Capítulo 2 – Propriedade, Contrato, Agressão, Capitalismo, Socialismo
Comecemos com uma explicação da condição prévia necessária para o conceito de propriedade emergir.[1]Para que surja um conceito de propriedade deve haver uma escassez de bens. Se não houver escassez, e todos os bens forem chamados de “bens gratuitos”, cujo uso por qualquer pessoa para qualquer finalidade não excluísse (ou interferisse ou restringisse) de alguma maneira seu uso por qualquer outra pessoa para qualquer outro propósito, a propriedade, então, não seria necessária. Se, digamos, devido a alguma superabundância paradisíaca de bananas, meu consumo atual de bananas não reduzisse meu próprio suprimento futuro de bananas (e possivelmente o consumo), nem o presente nem o futuro suprimento de bananas de qualquer outra pessoa, então, a atribuição dos direitos de propriedade, neste caso se referindo às bananas, seria supérfluo. Para desenvolver o conceito de propriedade é necessário que os bens sejam escassos, de modo que seja possível surgir conflitos sobre o uso desses bens. É função dos direitos de propriedade evitar esses possíveis conflitos sobre o uso dos recursos escassos através da atribuição de direitos de propriedade exclusiva. A propriedade é, dessa forma, um conceito normativo, concebido para tornar possível uma interação livre de conflitos pela estipulação de regras de conduta (normas) mútuas e vinculativas em relação aos recursos escassos.[2] Não é preciso observar muito para verificar que há, na verdade, uma escassez de bens, de todos os tipos de bens, em qualquer lugar, e assim se torna evidente a necessidade dos direitos de propriedade. Na realidade, até mesmo se assumirmos que vivemos no Jardim do Éden, onde haveria uma imensa abundância de tudo o que era preciso não apenas para sustentar a vida de alguém, mas para saciar cada conforto simplesmente estendendo as mãos para pegar o que fosse necessário, o conceito de propriedade teria que, necessariamente, ser desenvolvido. Pois até mesmo sob essas circunstâncias “ideais”, cada corpo físico de um indivíduo ainda seria um recurso escasso e por isso existiria a necessidade de estabelecerem regras de propriedade, ou seja, regras relativas ao corpo das pessoas. As pessoas não estão acostumadas a pensar em seu próprio corpo como um bem escasso, mas ao imaginar a situação mais ideal que se pode esperar, como o Jardim do Éden, torna-se possível perceber que o corpo de alguém é realmente o protótipo de um bem escasso para que o uso dos direitos de propriedade, ou seja, os direitos de propriedade exclusiva, sejam de alguma maneira estabelecidos com a finalidade de evitar conflitos.
Na realidade, enquanto uma pessoa age[3], ou seja, enquanto uma pessoa tenta intencionalmente alterar um estado de coisas que é subjetivamente percebido e avaliado como menos satisfatório para um estado que parece mais recompensador, essa ação envolve necessariamente uma escolha relativa ao uso do corpo desse indivíduo. E escolher, preferindo uma coisa ou estado a outro, significa, evidentemente, que nem tudo, que nem todos os prazeres e satisfações possíveis, podem ser desfrutados ao mesmo tempo, mas que algo considerado menos valioso deve ser preterido com a finalidade de obter alguma outra coisa considerada mais valiosa[4]. Assim, escolher sempre resulta em custos: renunciar possíveis prazeres porque os meios necessários para obtê-los são escassos e estão ligados a algum uso alternativo que promete retornos muito mais valiosos do que as oportunidades perdidas.[5] Até no Jardim do Éden eu não poderia, simultaneamente, comer uma maçã, fumar um cigarro, tomar uma bebida, subir numa árvore, ler um livro, construir uma casa, brincar com meu gato, dirigir um carro etc. Eu teria que fazer escolhas e só poderia realizar essas ações em sequência. E seria assim porque só há um corpo que eu posso utilizar para realizá-las e para desfrutar a satisfação advinda de cada uma dessas realizações. Eu não tenho uma abundância de corpos que me permitiria aproveitar, simultaneamente, todas as satisfações possíveis num único momento de êxtase. Num outro aspecto, eu também estaria limitado pela escassez: na medida em que esse recurso escasso chamado de “corpo” não é indestrutível e nem equipado com saúde e energia eternas, mas um organismo com apenas um tempo de vida limitado, o tempo também é escasso. O tempo utilizado para buscar o objetivo A reduz o tempo disponível para perseguir outros objetivos. E quanto mais tempo se gasta para atingir o resultado desejado, maiores serão os custos envolvidos na espera e maior deve ser a satisfação esperada para justificar esses custos.
Portanto, por causa da escassez do corpo e do tempo, até mesmo no Jardim do Éden teriam que ser estabelecidas regulamentações de propriedade. Sem elas, e admitindo agora que existe mais de uma pessoa, que o alcance de sua ações se sobrepõem, e que não há uma preestabelecida harmonia e sincronização de interesses entre esses indivíduos, os conflitos sobre o uso do próprio corpo seriam inevitáveis. Eu, por exemplo, poderia querer usar o meu corpo para desfrutar uma xícara de chá enquanto outra pessoa poderia querer começar um relacionamento amoroso com meu corpo, me impedindo assim de beber o chá e também reduzindo o tempo disponível para buscar meus próprios objetivos por meio deste corpo. Para evitar esses possíveis conflitos, devem ser criadas regras de propriedade exclusiva. Na verdade, desde que haja ação, há necessidade de se estabelecer regras de propriedade. Para manter as coisas simples e livres de detalhes que distraiam a atenção, continuemos a admitir, por outra extensão da análise, que nós, de fato, habitamos o Jardim do Éden, onde exclusivamente um corpo de alguém, o espaço que ocupa e o tempo são recursos escassos. O que o protótipo de um bem escasso pode nos dizer acerca da propriedade e de seus derivados conceituais?
Enquanto que até mesmo num mundo com um único tipo de recurso escasso todas as espécies de normas que regulam a propriedade exclusiva em relação aos meios escassos sejam concebíveis a princípio (por exemplo, uma norma como “às segundas-feiras eu determino o uso dos nossos corpos, às terças-feiras você determina o uso etc.”), é certo que nem todas as normas teriam a mesma chance de serem propostas e aceitas. Então, parece ser mais adequado iniciar a análise com a norma de propriedade, que seria mais provável de ser aceita pelos habitantes do Éden como a “posição natural” em relação à atribuição de direitos de propriedade exclusiva nos corpos. Na verdade, nesse estágio do argumento ainda não estamos preocupados com a ética e com o problema da justificação moral das normas. Dessa forma, enquanto pode ser muito bem admitido desde o início que estou realmente debatendo tardiamente que a posição natural é a única moralmente defensável, e que embora eu esteja convencido de que esta é natural porque é moralmente defensável, neste momento, natural não sugere qualquer conotação moral. É simplesmente uma categoria sócio-psicológica usada para indicar que essa posição provavelmente encontraria um maior apoio na opinião pública[6]. Realmente, sua naturalidade é expressa pelo próprio fato de que ao falar sobre corpos também é quase impossível evitar o uso de expressões possessivas (indicativo de posse). Um corpo é normalmente classificado como um corpo específico de alguém: meu corpo, o seu, o dele etc. (e, consequentemente, acontece o mesmo quando se fala de ações!), e ninguém tem o menor problema para distinguir o que é meu, seu etc. Claramente, ao fazê-lo, alguém está atribuindo títulos de propriedade e distinguindo entre proprietários privados e recursos escassos.
Qual é, então, a posição natural em relação à propriedade contida na maneira natural de se falar sobre corpos? Toda pessoa tem o direito exclusivo de propriedade de seu corpo dentro dos limites de sua superfície. Todo indivíduo pode usar seu corpo para o que ele considera ser o melhor para seus interesses imediatos e de longo prazo, bem-estar ou satisfação, desde que não interfira nos direitos de outra pessoa de controlar o uso de seu próprio corpo. Essa “propriedade” do próprio corpo significa o direito de alguém para convidar (ou concordar com) outra pessoa a fazer algo com o respectivo corpo: meu direito de fazer com o meu corpo tudo o que eu quiser, o que inclui o direito de pedir e de deixar que alguém use o meu corpo, ame-o, examine-o, injete nele medicamentos ou drogas, altere sua aparência física e até mesmo agrida, danifique ou mate-o, se isso for o que eu gostar e concordar. Relações interpessoais desse tipo são e serão chamadas de trocas contratuais. Elas são caracterizadas pelo fato de que um acordo sobre o uso dos recursos escassos é obtido, acordo este baseado no respeito mútuo e no reconhecimento de cada um e de todos os parceiros de troca sobre o domínio do controle exclusivo de seus respectivos corpos. Por definição, essas trocas contratuais, embora, em retrospecto, não sejam necessariamente vantajosas para cada um e para todos os parceiros de troca (não gostei da minha aparência depois da cirurgia, mesmo que o médico tenha feito exatamente aquilo que eu pedi que ele fizesse no meu rosto) são sempre, e necessariamente, mutuamente vantajosas para cada participante ex ante, caso contrário, a troca simplesmente não se realizaria.
Se, por outro lado, uma ação executada indesejadamente invade ou altera a integridade física do corpo de outra pessoa, fazendo um uso dele que não agrada a esta outra pessoa, essa ação, de acordo com a posição natural em relação à propriedade, é chamada de agressão.[7] Seria agressão se uma pessoa tentasse satisfazer seus desejos sexuais ou sádicos mediante estupro ou batendo em outra pessoa sem que ela tenha expressamente consentido. E também seria agressão se uma pessoa fosse impedida fisicamente de executar determinadas ações com seu próprio corpo que poderia não agradar outra pessoa (como o uso de meias rosa ou de cabelo cacheado, ou beber diariamente, ou primeiro dormir e depois filosofar em vez do contrário), mas que se de fato fossem executadas não iriam, por si só, provocar uma mudança na integridade física do corpo de qualquer outra pessoa.[8] Então, por definição, um ato agressivo significa, sempre e necessariamente, que uma pessoa, ao executá-lo, aumenta seu prazer às custas da diminuição do prazer de outra.
Qual é a razão fundamental implícita dessa posição natural em relação à propriedade? Na base da teoria natural da propriedade reside a ideia de basear a atribuição de um direito exclusivo de propriedade na existência de um vínculo objetivo, intersubjetivamente determinável, entre o proprietário e a propriedade, e, mutatis mutandis, de identificar como agressivas todas as reivindicações de propriedade que só podem invocar a seu favor uma evidência puramente subjetiva. Enquanto eu posso alegar a meu favor, no que se refere ao meu direito de propriedade sobre o meu corpo, o fato objetivo de que eu fui o primeiro ocupante desse corpo — seu primeiro usuário — qualquer outra pessoa que pretenda ter o direito de controlar esse mesmo corpo nada pode alegar nesse sentido. Ninguém poderia considerar o meu corpo como sendo um produto de sua vontade da mesma forma como eu posso considerá-lo um produto da minha vontade; essa pretensão ao direito de determinar o uso desse recurso escasso que chamo de “meu corpo” seria uma reivindicação de não-usuários, de não-produtores, e estaria baseada exclusivamente na opinião subjetiva, ou seja, numa declaração meramente verbal de que as coisas deveriam ser desta ou daquela forma. Obviamente, essas pretensões verbais também poderiam apontar (e quase sempre irão) para certos fatos (“Eu sou maior, mais esperto, mais pobre ou muito especial etc.”.), e poderiam, dessa forma, tentar legitimar-se. Mas fatos como esses não estabelecem (e nem poderiam estabelecer) qualquer vínculo objetivo entre um determinado recurso escasso e uma pessoa específica. No que se refere a cada recurso específico, a propriedade de cada um pode ser, por essa razão, estabelecida ou rejeitada. Esse direito de propriedade, surgido do nada e com vínculos puramente verbais entre proprietários e as coisas possuídas, é chamada de agressivo, segundo a teoria natural da propriedade. Quando comparado com esta, meu direito de propriedade sobre o meu corpo pode apontar para um determinado vínculo natural; e assim o é porque meu corpo foiproduzido, e tudo o que foi produzido (em contraste com as coisas “dadas”) tem, logicamente, uma determinada conexão com algum produtor (ou produtores) definido; neste caso, eu próprio. Para evitar qualquer equívoco, “produzir” não quer dizer “criar do nada” (afinal, meu corpo também é uma coisa dada naturalmente); significa alterar uma coisa naturalmente dada de acordo com um plano de transformar a natureza. Isso também não quer dizer “transformar toda e qualquer parte da coisa” (afinal, meu corpo tem muitas partes em relação às quais eu nunca fiz nada!); ao invés disso, significa transformar uma coisa dentro de (incluindo ou excluindo) limites, ou, ainda mais precisamente, criar delimitações para as coisas. E, finalmente, “produzir” também não quer dizer que o processo de produção tenha que continuar indefinidamente (afinal, às vezes estou dormindo e o meu corpo não é, certamente, um produto das minhas ações nesse momento), apenas significa que algo foi produzido no passado e pode ser reconhecido como tal. São essas reivindicações de propriedade, que podem ser derivadas de esforços produtivos delimitadores passados e que podem ser ligadas a indivíduos específicos enquanto produtores, que lembram o “natural” e “não-agressivo”.[9]
As ideias do capitalismo e do socialismo devem estar um pouco mais claras neste momento. Mas antes de deixar o Jardim do Éden de uma vez por todas, dever-se-ia olhar para as consequências da introdução, no paraíso, dos elementos da propriedade estabelecida agressivamente, pois isso ajudaria a esclarecer, pura e simplesmente, o problema social e econômico central de cada tipo de socialismo real, ou seja, do socialismo num mundo de completa escassez, cuja análise detalhada é a preocupação dos capítulos seguintes.
Até mesmo na terra do leite e do mel, as pessoas poderiam, evidentemente, escolher diferentes estilos de vida, definir objetivos diversos, ter padrões diferentes a respeito de que tipo de personalidade gostariam de desenvolver e sobre quais realizações prefeririam se empenhar para conquistar. Realmente, não haveria necessidade de se trabalhar para ganhar a vida enquanto houvesse uma superabundância de tudo. Mas, drasticamente falando, uma pessoa ainda poderia escolher se tornar um bêbado ou um filósofo, o que significa dizer, mais tecnicamente, que poderia optar entre usar o corpo de uma forma mais ou menos compensadora do ponto de vista do agente, ou usá-lo de uma maneira em que os resultados só seriam colhidos num futuro mais ou menos distante. Decisões como as mencionadas devem ser chamadas de “decisões de consumo”. Decisões, por outro lado, de usar o corpo em troca de um retorno posterior, ou seja, decisões induzidas por alguma recompensa ou satisfação previstas num futuro mais ou menos distante, exigindo do agente superar a desutilidade da espera (o tempo é escasso!), devem ser chamadas de “decisões de investimento” — decisões que significam investir no “capital humano”, no capital incorporado no próprio corpo físico.[10]
Admitamos agora que a propriedade estabelecida agressivamente seja introduzida. Considerando que, antes, cada pessoa era a proprietária exclusiva de seu corpo e poderia decidir se tornar um bêbado ou um filósofo, agora se instituiu um sistema no qual o direito da pessoa de determinar como usar o seu corpo é cerceado ou completamente eliminado, e este direito é, em parte ou totalmente, delegado a outra pessoa que não está naturalmente ligada ao respectivo corpo como seu produtor. Qual seria a consequência disso? A abolição da propriedade privada do corpo de alguém pode ter amplas consequências: os não-produtores podem ter o direito de determinar todos os usos do meu corpo durante todo o tempo, ou o direito de fazê-lo pode ser restrito em relação ao tempo e/ou aos domínios, e essas restrições podem ser novamente flexibilizadas (com os não-produtores tendo o direito de modificar as definições restritivas ao seu bel prazer) ou determinadas de uma vez por todas, e, portanto, as consequências podem, obviamente, ser mais ou menos drásticas. Mas, independentemente do nível, a socialização da propriedade sempre, e necessariamente, produz dois tipos de resultados. O primeiro, “econômico” no sentido mais estrito do termo, é a redução no montante do investimento no capital humano, conforme definido anteriormente. O proprietário natural de um corpo não pode deixar de tomar decisões em relação àquele corpo na medida em que não comete suicídio e decide permanecer vivo, não importa o quão restritos estejam seus direitos de propriedade.
Mas já que ele não pode mais decidir sobre si mesmo, sem ser importunado, sobre o que fazer com o próprio corpo, o valor que atribuiu ao seu corpo é agora menor; a satisfação desejada, o ganho psíquico, isto é, o que ele pode obter do seu próprio corpo ao utilizá-lo para determinadas ações, é reduzido porque a gama de opções disponíveis foi limitada. Então, como cada ação implica, necessariamente, em custos (como explicado anteriormente), e com uma dada inclinação para superar os custos em troca de um lucro ou recompensa esperados, o proprietário natural é confrontado com uma situação em que os custos da ação devem ser reduzidos para trazê-los de volta ao patamar do ganho menor presumido. No Jardim do Éden, há somente uma forma de fazê-lo: encurtando o tempo de espera, reduzindo a sua desutilidade, e optando por um curso de ação que promete retornos antecipados. Assim, a introdução da propriedade estabelecida agressivamente conduz a uma tendência de diminuição das decisões de investimento e de favorecimento das decisões de consumo. Em termos drásticos, tal quadro leva a uma inclinação de transformar filósofos em bêbados. Essa tendência é permanente e mais evidente quando a ameaça de intervenção contra os direitos de propriedade natural for permanente, e é menor na medida em que tal ameaça esteja restrita em certas épocas e domínios. Mas, em todo caso, a taxa de investimento no capital humano é menor do que seria se o direito de controle exclusivo dos proprietários naturais sobre seus corpos permanecesse intacto e absoluto.
A segunda consequência deve ser qualificada de social. A introdução da propriedade estabelecida agressivamente significa uma mudança na estrutura social, uma alteração na composição da sociedade em relação à personalidade e aos tipos de comportamento. Abandonar a teoria natural da propriedade resulta numa redistribuição de renda. O ganho psíquico das pessoas na qualidade de usuários do “próprio” corpo natural, de pessoas que se expressam através de seus corpos, e se satisfazem ao fazê-lo, é reduzido às custasde um aumento do ganho psíquico daquelas pessoas na qualidade de invasores dos corpos de terceiros. Tornou-se relativamente mais difícil e mais caro obter satisfação no uso do próprio corpo sem invadir o de outros, e relativamente menos difícil e caro auferir satisfação ao usar o corpo de outros para seus próprios fins. Esse fato por si só não implica qualquer mudança social, mas uma vez que uma única hipótese empírica é demonstrada, passa a implicar: admitindo-se que há o desejo humano de se satisfazer às custas de uma perda de satisfação do outro pela instrumentalização do corpo de um terceiro, algo que não pode ser incutido em todos e na mesma proporção, mas que existe, às vezes e até certo ponto, em algumas pessoas, e que, de modo concebível, pode ser suprimido, estimulado e até favorecido por um determinado regime institucional, as consequências são iminentes. E, seguramente, essa hipótese é verdadeira. Dessa forma, a redistribuição de oportunidades para a obtenção de ganho deve resultar em mais pessoas utilizando a agressão para obter uma satisfação pessoal e/ou mais pessoas tornando-se mais agressivas, ou seja, alterando suas condutas de maneira crescente de não-agressivas para agressivas, e, como resultado, modificando lentamente as suas personalidades. Essa mudança na estrutura do caráter, na composição moral da sociedade, conduz, por sua vez, a outra redução no nível de investimento no capital humano.
Em resumo, as duas consequências que detalhamos são as razões mais fundamentais de por que o socialismo é um sistema de regime de propriedade economicamente inferior. De fato, ambos os resultados reaparecerão repetidamente no curso das análises seguintes dos regimes políticos socialistas. Tudo o que resta agora é explicar a teoria natural da propriedade no que diz respeito à escassez no mundo real, pois este é o ponto de partida de todas as formas do socialismo real.
Inobstante algumas diferenças evidentes entre os corpos e outros recursos escassos, todas as distinções conceituais podem ser realizadas e aplicadas novamente sem dificuldades: ao contrário dos corpos, que nunca são “sem dono”, mas sempre tem um proprietário natural, todos os outros recursos escassos podem não ter donos. Este é o caso, na medida em que permanecem em seu estado natural sem serem utilizados por alguma pessoa. Eles só se tornam propriedade de alguém quando são tratados como meios escassos, ou seja, tão logo sejam ocupados em alguns limites objetivos e utilizados por alguém de forma específica. Esse ato de adquirir recursos sem proprietários anteriores é chamado de “apropriação original”.[11] Uma vez que esses recursos sem dono são apropriados, torna-se agressão modificar, sem consentimento do proprietário, suas características físicas ou restringir sua variedade de usos, conquanto que um uso específico não afete as características físicas da propriedade de um terceiro — exatamente como no caso dos corpos. Somente no curso de um relacionamento contratual, ou seja, quando o proprietário natural dos meios escassos concorda explicitamente, é possível para um terceiro utilizar e alterar coisas previamente adquiridas. E apenas se o proprietário original ou anterior transferir deliberadamente seu título de propriedade para outra pessoa, tanto numa troca ou como um presente gratuito, esse terceiro pode se tornar o proprietário de tais coisas. Porém, ao contrário dos corpos, que pela mesma razão “natural” nunca podem não ter donos e também nunca podem ser abdicados completamente pelo proprietário natural, mas podem ser apenas “emprestados” enquanto durar o acordo entre os donos, naturalmente, todos os demais recursos escassos podem ser alienados e o dono pode renunciar para sempre à sua propriedade.[12]
Um sistema social baseado nessa posição natural sobre a atribuição dos direitos de propriedade é, e será a partir de agora, chamado de sistema puramente capitalista. E uma vez que suas ideias também podem ser entendidas como as ideias dominantes do direito privado, ou seja, das normas reguladoras das relações entre os privados, também deve ser chamado de sistema puro de lei privada.[13] Esse sistema é fundado na ideia de que para ser considerado não-agressivo as reivindicações de propriedade devem estar apoiadas (resguardadas) pelo fato “objetivo” de um ato de apropriação original, de uma propriedade anterior, ou por uma relação contratual mutuamente benéfica. Tal relação tanto pode ser uma cooperação deliberada entre proprietários ou uma transferência intencional de títulos de propriedade de alguém para um terceiro.
Se esse sistema for alterado e substituído por uma política que atribui direitos, ainda que parciais, de controle exclusivo sobre os meios escassos a pessoas ou grupos que não podem ser remetidas a um ato de uso prévio dos recursos em questão, e nem a uma relação contratual com algum usuário-proprietário anterior, então, esse sistema será qualificado como socialismo (parcial).
O objetivo dos quatro capítulos seguintes será explicar como diferentes formas de desvio de um sistema puramente capitalista, formas diversas de redistribuição dos títulos de propriedade retirando-os dos proprietários naturais das coisas (ou seja, das pessoas que colocaram recursos específicos em usos específicos e por isso estão naturalmente vinculados a eles, para pessoas que ainda nada fizeram com os recursos, mas que tão-somente fizeram uma reivindicação declaratória verbal sobre os recursos) reduz os investimentos e aumenta o consumo, além de provocar uma mudança na composição da população ao favorecer pessoas improdutivas em detrimento das produtivas.
[1] Conferir (Cf.) D. Hume, Tratado da Natureza Humana Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2001, especialmente (esp.) Livro III, Parte II, Seção II, p.559; e, Investigações Sobre o Entendimento Humano, São Paulo: Editora UNESP, 2004; cf. L. Robbins, Political Economy: Past and Present, London, 1977, esp. p. 29-33.
[2] A propósito, o caráter normativo do conceito de propriedade também cria a pré-condição suficiente para o seu aparecimento como um conceito claro: além da escassez, deve existir a “racionalidade dos agentes”, ou seja, os agentes devem ser capazes de se comunicar, discutir, argumentar, e, em particular, devem ser capazes de se envolver numa argumentação dos problemas normativos. Se não houvesse tal capacidade de comunicação, simplesmente os conceitos normativos não teriam qualquer serventia. Por exemplo, nós não tentamos evitar os conflitos sobre o uso de um determinado recurso escasso com, digamos, um elefante, pela invocação dos direitos de propriedade, porque não podemos argumentar com um elefante e, consequentemente, chegar a um acordo sobre os direitos de propriedade. A prevenção de conflitos futuros, neste caso, é um problema exclusivamente técnico (em oposição a um problema normativo).
[3] Deveríamos observar que uma pessoa não pode não agir intencionalmente, pois mesmo a tentativa de não agir, ou seja, sua decisão de não fazer nada e se manter em um estado ou posição anteriormente ocupada por si só seria qualificado como uma ação, assim tornando essa afirmação aprioristicamente verdadeira, ou seja, uma afirmação que não pode ser contestada pela experiência, pois qualquer um que tentasse refutá-la teria, desse modo, que escolher e, querendo ou não, colocar seu corpo para algum uso específico.
[4] Cf. L. v. Mises, Ação Humana, São Paulo: Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2010, esp. part. 1; M. N. Rothbard, Man, Economy and State, Los Angeles, 1970; cf. também: L. Robbins, Nature and Significance of Economic Science, London, 1935.
[5] Sobre o conceito de custo, cf. especificamente M. Buchanan, Cost and Choice, Chicago, 1969; L.S.E. Essays on Cost (ed. Buchanan e Thirlby), Indianapolis, 1981.
[6] Vale aqui mencionar que a validade de tudo o que será apresentado a seguir de forma alguma depende da exatidão da descrição da posição natural como sendo “natural”. Mesmo se alguém estivesse disposto a conceder à suposta posição natural o status de um ponto inicial arbitrário, nossa análise seria válida. As condições não importam; o que conta é o que a posição natural realmente é e o que significa enquanto tal. As análises seguintes estão preocupadas exclusivamente com este problema.
[7] Observe mais uma vez que o termo “agressão” é usado aqui sem conotações avaliativas. Só posteriormente irei demonstrar neste trabalho que a agressão como definida anteriormente é, na verdade, moralmente indefensável. Nomes são vazios; a única coisa que importa é o que realmente está se chamado de agressão.
[8] Quando eu for discutir no capítulo 7 o problema da justificação moral, voltarei a tratar da importância da distinção já feita da agressão como uma invasão da integridade física de alguém e, por outro lado, uma invasão da integridade do sistema de valores de um terceiro, que não é qualificado como agressão. Por hora basta perceber que é algum tipo de necessidade técnica para qualquer teoria da propriedade (não apenas da posição natural descrita aqui) que a delimitação dos direitos de propriedade de alguém contra os de outra pessoa seja formulado em termos físicos, objetivos e intersubjetivamente determinável. Caso contrário, seria impossível para um agente determinar ex ante se alguma ação sua em particular seria ou não uma agressão e, dessa forma, a função social das normas de propriedade (quaisquer normas de propriedade), qual seja, tornar possível uma interação livre de conflitos, não poderia ser cumprida simplesmente por razões técnicas.
[9] Vale ressaltar que o direito de propriedade decorrente da produção encontra sua limitação natural somente quando, como no caso das crianças, a coisa produzida é, por si só, um outro agente-produtor. Segundo a teoria natural da propriedade, uma criança, uma vez nascida, é tão proprietária de seu corpo quanto qualquer outra pessoa. Por essa razão, a criança não apenas pode esperar não ser fisicamente agredida, mas como proprietária de seu corpo ela tem o direito, em particular, de abandonar seus pais uma vez que é fisicamente capaz de fugir deles e dizer “não” às possíveis tentativas de recapturá-lo. Os pais têm somente direitos especiais em relação aos seus filhos — decorrente do status singular de produtores das crianças — na medida em que eles (e ninguém mais) podem legitimamente reivindicar ser o provedor da criança desde que a criança seja fisicamente incapaz de fugir e dizer “não”.
[10] Sobre a desutilidade do trabalho e da espera verificar a teoria da preferência temporal defendida por L. v. Mises, Ação Humana, São Paulo: Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2010, capítulos 5, 18, 21; idem,Socialism, Indianapolis, 1981, capítulo 8; Murray N. Rothbard, Man, Economy and State, Los Angeles, 1970, capítulos 6, 9; e também Eugen von Böhm-Bawerk, Kapital und Kapitalzins. Positive Theory des Kapitals, Meisenheim, 1967; F. Fetter, Capital, Interest and Rent, Kansas City, 1976. Para uma avaliação crítica do termo “capital humano”, em particular sobre o tratamento absurdo que esse conceito tem recebido nas mãos de alguns economistas da Universidade de Chicago (notavelmente de G. Becker, Human Capital, New York, 1975), cf. A. Rubner, The Three Sacred Cows of Economics, New York, 1970.
[11] Sobre a teoria da apropriação original cf. J. Locke, Dois Tratados do Governo Civil, Coimbra: Edições 70, 2006, esp. o Livro II: Segundo Tratado.
[12] Sobre a distinção, fluindo naturalmente do caráter único do corpo de uma pessoa em contraste com todos os outros bens escassos, entre títulos de propriedade “inalienáveis” e “alienáveis” cf. W. Evers, “Toward a Reformation of a Law of Contracts,” in: Journal of Libertarian Studies, 1977.
[13] A sobreposição do direito público sobre o direito privado maculou e comprometeu este último em certa medida e em todos os lugares. No entanto, não é difícil separar os sistemas de leis privadas existentes e encontrar o que é aqui chamado de posição natural como elemento constitutivo de seus elementos centrais — um fato que mais uma vez sublinha a “naturalidade” dessa teoria da propriedade. Cf. também o capítulo 8, n. 13.