O preço do tempo

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Poucas instituições de agressão estatal são tão poderosas quanto um Banco Central. Ele controla não só a moeda, como também a taxa de juro ou, pelo menos, boa parte dela. E enquanto as demais instituições públicas exercem uma agressão física sobre nós, o Banco Central, por meio da manipulação da taxa de juro, age principalmente sobre um aspecto muito mais sutil de nossa existência: o tempo.

Juros orientam os indivíduos sobre como organizar suas ações no tempo. Ele é a representação da preferência temporal dos sujeitos. Digamos que uma pessoa que pretenda comprar uma camisa por 100 reais encontre alguém que lhe oferece 5 reais para que, em vez de comprar a camisa hoje, lhe empreste esse dinheiro por 30 dias. Se a proposta for aceita, isso significa que a pessoa que compraria a camisa considera que 105 reais, no futuro, valem mais do que uma camisa hoje. Já se a proposta for rejeitada, isso quer dizer que ela valoriza mais uma camisa no presente do que 105 reais daqui a 30 dias. Podemos dizer, então, que o juro é a taxa de troca de um bem presente por um bem futuro considerado mais valioso. Ou, de maneira bem mais simples: juro é o preço do tempo.

Há mais dois fatores que influenciam o valor final do tempo. Um é o risco: o quão confiantes estamos de que os planos presentes se realizarão no futuro. O outro é o quanto se espera que a moeda se desvalorize ou se valorize em dado período.

Por isso, dizemos que o mercado de juros reflete a preferência temporal dos consumidores. Os valores negociados nesse mercado informam àqueles que desejam empréstimos o quanto devem oferecer para que a outra parte abra mão do consumo presente. É onde os empresários ajustam suas necessidades de recursos em relação à poupança disponível. Ou seja, o valor do juro diz ao empresário se determinado empreendimento vale ou não a pena num dado momento.

Isso acontece porque, além de sua evidente estrutura física, como terrenos, máquinas, e pessoas, o capital também possui uma estrutura temporal. Nossos planos nada mais são que um conjunto de ações organizadas no tempo. Um bem de capital particular só será adquirido num estágio específico de um plano de negócios. O juro, portanto, orienta os empresários a como organizar cada etapa de seus planos.

Do outro lado da moeda, a demanda por bens também possui uma estrutura temporal. Alguns bens são adquiridos para consumo imediato, outros são consumidos durante um longo período e ainda há aqueles que são guardados para mais tarde. Quanto mais alinhadas as estruturas temporais de oferta e demanda, mais saudável está a economia. O preço do tempo, o juro, é a informação responsável por alinhar essas duas estruturas.

Num livre mercado, aqueles empreendimentos considerados menos arriscados determinariam a chamada taxa básica de juros. Isso porque qualquer empreendimento mais arriscado, que não ofereça um valor superior a essa taxa, terá muita dificuldade de convencer alguém a lhe emprestar dinheiro. É óbvio que o valor dessa taxa básica, assim como os tipos de empreendimentos que a determinam, mudará de tempos em tempos e de lugar para lugar.

Tenhamos em mente, porém, que o que importa para o empresário não é o dinheiro em si, mas sim os bens e os serviços necessários para executar as etapas de seu plano. Empréstimos são apenas um meio para se obter os fatores de produção. Se esses fatores não estiverem disponíveis, porque não se poupou o suficiente no passado para que tivessem sido produzidos, não existe expansão de crédito ou impressão de dinheiro que possa, como um toque de mágica, fazê-los surgir no presente.

Mas é justamente essa mágica que o Banco Central pretende realizar: alterar o tempo necessário para que produção e consumo se ajustem. Não é por acaso que muitos planos econômicos trazem em seus nomes uma referência a pretensão dos governos de manipular o tempo: “50 anos em 5”, o famoso lema de Juscelino Kubitschek, é um exemplo; ou, para citarmos um mais recente, o PAC, Plano de Aceleração do Crescimento, dos governos petistas.

Quando o estado interfere e tabela o preço do tempo, então, como acontece com o tabelamento de qualquer outro produto, as relações intertemporais entre produção e consumo se desorganizam. Como ele é o dono do dinheiro, títulos da dívida pública acabam sendo considerados o investimento de menor risco. Assim, o valor que o estado promete pagar no futuro pelo dinheiro presente que lhe for cedido determina a taxa básica de juro. E, quando essa taxa deixa de refletir as preferências temporais dos consumidores, empresários são induzidos a perder tempo e dinheiro com projetos que, muitas vezes, não conseguirão terminar e que provavelmente não iniciariam em outra circunstância.

O problema, contudo, não é que a taxa de juro determinada pelo banco central seja diferente daquela que surgiria naturalmente num livre mercado. O problema é que não é mais possível saber qual seria essa taxa. Uma vez que o mercado de juro se organiza em função da taxa básica definida pelo Banco Central, não podemos saber o quanto essa taxa se distancia, aproxima ou mesmo coincide com aquela que o mercado definiria por si mesmo. Dizer que a Selic está alta ou baixa, significa apenas fazer uma afirmação em relação a valores passados determinados pelo próprio governo. Isso não nos diz nada sobre as verdadeiras preferências temporais dos indivíduos.

Gene Callahan, em seu livro, “Economics for Real People”, compara as interferências do Banco Central na economia com um pediatra obcecado com o crescimento de seus pacientes. Esse pediatra, convencido de que o filho único de um casal não está crescendo como deveria, submete a criança a uma terapia hormonal. Como poderíamos avaliar, vários anos depois, se essa criança, agora já adulta, atingiu a altura correta? Ela está 2, 3 ou 5 centímetros maior ou menor do que estaria sem a terapia? Mais ainda, como saberemos se não foi algum outro fator que determinou a altura final dela? Alimentação, prática esportiva, ou simples genética? Nunca saberemos. Não possuímos um critério externo à própria experiência para compararmos os resultados.

Mas apesar de não podermos avaliar os resultados da terapia em relação à altura, não é difícil notarmos os efeitos negativos, como ossos frágeis e problemas no fígado, rins ou, quem sabe, coração.

Da mesma forma, apesar de não sabermos o quanto a taxa básica de juro do Banco Central se aproxima daquela que surgiria naturalmente num livre mercado, podemos, mesmo assim, ter uma ideia de quais são suas consequências negativas para a economia.

Assim como o pediatra do nosso exemplo, quando o governo não está satisfeito com o ritmo de desenvolvimento da economia, ele pode baixar as taxas de juros para “estimular o crescimento”. Isso transmite um sinal para os empresários de que a preferência temporal dos consumidores mudou e a poupança cresceu. O que significa dizer para os empresários que os recursos que estariam sendo utilizados para abastecer o consumo presente estão disponíveis para serem usados em projetos futuros. Por exemplo, caminhões, que estavam sendo utilizados para transportar produtos para as lojas, agora, estão disponíveis em maior número para transportar equipamentos para novas fábricas. Enquanto o preço dos bens indica para o empresário o que as pessoas desejam consumir, o preço do tempo, isto é, o juro, indica quando.

O preço do tempo na sociedade não determina só a quantidade do que é produzido, mas também a diversidade dos bens disponíveis. Um aumento na poupança não só leva os empresários a se prepararem para produzir mais do que já produzem, mas também a explorar novos produtos.

Nesse caso, porém, não houve aumento nenhum de poupança real. Houve apenas um barateamento do tempo via um tabelamento artificial do Banco Central. Consumidores e produtores iniciam, então, um cabo de guerra para ter acesso aos recursos presentes, o que dá origem a uma descoordenação temporal da cadeia produtiva.

Essa descoordenação se estenderá por toda rede de relações econômicas. Aqueles empresários que se encontram numa situação ruim usarão essa oportunidade para comprar mais tempo para seus negócios. Veremos negócios pouco lucrativos ou à beira da falência desperdiçando as riquezas da sociedade por um tempo maior que o necessário. Os incentivos para esses empresários menos eficientes são óbvios: evitar a falência e, quem sabe, com alguma sorte, tornar seus negócios competitivos. De qualquer forma, dinheiro será direcionado para negócios que, em outras circunstâncias, não seriam do desejo dos consumidores que continuassem existindo. Esses empresários menos eficientes pressionarão o resto do mercado a acompanhá-los na espiral do endividamento. Isso porque mesmo as empresas lucrativas e com boas reservas terão que competir pelos fatores de produção com as menos eficientes, as quais, por conta do crédito barato, podem fazer ofertas cada vez maiores por esses fatores.

A porta de entrada para o novo dinheiro, criado pela expansão do crédito, geralmente são os bens de capital de ordem superior (fábricas, tratores, novas construções e por aí vai). Nesse estágio, os efeitos negativos não são perceptíveis para a maioria de nós. Somente quando os fatores complementares se tornam necessários é que os primeiros efeitos colaterais da expansão começam a se tornar evidentes.

Fatores complementares de produção são bens ou serviços que devem ser adquiridos num estágio posterior de um planejamento empresarial. Esses fatores complementares são necessários para que os primeiros fatores, os de ordem superior, possam ser colocados em funcionamento.

Digamos que Alfredo tenha planejado uma expansão em seu negócio de software. Após aumentar seu escritório e obter novos computadores, fatores de produção de ordem superior, ele sai em busca de programadores, fator de produção complementar. Porém, entre o planejamento e a execução de seu plano, o governo iniciou uma expansão do crédito. Outras empresas financiadas pelo crédito barato também saem em busca de programadores. Alfredo descobre, então, que não há mais profissionais suficientes no mercado e nem pelo preço que ele pretendia pagar. Ele, que acreditava que poderia contratar 100 programadores por um salário de 3000 reais mensais cada, terá agora, se quiser levar seu plano em frente, que oferecer um valor superior. Isso provavelmente o forçará a ter que lançar mão do mesmo crédito que seus competidores. E, no fim, o encarecimento dos fatores de produção refletirá no preço do produto final.

Nesse exemplo, vemos uma descoordenação entre o tempo de crescimento de um setor, impulsionado pelo crédito barato, e o tempo da criação dos fatores complementares para o mesmo. Fosse esse crescimento baseado em poupança real poderíamos esperar um movimento mais ou menos sincronizado entre a expansão dos negócios e a disponibilidade dos fatores complementares.

Quando esse crédito encontra o consumidor final, temos o mesmo fenômeno, porém na outra ponta. Consumidores anteciparão para o presente o consumo futuro. E uma vez que ainda não houve tempo para que a produção dos bens demandados se conclua, teremos também, nessa ponta, um aumento de preços.

A bola de neve começará a crescer. Atraídos pelo aumento dos preços e crédito barato, novos negócios surgirão e os já estabelecidos expandirão sua produção. Isso, de novo, pressionará para cima os preços dos fatores de produção e endividamento das empresas. Por sua vez, os consumidores também embarcarão em mais uma rodada de endividamento, agora, talvez, apenas para poderem manter o padrão de vida anterior.

O setor bancário, da mesma maneira, será forçado a embarcar na expansão do crédito. Bancos mais criteriosos para conceder empréstimos serão pressionados por aqueles que agem irresponsavelmente, cobrando juros baixos de negócios arriscados. Irresponsabilidade geralmente incentivada pelo próprio governo ao usar o dinheiro roubado da população para socorrer o setor bancário.

Na bolsa de valores, veremos gestores de fundos adquirindo, por valores cada vez mais altos, ações de empresas questionáveis. O fenômeno é o mesmo, gestores mais escrupulosos perderão investidores para aqueles dispostos a surfar o boom da expansão do crédito, garantindo maior rentabilidade de suas carteiras, mesmo à custa de um aumento exponencial da exposição ao risco.

Ainda que esses efeitos colaterais da expansão do crédito não sejam imediatamente perceptíveis, nem atinjam concomitantemente todos os setores da economia, dado tempo suficiente, eles levarão a um aumento generalizado dos preços. E, quanto maior for essa expansão do crédito e quanto mais tempo ela durar, mais intenso será esse aumento e a posterior depressão.

Quando o Banco Central sobe a taxa de juro para conter o aumento de preços, que aliás, ele mesmo foi o responsável por criar, surge uma nova distorção. Empresas menos eficientes serão as primeiras a fechar as portas, é verdade. Mas, com a maior parte do setor produtivo altamente endividado, mesmo aqueles negócios que seriam lucrativos também podem falir. Por exemplo, o acesso ao capital de giro pode se tornar inviável para negócios que, não fosse o aumento da taxa de juro, se revelariam lucrativos. E nas empresas que sobreviverem, tudo que for produzido, será produzido para pagar dívidas adquiridas no período anterior.

Empregos serão perdidos. Os que se mantiverem empregados, terão seus salários drasticamente reduzidos. Lembremos do exemplo da empresa de Alfredo. Muitos, incentivados pela demanda artificial por programadores, podem ter dedicado os melhores anos de suas vidas se preparando para essa carreira. Mas, no fim, o que parecia financeiramente promissor se revelará uma ilusão criada pelos parasitas do Banco Central. Quando o período de expansão do crédito chega ao fim, o desperdício de vidas inteiras se torna dolorosamente evidente.

Seu Zé, durante a expansão de crédito, abriu um pequeno restaurante. Sua principal clientela era composta pelo crescente número de funcionários da empresa de Alfredo. Com a subida do juro, Alfredo não teve como refinanciar sua dívida de forma a manter seu negócio. Seu Zé, por sua vez, com a diminuição da clientela, também fecha as portas. O banco se vê obrigado executar os bens dos negócios de ambos. Porém, o valor obtido não é suficiente para cobrir o prejuízo. O banco se torna insolvente e os clientes perdem o dinheiro depositado nele.

Imagine isso acontecendo com milhares de negócios em um curto período. Estamos diante de uma depressão econômica. O cenário perfeito, infelizmente, para incentivar uma nova rodada de intervenção governamental na economia.

Um Banco Central não passa de um instrumento de agressão. Talvez nada deixe isso mais claro do que a tendência dessa instituição de agir contra os interesses do mercado. Se o mercado acreditar que o Banco Central irá baixar o juro em um futuro próximo, muitos empresários terão uma vantagem competitiva se começarem a expansão ou abertura de novos negócios desde já. Assim, quando a expansão do crédito começar, eles poderão simplesmente substituir as dívidas atuais por dívidas mais baratas e manter a vantagem competitiva. Ainda que o plano do governo, de fato, fosse baixar o juro, quando este coletar os dados estatísticos do período, será tentado a agir no sentido oposto, pois a economia já se mostrará “muito aquecida”.

O mesmo vale no sentido contrário. Se muitos empresários avaliarem corretamente que o governo pretende subir o juro, eles diminuirão as contratações, cancelarão planos de expansão e evitarão obter novos empréstimos. Isso, por sua vez, indicará ao governo que o mercado precisa de estímulo, o que o levará a baixar o juro.

Os empresários não têm escolha. Eles devem necessariamente agir segundo suas expectativas em relação à política de juro futura. Isso porque planejar não é apenas, como dissemos, ordenar ações no tempo, mas, também, maximizar a utilidade das escolhas presentes nas ações futuras. Imagine um empresário que decida investir em determinado maquinário hoje. Suas decisões futuras visarão a explorar ao máximo a utilidade desse maquinário.

Pensemos novamente no negócio de Alfredo. Se os computadores escolhidos para seu escritório possuem determinado sistema operacional, os programadores que ele contratar no futuro serão aqueles aptos a trabalhar com esse sistema operacional. Alfredo, assim, estará maximizando a utilidade de sua decisão anterior em suas contratações futuras. Ou, pensemos num caso mais prosaico. Alguém resolve aprender alemão como um investimento em sua carreira profissional. Essa pessoa – pelo menos no momento da escolha – pretende procurar trabalho onde esse idioma lhe garanta uma vantagem competitiva. Em outras palavras, ela pretende maximizar a utilidade de sua decisão atual no futuro.

Se um empresário acredita que o governo sinalizou que a taxa de juro irá se alterar num determinado sentido, suas decisões presentes refletirão essa expectativa a fim de maximizar a utilidade de suas ações no futuro. Porém, como vimos, dependendo da quantidade de empresários com a mesma expectativa, o governo se verá obrigado a frustrar os planos deles.

Imaginemos um conjunto de empresas. O Banco Central sinalizou que fará uma expansão do crédito num futuro próximo. Nenhuma das empresas sabe qual será o curso de ação das rivais diante dessa sinalização. Para cada uma delas, individualmente, o melhor cenário seria começar uma expansão agora e as outras não. O pior seria não iniciar a expansão e suas competidoras sim. Como nenhuma sabe o que a outra fará, e tendo em vista que estão competindo entre si, o melhor curso de ação é a expansão desde já. Porém, o que individualmente é a melhor decisão, coletivamente pode ser um desastre. Se todas elas começarem a expandir seus negócios, o Banco Central se verá tentado a transformar sua sinalização num blefe, pois o mercado já estará muito “aquecido” e uma redução da taxa de juro só aceleraria o surgimento dos efeitos colaterais. Bancos Centrais, portanto, transformam as relações intertemporais numa verdadeira tragédia dos comuns.

Exatamente como qualquer outra instituição estatal, Bancos Centrais são instrumentos de controle e violência contra o indivíduo. Por meio da política de juro, governos nos roubam aquele que, talvez, seja o bem mais valioso em nossas vidas. O único que uma vez tomado, jamais poderá ser recuperado. E não há prejuízo maior ou ferida mais dolorosa do que o tempo perdido.

 

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Callahan, G. 2002. Economics for Real People: An Introduction to the Austrian School; Auburn: Ludwig von Mises Institute.

Lachmann L.. 1978, Capital and Its Structure; Auburn: Ludwig von Mises Institute.

 

Revisado por Marco Batalha

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