O presente trabalho, além de intelectual, é satírico. Por isso, o leitor certamente não tardará em encontrar adjetivos normalmente referentes aos animais mansos e domáveis (p. ex., porcos, bois, carneiros, ovelhas, etc.), porém indiscriminadamente usados aqui como designação aos defensores do estado, pois tais, metaforicamente, se assemelham aos bois que, de tempos em tempos, mugem com veemência em prol da imponência dos seus chicoteadores respectivos.
A necessidade de um trabalho como o que lê, leitor, procedeu-se originalmente da sujeira da ética dos lambedores de botas, melhor dizendo, dos efeitos inimaginavelmente truculentos de tudo o que costuma dizer respeito à mentalidade estatista contemporânea: legalismo, juspositivismo, construtivismo, nominalismo jurídico, mais especialmente.
Ao redigi-lo, não viso, contrariamente ao que muitos devem ter pressuposto antecipadamente, expor o quão erradíssimo está o senso comum ao legitimar o estado, mas, na verdade, o quão incoerente é. Afinal, se é sabido e indubitabilíssimo o fato de que é eticamente injustificável que a fatia majoritária de uma dada população exproprie coativamente a minoritária em prol da consecução dos seus propósitos, não seria, então, absolutamente inaceitável um político alegar incorporar oficialmente a vontade da maioria que o elegeu e, desse modo, subtrair, por meios caracteristicamente tributários, os recursos da minoria com a finalidade de supostamente prezar a democracia, a vontade da maioria? Segundo a ética dos lambedores de botas, a resposta mais correta a essa indagação seria: “Não é redondamente inaceitável, posto que é legal o poder usufruído democraticamente, embora a maioria não possa extorquir diretamente a minoria de maneira a não ser ilegal”, porém, absolutamente qualquer um que objetive pensar claramente há de concluir que tal ética é bilateralmente contraditória, posto que legitima e, com moderação, não legitima simultaneamente a mesma coisa: a expropriação discricionária da minoria executada pela maioria como oferenda santa ao deus democracia.
Nota-se através desse exemplo, desde logo, o quão ilógico é o modo através do qual os ruminantes tradicionalmente tentam solucionar seus dilemas mais intoleráveis: a prevalência ditatorial da opinião da maioria. A maioria, pressupõem os que mugem, tem o divino poder de alterar arbitrariamente as leis do universo desde que possa manusear o braço legislador do estado – isto é, contanto que influencie os legisladores, tem o poder de alterar “legitimamente” a axiologia ética de modo a tornar parcial a liberdade dos indivíduos pela emissão irrestrita de decretos. Esta é, em última análise, a mãe do furor da temática política moderna: a luta pela manipulação da opinião da maioria (em suma, pela manipulação do poder legislatório, pela manipulação do poder de decretar, do de alterar discricionariamente as leis da axiologia ética). Este é, em última análise, o pai da temática política moderna: o legalismo, a crença de que basta “decretar” que dado ato pacífico é criminoso para instantaneamente sê-lo de fato: exprimindo em termos coloquiais, a crença de que basta decretar que 2+2=5 para 4 instantaneamente tornar-se 5, de que basta decretar que sonegar tributos (manter integralmente possuídos os frutos do trabalho penoso) configura crime para a extorsão (taxação) descriminalizar-se instantaneamente, de que basta decretar que usuários de narcóticos são criminosos para enjaulá-los justificavelmente, etc. etc.
Os membros da fábrica de leis (estado) acham que são espécies superiores de deuses. A existência de Deus está em descrédito atualmente, porém, curiosamente, se uma pessoa qualquer porventura afirmar querer ser legisladora (a divina portadora do poder de alterar segundo o seu arbítrio a axiologia ética), a mesma seguramente não cairá em descrédito de pronto ante quem a ouvir. Ora, na condição hipotética de ter de obrigatoriamente louvar um deus, louvaria o Deus judaico-cristão e não o estado, pois o primeiro legislou duma só vez o universo e, após tê-lo concebido ao plano da existência como o conhecemos ao curso de sete dias, resolveu por deixá-lo inalterado e mantê-lo absolutamente imutável ao homem, enquanto o último, talvez conforme uma regra proveniente do ar ou do vácuo intergaláctico, sanciona deliberadamente, fazendo leis se tornarem opiniões e opiniões se tornarem leis.
O objetivo último deste trabalho não será, portanto, o de conceber uma solução totalmente infalível aos problemas socioeconômicos que nos afligem na atualidade ou às pautas político-legais mais fervorosas: distribuição de renda, liberalização das drogas, sonegação fiscal, empreendedorismo capitalista, tributação, comércio, justiça, etc. etc., porém, o que explicito frequentemente ao decorrer deste trabalho, é o de expor elucidativamente, em sua forma mais despida, o coração comum de tais debates: a ética dos lambedores de botas. Quê motivo seria de haver ao debate sobre a liberalização das drogas se não existissem os que adoram lamber as botas dos que punem mandatoriamente a livre comercialização de narcóticos por serem moralmente contrários aos seus usuários? Quê motivo haveria à discussão acerca da distribuição de renda na inexistência dos que amam lamber atenciosamente as botas dos socialdemocratas por acreditarem ser vítimas da fortuna alheia? Quê motivo haveria ao debate acerca do empreendedorismo capitalista na ausência dos que lambem as botas dos que militam favoravelmente à depredação tributária do capital privado? Quê motivo haveria ao debate acerca da sonegação fiscal se não fossem os que lambem prazerosamente as botas dos encarceradores dos que burlam constantemente a fiscalização governamental? Toda pauta partidário-congressista, afinal, tem por base a necessidade suposta de lamber as botas dos parasitas estatais. As questões parlamentares hodiernas, assim sendo, não se reduzem simplesmente à escolha de lamber ou não lamber as botas dos parasitas, no entanto, nomeadamente, à de lambê-las ou completamente ou parcialmente – sumariamente, à de lamber as botas ou dos esquerdistas ou dos direitistas.
A necessidade de subserviência aos parasitas governamentais, dizem os lambedores de botas mais equinos, decorre da inexorável existência de conflitos, sendo o estado, então, incontestadamente o único apto a solucioná-los de modo reto.
Ora, ninguém há de negar a existência de conflitos. Há conflitos. Todavia, o estado não objetiva solucioná-los minimamente, porém engrandecer-se, e o faz conferindo regalias legais àqueles que o enaltecem, aos lambedores de botas, mais especificamente. Logo, sob o estado, se, p. ex., A eventualmente vier a conflitar com B, a “solução” de tal conflito se dará desfavoravelmente à justiça e favoravelmente ao melhor lambedor de botas, ou seja, favoravelmente ao que se pôr mais de acordo com a legislação estatal em rejeição à axiologia ética objetiva.
A sociedade, assim, sob o estado, jamais evoluirá moralmente, i. e., nunca procurará desenvolver padrões axiologicamente deriváveis de soluções pacíficas aos conflitos existentes, mas será sistematicamente acostumada a lamber as botas do estado (em consequente repúdio à axiologia e, miseravelmente, à lógica), para que o estado mesmo, por intermédio do corpo estruturalmente multifacetado da sua trindade quase santa: poder executivo, legislativo e judiciário, proveja heroicamente a gratuita isonomia, beneficiando os lambedores de botas comparativamente mais dóceis, em detrimento dos lambedores menos suínos. A referida sociedade, conclui-se, será sistematicamente acostumada a averiguar o que os parasitas dizem ser lei e não o que é lei.
Ora, qual é, então, o porquê de eu colocar-me tão ofensivamente à crença de que a ética é moldada pela emissão deliberada de decretos? Pela razão de que nenhum decreto estatal concernente à ética, mesmo que seu emissor presuma ferrenhamente poder fazê-lo, não a altera, porém apenas a deturpa; e, pela lógica, sabe-se: o absolutismo da propriedade privada é necessário à ética. Todo ente, portanto, que opera relativizando-a, ou, pior, ignorando-a (p. ex., o estado, mediante a imposição de tributos: roubo: lesão à propriedade), é eticamente indefensável, o que implica, por congruência, que um sistema de sociedade eticamente defensável é, necessariamente, anárquico – o que, por sua vez, desestimula muitos à aplicação da lógica, no entanto, ao que quer entender objetivamente a ética de forma substancialmente equitativa à que o físico entende os componentes da natureza é absolutamente imperativo aplicá-la sem devaneios ideológicos, sem tencionar rejeitar a razão, posto que, à lógica, não importam os que querem mudá-la.