Na Idade Média ocidental, era comum que jovens nobres treinassem para o combate militar. O sonho de muitos deles era se tornar um cavaleiro. Mas antes que estivessem aptos para combater outro homem, capaz de revidar, estes aspirantes treinavam contra espantalhos. Disparavam suas flechas, investiam suas lanças e brandiam suas espadas contra um homem de palha, que não se movia nem retaliava. Era uma etapa inicial do treinamento daqueles combatentes sem aptidão para um enfrentamento real.
No campo do embate de ideias, onde armas e exércitos são substituídos por palavras e argumentos, os combatentes sem aptidão para um enfrentamento real também preferem atacar espantalhos a atacar oponentes reais. Mas o motivo aqui não é treinamento e sim uma desesperada tentativa de vencer através de um tipo de artifício trapaceiro, uma desonestidade intelectual. Consiste em distorcer o argumento, as ideias e até mesmo o “ethos” do oponente de forma falaciosa, construindo assim um falso alvo muito mais fácil de atacar que o alvo verdadeiro. O nome desta técnica é ‘falácia do espantalho’.
Um exemplo dela é qualificar um opositor das cotas raciais nas universidades como racista, para então atacar o racismo e assim desqualificar qualquer argumento forte contra as cotas. O racismo é de fato um conceito abominável e infundado, portanto fácil de atacar. Mas existem argumentos fortíssimos contra as cotas, e estes são difíceis de rebater (mesmo porque a defesa das cotas raciais sim que é intrinsecamente racista). A falácia do espantalho pode ser encarada como uma forma covarde de debate intelectual.
Covarde também é a maneira que a esquerda escolheu de se reengajar na luta contra o capitalismo e contra a liberdade após sua ideologia ter se revelado criminosa e epicamente falha. O alvo da vez não são os ricos poderosos nem as massas empobrecidas. Não são os gigantes intelectuais do livre mercado, como Mises e Hayek, e nem os guerreiros da liberdade como Ron Paul. O alvo é o elo mais fraco: o modo de vida do cidadão comum desprovido da fortuna dos ricos e do apelo emocional dos pobres. Não me surpreende que uma ideologia que escolha um alvo de forma tão covarde também escolha um método covarde de atacá-lo, como a falácia do espantalho.
Quem leu meu primeiro artigo deve se lembrar de nosso pacato e medíocre amigo Almeidinha, o estereótipo da classe média urbana brasileira, o inofensivo homem comum cuja maior aspiração é curtir uma aposentadoria tranquila enquanto tenta assistir ao Domingão do Faustão em meio à algazarra dos netos após o almoço de família, tendo tido uma vida de trabalho honesto. Desta vez, a acusação contra Almeidinha é de homofobia. E mais uma vez escrevo uma defesa do nosso pacífico amigo, em nome de um julgamento justo, com o devido processo da lei.
Matheus Pichonelli, autor do texto “A Cruzada de Almeidinha pelo Direito Hetero”, afirma:
(Almeidinha) que é machão, não pode sair às ruas com bandeiras de orgulho “hétero” nem fazer passeata em nome da sua comunidade. Pelo contrário, se fizer piada sobre gays, quem vai preso é ele. O Almeidinha pensa que privilégio tem lado, cor e orientação sexual.
Privilégio de fato tem lado, cor, orientação sexual, classe social, gênero, nacionalidade, clã, ideologia, sobrenome e até mesmo grau de conexão política. É por isso que se chama privilégio e não direito. Os direitos legítimos são universais. Todos os seres humanos o têm igualmente. Independentemente de qualquer coisa, todas as pessoas possuem direito à vida, à liberdade, à propriedade e à busca da felicidade (exceto, é claro, se violarem estes mesmos direitos de alguém). Já os privilégios são discriminatórios por definição.
Quando restritos ao âmbito privado, eles podem ser moralmente condenáveis, mas são legítimos. Vejamos alguns exemplos:
“Apenas homens fortes e ágeis possuem o privilégio de poder trabalhar na minha empresa de segurança privada como seguranças”.
“Apenas moças orientais bonitas e magras possuem o privilégio de poder trabalhar como garçonete no meu sushi bar”.
“Apenas pessoas que sabem jogar xadrez possuem o privilégio de poder entrar no meu círculo de amigos mais íntimos”
Estes são todos exemplos de privilégios legítimos, e em minha opinião, moralmente corretos. Não há nada de condenável neles. Agora veja os exemplos abaixo:
“Apenas brancos heterossexuais possuem o privilégio de poder entrar no meu restaurante; não gosto nem confio em gays, nem em negros, amarelos ou indígenas”.
“Apenas palmeirenses tem o privilégio de poder ser meu amigo”.
Estes privilégios são legítimos, embora o primeiro seja cretino e moralmente abominável e o segundo seja ridículo e bobo. Condenáveis, mas legítimos, pois estão no âmbito privado e não violam direitos naturais.
Quando um privilégio não é legítimo? Quando envolve violação dos direitos naturais previamente descritos. Quando envolve coerção. É o caso de uma agressão física contra um grupo. É também o caso de todos os privilégios concedidos a um grupo pela força das leis estatais. Todos os privilégios políticos e corporativistas se encaixam nesta categoria. O privilégio de fazer leis e inventar impostos, o privilégio de deter o monopólio dos serviços de justiça, o privilégio de receber uma concessão do estado ou ganhar uma licitação, o privilégio de receber milhões para projetar as medonhas construções de Brasília, e o privilégio de ter toda a sociedade pagando os seus estudos sob a mira de uma arma (é o caso dos alunos de escolas públicas, embora eles não tenham culpa) são todos ilegítimos.
Um dos direitos naturais envolve a liberdade de expressão. Todos nós temos o direito de proclamar nosso orgulho de alguma coisa ou de insultar alguém, embora nem sempre estas atitudes sejam moral ou cientificamente corretas. Ter orgulho de ser o melhor aluno da sua escola envolve um mérito pessoal, mas ter orgulho de ser brasileiro (ou sueco, ou dinamarquês) é algo infundado. Ambas as expressões, porém, são legítimas. Chamar um racista de “racista imundo” é legítimo e louvável. Chamar um negro de “negro imundo” (ou um branco de “branco imundo”) pode até ser ridículo, mas também é legítimo, pois não envolve violação de direitos naturais. Proibir estas manifestações seria uma violação do direito à liberdade de expressão. Não existe algo como “direito de não ser ofendido”.
Conceder a um determinado grupo o privilégio de não ser ofendido, impedindo assim o exercício da liberdade de expressão de outros grupos, é ilegítimo. E quanto ao direito dos gays de se manifestar pelo orgulho gay, os heterossexuais também o possuem (embora ambas as atitudes sejam risíveis, pois motivo de orgulho mesmo é driblar impostos corporativos, como fez Eric Schmidt, CEO da Google). A esquerda não sabe a diferença entre direito e privilégio.
E o problema do preconceito contra os gays? Se os gays sofrem mais preconceitos que os héteros, a maneira correta de corrigir o problema é com mais liberdade. Mais liberdade econômica garantirá o sucesso profissional dos gays de maneira meritocrática, punindo os preconceituosos com perdas contábeis (o idiota que deixasse de contratar um homem como Alan Turing, brilhante criptoanalista homossexual, para seu departamento deinformation security estaria perdendo receita). Mais liberdade social nos permitirá maiores possibilidades de minar a homofobia, seja xingando um homofóbico na imprensa, seja impedindo a entrada de pessoas homofóbicas em seu restaurante, tudo isso sem medo de sofrer processos judiciais.
Mas voltemos ao Almeidinha. Nosso amigo está neste momento tentando chegar a uma reunião na “firma”, mas está preso no trânsito por causa de uma passeata na Avenida Paulista. Para ele, não importa se a passeata é de gays, héteros, professores ou se é pela preservação dos besouros-elefantes-de-pata-vermelha. O coitado quer apenas ir trabalhar. Almeidinha não quer e nem tem tempo de fazer passeata pelo orgulho hétero. “Passeata é coisa de vagabundo”, disse ele ao colega de escritório enquanto falava ao celular no trânsito (o maior crime que ele já cometeu na vida). Almeidinha é bem igualitário nesse ponto: todas as passeatas são coisa de vagabundo, inclusive passeata de orgulho hétero.
Almeidinha também não usa twitter. O filho mais novo dele, de 16 anos, usa muito. Vive twittando no iPhone na hora do jantar. “Isso é coisa de molecada desocupada, quando eu tinha a sua idade eu já trabalhava”, disse Almeidinha ao moleque sem tirar o olho da cotação das ações na Bovespa. É estranho que o idealizador do personagem “Almeidinha” o conheça tão mal. Mas acusá-lo de homofobia é demais. É a falácia do espantalho.
Sim, nosso amigo ri de piadas de gays, e ri também de piadas de papagaio, de português, de loira, de médico (as favoritas dele são as piadas de Lula, das quais eu gosto muito também). Desde quando isso é homofobia? Ou papagaiofobia, lusofobia, loirafobia, iatrofobia (fobia de médicos), lulofobia (bem, confesso que eu e o Almeidinha somos lulófobos mesmo, mas neste caso sobram motivos).
E se há algo que o Almeidinha não fez foi procurar no Google o número de pessoas assassinadas por ano no Brasil, o número de gays assassinados no Brasil e então comparar a taxa de homicídio de ambos os grupos para finalmente concluir que é mais seguro ser gay. Existem três motivos para isso.
O primeiro é que Almeidinha tem mais o que fazer, como verificar se o Hugo Chávez realmente morreu (se for o caso, ele irá mais feliz pro escritório) ou conferir o dólar paralelo. O segundo motivo é que Almeidinha estudou estatística na faculdade e ele sabe que um estudo neste sentido teria que envolver diversas variáveis, modelos e testes de hipótese — e ainda assim não seria conclusivo. O terceiro motivo é que Almeidinha não é homofóbico. Homofobia é um tipo de pensamento coletivista e nosso amigo tende a ser mais individualista. Para ele, a criminalidade em si é um problema a ser combatido, seja a vítima quem for. Crimes podem ter motivações coletivistas, mas são, em última instância, cometidos contra indivíduos.
No Brasil, crimes motivados por racismo, homofobia, xenofobia e outras aberrações coletivistas ainda são raros (talvez consigamos reverter o quadro através de ações afirmativas, como cotas, e então passaremos a ter mais crimes de ódio). Se Almeidinha ler no jornal que um casal gay foi assassinado, seu pensamento será algo mais fundamentado, como “bandido bom é bandido morto”, ou “pagamos imposto e não temos segurança”, ou “devia ter pena de morte no Brasil”, e não algum devaneio pseudo-estatístico preconceituoso, que é muito mais típico das esquerdas.
É o que Almeidinha pensaria se seu barbeiro, seu endocrinologista, seu colega de trabalho ou seu agente de turismo (todos gays) fossem assassinados. E quando os monstruosos grupos de skinheads cometem algum destes horrendos crimes contra os gays, a culpa é dessa nova esquerda, que defende uma versão pervertida de “direitos humanos”, e não do nosso bonançoso e trabalhador amigo Almeidinha.