mau. Fora do contexto social não existe bem ou mal. Para um hipotético indivíduo isolado e autossuficiente, as noções de justo e injusto são desprovidas de interesse. Tal indivíduo só poderia distinguir entre o que lhe é mais vantajoso e o que lhe é menos vantajoso. A idéia de justiça se refere sempre à cooperação social.
Não tem sentido justificar ou rejeitar o intervencionismo com base numa ideia fictícia e arbitrária de justiça absoluta. É inútil considerar as legítimas tarefas de governo a partir de algum padrão de valores imutáveis preestabelecidos. Ainda menos admissível é deduzir quais devam ser as funções adequadas de governo a partir da própria noção de governo, Estado, lei e justiça. Era precisamente isso o que havia de absurdo nas especulações do escolasticismo medieval, de Fichte, de Schelling, de Hegel e da Bergriffsjurisprudenz[2] alemã. Conceitos são ferramentas do raciocínio; não podem jamais ser considerados princípios reguladores de normas de conduta.
Afirmar que as noções de Estado e de soberania implicam logicamente em supremacia absoluta e que, portanto, excluem qualquer ideia de limitação das atividades do Estado é mero exercício supérfluo de ginástica mental. Ninguém contesta que o Estado tem o poder de estabelecer um regime totalitário num território em que seja soberano. A questão a ser respondida é se tal regime seria vantajoso do ponto de vista da preservação e do funcionamento da cooperação social. Em relação a essa questão, a exegese sofisticada de noções e conceitos não tem a menor utilidade; ela terá de ser respondida pela praxeologia e não por uma pseudometafísica do Estado e do direito.
A filosofia do direito e a ciência política não conseguem atinar com uma razão que justifique por que o governo não deveria controlar preços e não punir os que desrespeitassem o tabelamento de preços, da mesma maneira que pune assassinos e ladrões. Para os defensores dessas doutrinas, a instituição da propriedade privada seria meramente um favor revogável concedido graciosamente pelo soberano todo-poderoso aos insignificantes indivíduos.
Revogar, total ou parcialmente, as leis que concedem esse favor seria um ato legítimo e normal; nenhuma objeção razoável poderia ser apresentada contra as medidas de expropriação e confisco. O legislador teria a liberdade de substituir o sistema de propriedade privada dos meios de produção por qualquer outro sistema social, da mesma maneira que tem a liberdade de substituir o hino nacional até então adotado. O preceito “car tel est notre bon plaisir” seria a única norma a ser obedecida pelo legislador soberano.
Em contraposição a todo esse formalismo e dogmatismo legal, é necessário enfatizar novamente que o único propósito das leis e do aparato social de coerção e compulsão é salvaguardar o funcionamento regular da cooperação social. É óbvio que o governo tem o poder de decretar o tabelamento de preços e o de prender quem comprar ou vender por preços maiores que os tabelados. Mas a questão está em saber se, com essa medida, o governo conseguirá ou não atingir os objetivos que pretendia atingir ao adotá-la. Estamos diante de uma questão exclusivamente praxeológica e econômica. Nem a filosofia do direito, nem a ciência política têm qualquer contribuição a dar para esclarecê-la.
O problema que temos de examinar ao analisar o intervencionismo não consiste em procurar definir quais seriam as tarefas “naturais”, “justas” e “adequadas” do governo. A questão a examinar é a seguinte: como funciona um sistema intervencionista? Poderá esse sistema alcançar aqueles objetivos que o governo, ao adotá-lo, pretende atingir?
A forma confusa e a falta de critério com que têm sido examinados os problemas relativos ao intervencionismo são verdadeiramente surpreendentes. Existem pessoas, por exemplo, que argumentam assim: é óbvio que os regulamentos de tráfego nas estradas públicas são necessários. Ninguém alega que a liberdade do motorista foi diminuída pela interferência do governo. Portanto, os defensores do laissez-faire se contradizem ao condenar a interferência do governo nos preços de mercado e aceitar a regulamentação do tráfego feita pelo governo.
O equívoco desse argumento é evidente. A regulamentação do tráfego nas vias públicas compete evidentemente ao órgão, estadual ou municipal, responsável pelo bom funcionamento das mesmas. Compete à direção da companhia de estradas de ferro estabelecer o horário dos trens, assim como compete ao gerente do hotel decidir se deverá haver música no restaurante. Se a estrada de ferro ou o hotel pertencem ao governo, cabe-lhe determinar essas coisas. Se há um teatro de ópera do Estado, cabe ao governo decidir quais as óperas que deveriam e quais as que não deveriam ser apresentadas; isso não significa, entretanto, que também caiba ao governo decidir sobre essas coisas num teatro de propriedade particular.
Os intervencionistas repetem seguidamente que não pretendem acabar com a propriedade privada dos meios de produção, com as atividades empresariais, e nem abolir o mercado. Os defensores da soziale Marktwirtschaft (economia social de mercado), a mais recente variante do intervencionismo, também proclamam que consideram a economia de mercado como o melhor e mais desejável sistema de organização econômica da sociedade, e que se opõem à onipotência do governo, característica do socialismo. É claro que esses defensores de uma solução intermediária rejeitam com a mesma veemência o liberalismo manchesteriano ou do tipo laissez-faire. É necessário, dizem eles, que o Estado intervenha no mercado, onde e quando o “livre jogo das forças econômicas” resulte em situações consideradas “socialmente” indesejáveis. Ao fazer essa afirmativa, consideram evidente o fato de que cabe ao governo determinar em cada caso quais são os fatos econômicos “socialmente” desejáveis e quais os que não o são, e, consequentemente, se deve ou não haver uma interferência no mercado.
Todos esses defensores do intervencionismo não chegam a perceber que a implementação de seus programas implica no total domínio do governo sobre todos os assuntos econômicos, o que, forçosamente, haverá de conduzir à implantação de um regime socialista que não é diferente daquele denominado de modelo alemão ou de Hindenburgo. Se compete ao próprio governo decidir se determinada situação econômica justifica ou não a intervenção do Estado, já não há mais atividade econômica regulada pelo mercado. Já não são os consumidores que, em última análise, determinam o que deve ser produzido, em que quantidade, de que qualidade, por quem, quando e como — cabe ao governo decidir estas questões. Seus representantes intervirão sempre que o resultado do funcionamento do mercado for diferente do que eles mesmos consideram como “socialmente” desejável. Ou seja, o mercado é livre na medida em que fizer precisamente o que o governo deseja. É “livre” para fazer o que as autoridades consideram “certo”, mas não para fazer o que consideram “errado”; a decisão quanto ao que é certo e o que é errado cabe exclusivamente ao governo.
Dessa maneira, a doutrina e a prática do intervencionismo vão gradativamente abandonando o que originalmente as distinguia do socialismo puro e simples, para terminar adotando um regime totalitário de planejamento central.
4 — A probidade como padrão supremo das ações individuais
Há uma opinião muito difundida segundo a qual seria possível, mesmo não havendo intervenção do Estado na atividade econômica, desviar a economia de mercado da direção que seguiria se fosse deixada exclusivamente ao sabor da motivação pelo lucro. Os defensores de uma reforma social a ser realizada segundo os princípios do cristianismo ou de uma “verdadeira” moralidade sustentam que as pessoas bem-intencionadas, ao atuarem no mercado, deviam ser guiadas também pela consciência. Se as pessoas estivessem dispostas a se preocuparem com suas obrigações morais e religiosas e não apenas com o lucro, não seria necessária a compulsão e a coerção do governo para que as coisas funcionassem bem. O importante, alegam esses reformistas, não é mudar o governo e as leis do país; o importante é a purificação moral do homem, o retorno aos mandamentos de Deus e aos preceitos da lei moral; é a renúncia à cobiça e ao egoísmo. Desta forma, será possível conciliar a propriedade privada dos meios de produção com a justiça, a probidade e a equidade. Os efeitos desastrosos do capitalismo serão, assim, eliminados, sem prejuízo para a liberdade de iniciativa individual. O Moloch do capitalismo seria destronado sem que fosse entronizado o Moloch do Estado.
Por ora, não precisamos interessar-nos pelos julgamentos de valor arbitrário em que tais opiniões se baseiam. As razões que esses críticos apresentam para condenar o capitalismo são irrelevantes; seus erros e falácias não têm importância. O que realmente importa é a ideia de erigir um sistema social sobre uma base dupla: a propriedade privada e princípios morais que restrinjam a utilização da propriedade privada. O sistema preconizado, dizem seus defensores, não será socialista, nem capitalista, nem intervencionista. Não será socialista porque preservará a propriedade privada dos meios de produção; não será capitalista porque a consciência prevalecerá sobre o interesse pelo lucro; não será intervencionista porque não haverá necessidade de o governo intervir no mercado.
Na economia de mercado, o indivíduo é livre para agir nos limites que lhe são impostos pela propriedade privada e pelo mercado. Suas escolhas são inapeláveis. Seus concidadãos terão de levá-las em conta ao decidirem sobre suas próprias ações. A coordenação das ações autônomas de todos os indivíduos é realizada pelo funcionamento do mercado. A sociedade não diz a uma pessoa o que fazer e o que não fazer. Não há necessidade de tornar a cooperação obrigatória por meio de ordens ou proibições. A não cooperação se penaliza a si mesma. Ajustar-se às exigências do esforço produtivo da sociedade e procurar atingir os seus próprios objetivos pessoais não são coisas conflitantes. Consequentemente, não há necessidade de uma agência do governo para arbitrar conflitos que não existem. O sistema pode funcionar e cumprir o seu papel, sem a interferência de uma autoridade que emita ordens e proibições e que castigue quem não as acata.
Fora do âmbito da propriedade privada e do mercado, encontra-se o mundo da compulsão e da coerção; são as barreiras que a sociedade organizada construiu para proteger a propriedade privada contra a violência, a malícia e a fraude; é o reino da coação, bem distinto do reino da liberdade. São regras que discriminam entre o que é legal e o que é ilegal, o que é permitido e o que é proibido; é o implacável aparelho composto de armas, prisões e patíbulos, e das pessoas que os manejam, sempre prontas a submeter pela força aqueles que se atreverem a desobedecer.
Ora, os reformistas, de cujos planos estamos ocupando-nos, sugerem que, além das normas destinadas à proteção e preservação da propriedade privada, outras regras éticas deveriam ser estatuídas. Querem que a produção e o consumo sejam diferentes do que seriam se fossem realizados numa ordem social em que os indivíduos tivessem como única obrigação o respeito ao direito de propriedade de seus concidadãos. Querem proscrever aqueles estímulos que motivam a ação individual (denominados de egoísmo, avidez, afã de lucro) e substituí-los por impulsos de outra natureza (denominados de senso do dever, probidade, altruísmo, temor de Deus, caridade). Estão convencidos de que tal reforma moral seria o bastante para garantir um modo de funcionamento do sistema econômico melhor do que o capitalismo não obstruído, sem para tanto haver necessidade de se recorrer às medidas governamentais próprias do intervencionismo e do socialismo.
Os defensores dessas doutrinas não chegam a perceber o papel que aquelas motivações, que condenam como viciosas, representam no funcionamento da economia de mercado. Não compreendem que a única razão pela qual a economia de mercado pode funcionar, sem necessidade de ingerências ou ordens superiores que indiquem a cada um o que fazer e como fazê-lo, está no fato de não obrigar ninguém a desviar-se da linha de conduta que melhor serve aos seus próprios interesses. O que integra as ações individuais no sistema social de produção é o fato de cada um procurar atingir seus próprios objetivos. Ao condescender com a sua própria “avidez”, cada ator dá a sua contribuição para que as atividades produtoras sejam ordenadas da melhor maneira possível. Por isso, no âmbito da propriedade privada e das leis que a protegem das transgressões decorrentes de ação violenta ou fraudulenta, não há antagonismo entre os interesses dos indivíduos e os da sociedade.
A economia de mercado se converteria numa confusão caótica se essa prevalência da propriedade privada — que os reformistas denigrem como sendo fruto do egoísmo – fosse eliminada. Simplesmente porque não se poderia instaurar uma ordem social satisfatória e eficaz apenas incitando as pessoas a escutarem a voz da consciência e a substituírem a motivação pelo lucro por considerações atinentes ao bem-estar geral. Não bastaria instar um indivíduo a não comprar pelo menor preço e a não vender pelo maior preço. Não bastaria instar-lhe a não buscar lucros e a não evitar perdas. Seria preciso estabelecer, sem ambiguidade, as regras de conduta que fossem aplicáveis em cada caso concreto.
Diz o reformista: o empresário é desalmado e egoísta quando, aproveitando-se de sua própria superioridade, vende por preços menores do que os de um competidor menos eficiente, forçando-o assim a encerrar suas atividades. Mas como deveria proceder um empresário “altruísta”? Não vender nunca por um preço menor que os seus competidores? Ou será que existem situações em que seria justificável procurar vender por preços menores que os seus competidores?
Diz ainda o reformista: o empresário é desalmado e egoísta quando, aproveitando-se da situação do mercado, procura vender por preços tão altos que as pessoas pobres ficam impedidas de comprar sua mercadoria. Mas como deveria proceder o “bom” empresário?
Deveria presentear a sua mercadoria? Por menor que seja o preço solicitado, sempre haverá quem não possa comprar ou, pelo menos, não tanto quanto compraria se o preço fosse ainda mais baixo. De todas as pessoas desejosas de adquirir a mercadoria, quais as que deveriam ser excluídas pelo empresário?
Não é necessário, por ora, examinarmos as consequências decorrentes da fixação de preços diferentes dos que seriam estabelecidos pelo funcionamento do mercado não obstruído. Se o vendedor evita vender por preços menores do que os do seu competidor menos eficiente, pelo menos parte de seu estoque não será vendida. Se o vendedor oferece a mercadoria por um preço menor do que o determinado pelo mercado não obstruído, sua oferta será insuficiente para atender a todos os que estejam dispostos a pagar este menor preço.
Analisaremos mais tarde essas e outras consequências de qualquer desvio dos preços de mercado.[3] Por ora, devemos apenas entender que não basta dizer ao empresário que ele não deve orientar-se pelo mercado. É indispensável que se lhe diga até onde pode ir na fixação dos seus preços para compra e venda. Se já não é a motivação pelo lucro que dirige as ações dos empresários e que determina o que deverão produzir e em que quantidades; se os empresários já não são obrigados, através da motivação pelo lucro, a usarem o melhor de suas habilidades para servir o consumidor, então é necessário que se lhes deem, em cada caso, instruções específicas. Será impossível evitar que sua conduta seja guiada por ordens e proibições, ou seja, precisamente pelo tipo de regulamentação que caracteriza a interferência do governo na atividade econômica. Toda tentativa de evitar essa intervenção apelando para a voz da consciência, para a caridade ou para a fraternidade é inútil.
Os partidários de uma reforma social cristã alegam que, no passado, esse ideal de noção do dever e de obediência à lei moral conseguiu abrandar a cobiça e o desejo de maior lucro. Todos os males do nosso tempo seriam causados por um afastamento dos preceitos da religião. Se as pessoas não tivessem desobedecido aos mandamentos e não tivessem cobiçado ganhos injustos, a humanidade continuaria a usufruir da bem-aventurança que desfrutou na Idade Média, quando pelo menos a elite vivia segundo os princípios do Evangelho. Bastaria, portanto, retornar àqueles bons tempos e cuidar para que nenhuma nova apostasia privasse os homens dos seus efeitos benéficos.
É desnecessário analisar as condições sociais e econômicas do século XIII, louvado por esses reformistas como a melhor época de toda a história. O que nos interessa apenas é a noção de preços e salários justos, noção essa fundamental nos ensinamentos dos teólogos e que os reformistas querem converter em padrão supremo da conduta econômica.
É evidente que, para os que a defendem, essa noção de preços e salários justos está, e sempre esteve, relacionada com uma determinada ordem social que consideram como a melhor possível. Recomendam a adoção de seu projeto visionário e sua preservação para sempre; mudanças futuras são inconcebíveis. Qualquer alteração do melhor estado de coisas possível só poderia significar uma deterioração. A visão de mundo desses filósofos não leva em conta a incessante luta do homem para melhorar as suas condições de vida. Mudança histórica e melhoria geral do padrão de vida são noções que lhes escapam. Denominam de “justo” todo modo de conduta compatível com a tranquila manutenção de sua utopia; e de injusto tudo o mais.
Entretanto, a noção de preços e salários justos que aqueles que não são filósofos têm em mente é muito diferente. O não filósofo entende por preço justo aquele que melhora, ou pelo menos não prejudica, sua receita e sua posição social. Qualquer preço que coloque em risco sua riqueza e sua situação é considerado como injusto. Considera “justo” que os preços dos bens e serviços que ele vende aumentem, e que diminuam os preços dos bens e serviços que compra. Para o agricultor, nenhum preço de trigo, por maior que seja, parecerá injusto.
Para o assalariado, nenhum salário, por maior que seja, parecerá injusto. Mas o agricultor rapidamente denunciará qualquer queda no preço do trigo como uma violação das leis humanas e divinas, e o assalariado se revolta quando seus salários diminuem. Todavia, a sociedade de mercado não tem outro modo de ajustar a produção às mudanças nas preferências dos consumidores. As mudanças de preços no mercado forçam as pessoas a restringirem a produção de artigos menos desejados e a expandirem a produção de artigos que os consumidores desejam com maior urgência. O absurdo de todas as tentativas de estabilizar preços consiste precisamente no fato de que a estabilização impediria qualquer nova melhoria e resultaria em rigidez e estagnação. A flexibilidade dos preços e salários é o meio pelo qual se processa o ajuste, a melhoria e o progresso. Condenar como injusta qualquer alteração nos preços e salários, e desejar a preservação do que consideram justo, equivale na verdade a combater as mudanças que poderiam tornar as condições sociais mais satisfatórias.
Nada há de injusto no fato de que tenha prevalecido por muito tempo uma tendência de os preços agrícolas se estabelecerem num nível tal, que a maior parte da população do campo se tenha deslocado para trabalhar nas indústrias de transformação. Se não fosse por essa tendência, 90% ou mais da população continuaria trabalhando na agricultura, e as indústrias de transformação não se teriam desenvolvido. Todos os estratos da população, inclusive os agricultores, estariam em pior situação. Se a doutrina escolástica do preço justo tivesse vigorado, as condições econômicas do século XIII ainda prevaleceriam. A população seria bem menor do que é hoje e o nível de vida seria muito inferior.
As duas variantes da doutrina do preço justo, a filosófica e a popular, manifestam a mesma condenação dos preços e salários determinados pelo mercado livre. Mas essa atitude negativa não nos dá nenhuma resposta à questão de saber quais deveriam ser os preços e os salários justos. Se a moralidade for tomada como o padrão supremo da ação econômica, é preciso que se diga a cada ator, sem ambiguidades, o que fazer, que preços cobrar, que preços pagar em cada caso; é preciso submeter — por meio do aparato de compulsão e coerção – todos os que ousem desobedecer às ordens recebidas. É preciso entronizar uma autoridade suprema que estabeleça normas de conduta para cada caso, modificando-as se necessário, interpretando-as corretamente e fazendo-as respeitar. Assim sendo, substituir o egoísta afã de lucro pela justiça social e pela moralidade requer, para sua implementação, exatamente aquelas medidas de intervenção do governo que os partidários da purificação moral da humanidade desejavam evitar. Qualquer desvio da livre economia de mercado requer, para ser implantado, uma regulamentação autoritária. Que essa autoridade esteja investida num governo laico ou numa teocracia religiosa, não faz a menor diferença.
Os reformistas, ao exortarem as pessoas a se afastarem do egoísmo, estão querendo dirigir-se aos empresários e aos capitalistas e, às vezes, embora timidamente, também aos assalariados. Entretanto, a economia de mercado é um sistema no qual o consumidor é soberano. Tais exortações deveriam ser dirigidas aos consumidores e não aos produtores.
Deveriam persuadir os consumidores a renunciar à preferência por mercadorias melhores e mais baratas, convencendo-os a comprar mercadorias piores e mais caras, a fim de não prejudicar o produtor menos eficiente. Deveriam persuadi-los a diminuir suas próprias compras para dar aos mais pobres a oportunidade de comprar mais. Quem quiser que o consumidor aja dessa maneira terá de dizer-lhe claramente o que comprar, em que quantidade, de quem e por que preços; terá que dispor de um aparato de coerção e compulsão para fazer com que essas ordens sejam acatadas. Mas, se assim for, terá adotado exatamente o sistema de controle autoritário que a reforma moral pretendia tornar desnecessário.
O grau de liberdade que os indivíduos podem usufruir num contexto de cooperação social depende da harmonização do ganho privado com o bem público. Na medida em que o indivíduo, ao perseguir o seu próprio bem-estar, aumenta também — ou pelo menos não prejudica — o bem-estar de seus semelhantes, as pessoas podem dedicar-se às suas atividades como bem entenderem, sem que isso coloque em risco a preservação da sociedade e os interesses alheios. Surge, assim, um reino de liberdade e de iniciativa individual, um reino no qual o homem é livre para escolher e para agir como bem entender. É a existência dessa liberdade — que os socialistas e intervencionistas desdenhosamente intitulam de “liberdade econômica” — que torna possível a existência de todas as demais liberdades compatíveis com a cooperação social sob o signo da divisão do trabalho. É a economia de mercado ou capitalismo, com seu corolário político (os marxistas diriam: com sua “superestrutura”), o governo representativo.
Os que alegam existir um conflito entre a avidez dos vários indivíduos ou entre a avidez dos indivíduos, de um lado, e o bem comum, de outro, não têm alternativa a não ser propor a supressão do direito de os indivíduos escolherem e agirem por conta própria. Terão de substituir a livre escolha dos cidadãos pela hegemonia de um comitê central da produção.
Na sua visão de uma boa sociedade, não há espaço para a iniciativa privada. A autoridade ordena e todos são obrigados a obedecer.
5 — O significado de laissez-faire
Na França no século XVIII a expressão laissez-faire, laissez-passer foi a fórmula adotada pelos defensores da causa da liberdade para condensarem a sua filosofia. Aspiravam a implantar uma sociedade de mercado não obstruído. Para poder atingir esse objetivo, propunham a abolição de todas as leis que impedissem pessoas mais esforçadas e mais eficientes de superar seus competidores menos esforçados e menos eficientes, e que impedissem a livre circulação de bens e de pessoas. Era esse o significado dessa famosa máxima.
Nessa nossa época em que prevalece uma preferência passional pela onipotência governamental, a expressão laissez-faire está desacreditada. A opinião pública a considera hoje uma manifestação de depravação moral e de suprema ignorância.
Na visão dos intervencionistas, a escolha estaria entre “forças automáticas” e “planejamento consciente”.[4] É evidente, acrescentam eles, que confiar em processos automáticos é pura estupidez. Nenhuma pessoa razoável poderia seriamente recomendar não se fazer nada e deixar as coisas seguirem seu curso sem a interferência de uma ação intencional. Um plano, pelo simples fato de apresentar um ordenamento racional, é incomparavelmente superior à ausência de qualquer planejamento. Laissez-faire, dizem eles, significa: deixem perdurar as desgraças; não tentem melhorar a sorte da humanidade por meio de ações razoáveis.
Esse argumento é inteiramente falacioso; defende o planejamento baseando-se exclusivamente numa interpretação metafórica inadmissível. Baseia-se apenas nas conotações implícitas ao termo “automático”, usado habitualmente, num sentido metafórico, para explicar o funcionamento do mercado.[5] Automático, segundo o Concise Oxford Dictionary,[6] significa “inconsciente, ininteligente, meramente mecânico”. Automático, segundo o Webster’s Collegiate Dictionary,[7] significa “não sujeito ao controle da vontade … feito sem pensar e sem intenção ou direção consciente”. Que vitória para o defensor do planejamento poder dispor desse trunfo!
Na realidade, a opção não é entre um mecanismo rígido e sem vida de um lado e o planejamento consciente do outro. A alternativa não é ter ou não ter um plano. A questão essencial é: quem deve fazer o plano? Deveria cada indivíduo planejar para si mesmo ou caberia a um governo benevolente planejar por todos? A disputa não é automatismo “versus” ação consciente; é ação individual autônoma “versus” ação exclusiva do governo. É liberdade “versus” onipotência governamental.
Laissez-faire não significa: deixem funcionar as forças mecânicas e desalmadas. Significa: deixem os indivíduos escolherem de que maneira desejam cooperar na divisão social do trabalho; deixem que os consumidores determinem o que os empresários devem produzir. Planejamento significa: deixem ao governo a tarefa de escolher e a capacidade de impor suas decisões por meio do aparato de coerção e compulsão.
No regime de laissez-faire, diz o planejador, os bens produzidos não são aqueles de que as pessoas “realmente” precisam, e sim aqueles cuja venda proporciona maiores retornos.
O objetivo do planejamento é dirigir a produção no sentido de satisfazer as “verdadeiras” necessidades. Mas quem deve decidir quais são as “verdadeiras” necessidades?
O professor Harold Laski, ex-presidente do Partido Trabalhista inglês, por exemplo, fixaria como objetivo de um plano geral de investimentos “que a poupança fosse usada para construir habitações e não cinemas”.[8] Não vem ao caso o fato de que alguém possa concordar com o ponto de vista do professor de que habitação seja mais importante do que fitas de cinema. O que importa é que os consumidores, ao gastarem diariamente uma parte do seu dinheiro adquirindo entradas de cinema, estão manifestando uma opinião diferente. Se o povo inglês, o mesmo povo que votou maciçamente no Partido Trabalhista, deixasse de frequentar os cinemas e preferisse gastar esse dinheiro em habitações melhores, a motivação pelo lucro faria com que se investisse mais na construção de casas e de apartamentos e menos em superproduções cinematográficas. No fundo, o desejo do Sr. Laski era afrontar a vontade dos consumidores, e substituí-la pela sua própria vontade. Era suprimir a democracia do mercado e arvorar-se em tzar da produção. Talvez estivesse convencido de que suas razões fossem mais elevadas e de que, como se fosse um super-homem, tivesse sido chamado para impor os seus valores à massa de seres inferiores. Mas, então, deveria ter a franqueza de reconhecê-lo claramente.
Toda essa louvação apaixonada da proeminência da ação governamental não passa de um pobre disfarce para a autodeificação do intervencionista. O grande deus Estado só é assim considerado porque se espera que faça exclusivamente aquilo que o defensor do intervencionismo gostaria que fosse feito. O único plano genuíno é aquele aprovado pessoalmente pelo próprio planejador. Todos os outros planos são meras falsificações. Ao se referir a “plano”, o que o autor de um livro sobre os benefícios do planejamento tem em mente é, sem dúvida, o seu próprio plano. Não lhe ocorre a possibilidade de que o plano implementado pelo governo possa ser diferente do seu. Os vários planejadores só concordam num ponto: na sua rejeição ao laissez-faire, isto é, a que o indivíduo possa escolher e agir. O desacordo entre eles é total, quando se trata de definir o plano a ser adotado. Sempre que se lhes mostram os manifestos e incontáveis defeitos das políticas intervencionistas, reagem dizendo que essas falhas são o resultado de um intervencionismo espúrio; o que nós defendemos, dizem eles, é o bom intervencionismo e não o mau intervencionismo. E, é claro, bom intervencionismo é o preconizado por quem assim o qualifica.
Laissez-faire significa: deixem o homem comum escolher e agir; não o forcem a se submeter a um tirano.
6 — A interferência direta do governo no consumo
Ao analisar os problemas econômicos do intervencionismo não precisamos nos ocupar daquelas medidas do governo cujo objetivo é influenciar imediatamente a escolha de bens de consumo pelos consumidores. Toda interferência do governo na atividade econômica afeta indiretamente o consumo; por alterar os dados do mercado, altera também as valorações e a conduta dos consumidores. Mas, se o objetivo do governo é apenas forçar o indivíduo a consumir bens diferentes daqueles que consumiria, se não houvesse a coerção governamental, não haveria problema especial a ser examinado pela ciência econômica. É fora de dúvida que um forte e implacável aparato policial é capaz de obrigar o indivíduo a consumir o que não deseja.
Ao lidar com as escolhas dos consumidores, não perguntamos quais os motivos que o levaram a comprar a e a não comprar b. Investigamos apenas os efeitos que essa efetiva conduta dos consumidores provoca sobre os preços de mercado e, portanto, sobre a produção.
Esses efeitos não dependem das razões que levaram os indivíduos a comprarem a e a não comprarem b; dependem apenas dos atos concretos de comprar e de abster-se de comprar. É indiferente para a formação do preço de máscaras contra gases que as pessoas as comprem por vontade própria ou porque o governo as força a ter uma máscara contra gases. O que importa é o tamanho da demanda.
Os governos que desejam manter uma aparência externa de liberdade, mesmo quando a cerceiam, procuram disfarçar a sua interferência direta no consumo sob o manto de uma interferência na atividade das empresas. O propósito da chamada lei seca americana era o de impedir que os cidadãos do país bebessem bebidas alcoólicas. Mas, hipocritamente, a lei não tornava ilegal e nem penalizava o ato de beber em si. Simplesmente proibia a fabricação, a venda e o transporte de bebidas alcoólicas, ou seja, as transações comerciais que precedem o ato de beber. A idéia implícita é a de que as pessoas entregam-se ao vício da bebida somente porque empresários inescrupulosos as induzem a isso. Na realidade, é claro que a lei seca visava a usurpar a liberdade que tem cada um de gastar seu dinheiro e viver sua vida como melhor lhe aprouvesse. As restrições impostas às empresas eram apenas a forma instrumental de atingir esse objetivo.
Os problemas relativos à interferência direta do governo no consumo não são problemas catalácticos; vão muito além do âmbito da cataláxia e dizem respeito aos aspectos fundamentais da vida humana e da organização social. Se é verdade que o governo recebe sua autoridade de Deus e que a Divina Providência o fez guardião das massas ignorantes e estúpidas, então cabe-lhe certamente regulamentar todos os aspectos da conduta humana. O governante enviado de Deus sabe melhor que os seus súditos o que seria bom para eles; é seu dever protegê-los do mal que infligiriam a si mesmos se tivessem liberdade para agir.
Muitas pessoas que se consideram “realistas” não chegam a perceber a importância dos princípios que estamos abordando. Alegam que esses temas não podem ser tratados a partir de um ponto de vista que consideram como filosófico e acadêmico. Argumentam que a abordagem de tais temas se baseia exclusivamente em considerações de natureza prática.
Ninguém poderia negar, continuam eles, que existem pessoas que fazem mal a si mesmas e a suas famílias ao consumirem drogas estupefacientes. Só um ideologista visionário seria tão dogmático a ponto de se opor a que o governo regulamentasse o tráfico de drogas; os benefícios dessa interferência não podem ser contestados.
Entretanto, o caso não é assim tão simples. O ópio e a morfina são certamente drogas nocivas que geram dependência. Mas, uma vez que se admita que é dever do governo proteger o indivíduo contra sua própria insensatez, nenhuma objeção séria pode ser apresentada contra outras intervenções. Não faltariam razões para justificar a proibição de consumo de álcool e nicotina. E por que limitar-se apenas à proteção do corpo? Por acaso os males que um homem pode infringir à sua mente e à sua alma não são mais graves do que os danos corporais? Por que não impedi-lo de ler maus livros e de assistir a maus espetáculos, de contemplar pinturas e esculturas ruins e de ouvir música de má qualidade? As consequências causadas por ideologias nocivas são, certamente, muito mais perniciosas, tanto para o indivíduo como para a sociedade, do que as causadas pelo uso de drogas.
Essas preocupações não são apenas espectros imaginários que apavoraram pensadores solitários. É um fato inegável o de que nenhum governo paternalista, antigo ou moderno, jamais hesitou em regulamentar as ideias, crenças e opiniões de seus súditos. Se for abolida a liberdade de o homem determinar o seu próprio consumo, todas as outras liberdades também serão abolidas. Os que ingenuamente defendem a intervenção do governo no consumo iludem-se ao negligenciar o que desdenhosamente chamam de aspecto filosófico do problema. Contribuem inadvertidamente para o estabelecimento da censura, da inquisição, da intolerância religiosa e da perseguição aos dissidentes.
Ao estudarmos a cataláxia do intervencionismo não estamos analisando as consequências políticas da interferência direta do governo no consumo dos cidadãos. Estamos preocupados exclusivamente com aquelas interferências que visam forçar os empresários e os capitalistas a empregarem os fatores de produção de maneira diferente da que empregariam se obedecessem unicamente às ordens do mercado. Não estamos levantando a questão de saber se uma tal intervenção é boa ou má, segundo um ponto de vista qualquer preconcebido. Estamos limitando-nos a perguntar se a intervenção pode ou não atingir os objetivos dos que a defendem e a recomendam.
Corrupção
Uma análise do intervencionismo ficaria incompleta sem uma referência ao fenômeno corrupção.
Não há praticamente uma intervenção sequer do governo no mercado que, do ponto de vista dos cidadãos por ela afetados, não possa ser qualificada como um confisco ou como um donativo. Como regra geral, favorece um indivíduo ou um grupo de indivíduos às custas de outro indivíduo ou de outros grupos de indivíduos. Mas, em muitos casos, o mal causado a algumas pessoas não corresponde a qualquer vantagem que tenha beneficiado outras pessoas.
Não existe um método que se possa qualificar de justo e equitativo para exercer o tremendo poder que o intervencionismo coloca nas mãos do legislador e do governante. Os defensores do intervencionismo pretendem substituir os efeitos da propriedade privada e dos interesses estabelecidos — que consideram “socialmente” nocivos — pelo ilimitado arbítrio do legislador sábio e desinteressado e de seus infatigáveis auxiliares, os burocratas. Para essas pessoas, o homem comum é uma criança desamparada, necessitando urgentemente de tutela paternal para protegê-lo das artimanhas de um bando de trapaceiros. Rejeitam todas as noções tradicionais de lei e de legalidade em nome de uma ideia de justiça “mais elevada e mais nobre”. O que quer que façam é sempre bem visto porque prejudica os que desejam reter egoisticamente aquilo que, segundo esse conceito mais elevado de justiça, devia pertencer a outras pessoas.
As noções de egoísmo e altruísmo, da forma como empregadas nesses raciocínios, são contraditórias e inúteis. Conforme assinalado antes, toda ação visa a atingir um estado de coisas que convém mais ao ator do que o que prevaleceria na ausência da ação. Nesse sentido, toda ação deve ser qualificada de egoísta. O homem que faz donativos para alimentar crianças famintas o faz porque atribui maior valor à satisfação que espera obter dessa doação do que à que obteria se gastasse seu dinheiro de outra maneira, ou porque espera ser recompensado num outro mundo. O político, nesse sentido, é sempre egoísta, quer defenda um programa popular a fim de ser eleito, quer permaneça fiel às suas convicções — impopulares -, privando-se assim dos benefícios que poderia obter se os traísse.
Na terminologia anticapitalista, as palavras egoísta e altruísta são usadas para classificar as pessoas segundo o ponto de vista de uma doutrina que considera a igualdade de riqueza e de renda como a única situação natural e justa; que estigmatiza os que possuem ou ganham mais do que a média como exploradores, e que condena as atividades empresariais como prejudiciais ao bem comum. Exercer uma atividade empresarial, depender direta ou indiretamente da aprovação ou desaprovação dos consumidores, cortejar o comprador para merecer a sua preferência e ter lucro ao conseguir satisfazê-lo melhor do que os seus competidores é, do ponto de vista da ideologia dos burocratas, algo egoísta e vergonhoso.
Somente os que estão na folha de pagamento do governo podem ser considerados altruístas e nobres.
Infelizmente os governantes e os funcionários públicos não são anjos. Percebem logo que suas decisões podem significar, para os empresários, perdas consideráveis ou, às vezes, ganhos extraordinários. Existem certamente burocratas que não aceitam suborno; mas existem outros que anseiam por uma oportunidade “segura” de “partilhar” os ganhos permitidos por suas decisões.
É inevitável que haja favoritismo na aplicação de medidas protecionistas. Tomemos, por exemplo, o caso das licenças de exportação ou importação. Essas licenças valem dinheiro.
A quem deveria o governo dar uma licença e a quem deveria negá-la? Não há nenhum critério neutro e objetivo que permita tornar essa decisão livre de preconceitos e favoritismos. Pouco importa se para obtenção da licença seja necessário fazer pagamentos “por baixo da mesa”. O escândalo é o mesmo quando a licença é concedida a pessoas que tenham prestado — ou que se espera venham a prestar — outros tipos de serviços significativos (por exemplo, como eleitores) às pessoas que detêm o poder de conceder a licença.
A corrupção é uma consequência natural do intervencionismo. Podemos deixar aos historiadores e aos advogados a tarefa de lidar com os problemas decorrentes desse fato.[9]
[1] Ver página ….
[2] Literalmente, jurisprudência ideal. Escola de juristas alemães segundo a qual as leis ideais são aquelas baseadas na análise lógica de conceitos legais. (N.T.)
[3] Ver adiante p. ………
[4] Ver A.H. Hansen, “Social Planning for Tomorrow”, in The United States After the War, Cornell University Lectures, Ithaca, 1945, p. 32-33.
[5] Ver página …..
[6] 3. ed. Oxford, 1934, p. 74.
[7] 5. ed. Springfield, 1946, p.73.
[8] Ver “Revolution by Consent”, contendo discursos de Laski feitos pelo rádio, reeditados em Talks, vol.10, n. 10, p.7, outubro, 1945.
[9] É muito comum, atualmente, justificar as revoluções de inspiração comunista pela denúncia à corrupção do governo derrubado. Uma parte da imprensa americana e alguns membros do governo dos EUA procuraram justificar o apoio que deram primeiro aos comunistas chineses e depois aos cubanos, acusando de corruptos os regimes de Chiang Kaishek e mais tarde o de Batista. Mas, se for assim, toda revolução comunista contra um governo que não esteja plenamente comprometido com o laissez-faire seria justificável.