2. A ética e a economia da propriedade

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I. O problema da ordem social

Sozinho em sua ilha, Robinson Crusoé pode fazer o que bem quiser. Para ele, o problema relativo às regras que norteiam uma conduta humana ordeira – isto é, a cooperação social – simplesmente não existe. Naturalmente, esse problema só passará a existir quando uma segunda pessoa, Sexta-Feira, surgir na ilha. Entretanto, ainda assim, esse problema vai continuar irrelevante enquanto não houver algum tipo de escassez. Suponha que a ilha seja o Jardim do Éden; todos os bens externos estão disponíveis em superabundância. Eles são chamados de “bens não escassos” ou “bens abundantes”, da mesma forma que o ar que respiramos é um bem “não escasso”. O que quer que Crusoé faça com esses bens, suas ações não terão quaisquer repercussões em relação à oferta presente e futura desses bens tanto para ele próprio quanto para Sexta-Feira (e vice versa). Assim, é impossível que algum dia possa haver um conflito entre Crusoé e Sexta-Feira concernente ao uso desses bens. Um conflito só é possível se os bens forem escassos. Somente nesse cenário é que surgirá a necessidade de se formular regras que tornem possível uma cooperação social ordeira – ou seja, livre de conflitos.

No Jardim do Éden, existem apenas dois bens escassos: o corpo físico de uma pessoa e o espaço que ele ocupa estando de pé. Crusoé e Sexta-Feira têm apenas um corpo cada um e só podem ocupar um lugar de cada vez. Assim sendo, até mesmo no Jardim do Éden podem surgir conflitos entre Crusoé e Sexta-Feira: ambos não podem ocupar simultaneamente o mesmo espaço sem que isso leve a um conflito físico entre eles. Consequentemente, mesmo no Jardim do Éden, devem existir regras que determinem uma conduta social ordeira – regras relativas à localização e movimentação adequada dos corpos humanos. E fora do Jardim do Éden – ou seja, um local onde há escassez – devem existir regras que regulem não apenas o uso dos corpos, mas também o uso de tudo que é escasso, de forma que todos os possíveis conflitos possam ser evitados. Esse é o problema da ordem social.

 

II. A solução: propriedade privada e apropriação original

Na história do pensamento político e social, várias propostas já foram defendidas como solução para o problema da ordem social, e essa variedade de propostas mutuamente inconsistentes contribuiu para fazer com que a busca por uma única e “correta” solução fosse frequentemente considerada ilusória. Entretanto, como tentarei demonstrar, existe uma solução correta; logo, não há motivos para sucumbir ao relativismo moral. A solução já é conhecida há centenas de anos, se não mais. Em épocas modernas, essa velha e simples solução foi formulada mais clara e convincentemente por Murray N. Rothbard.[1]

Deixe-me começar formulando primeiro a solução – começando pelo caso especial representado pelo Jardim do Éden, e depois tratando do caso geral representado pelo mundo “real”, onde a escassez está por todos os cantos – e então explicando por que essa solução, e mais nenhuma outra, é a correta.

No Jardim do Éden, a solução é fornecida por uma regra simples: qualquer um pode posicionar ou mover seu próprio corpo onde e para onde bem quiser, desde que ninguém mais esteja posicionado ali e ocupando o mesmo espaço. Já fora do Jardim do Éden, ou seja, no âmbito da escassez geral, a solução é fornecida pela seguinte regra: cada um é dono de seu próprio corpo físico, bem como de todos os lugares e bens da natureza que ele ocupe e coloque em uso através de seu corpo, desde que ninguém mais tenha ocupado ou utilizado esses mesmos bens e lugares antes dele. Essa propriedade sobre bens e lugares “apropriados originalmente” por uma pessoa implica seu direito de utilizar e transformar esses bens e locais da maneira que mais lhe aprouver,desde que ela, com isso, não altere forçosamente a integridade física dos bens e lugares originalmente apropriados por outra pessoa. Em particular, uma vez que um bem ou um local foi apropriado originalmente por uma pessoa que – nas palavras de John Locke – “misturou seu trabalho” a esse bem ou local, então a propriedade desse bem ou local somente poderá ser legada a terceiros através de uma transferência voluntária – contratual – de um título de propriedade.

Devido ao amplo e generalizado relativismo moral que nos cerca, é válido apontar que essa ideia da apropriação original e da propriedade privada como solução para o problema da ordem social está de completo acordo com a nossa “intuição moral”. Não seria simplesmente absurdo alegar que uma pessoa não deveria ser a proprietária de seu próprio corpo e dos lugares e bens que ela originalmente – isto é, antes de qualquer outra – apropria, utiliza e/ou produz fazendo uso de seu próprio corpo? Quem mais, senão essa pessoa, deveria ser o proprietário deles? Não parece ser óbvio, também, que a esmagadora maioria das pessoas – inclusive crianças e primitivos – de fato agem de acordo com essas regras, e o fazem como sendo algo natural, óbvio e rotineiro?

Não obstante, a intuição moral, por mais importante que seja, não é prova de nada. Entretanto, também existem provas da veracidade de nossa intuição moral.

E a prova é dupla. De um lado, se uma pessoa fosse negar a validade da instituição da apropriação original e da propriedade privada, as consequências seriam claras: se a pessoa A não fosse a proprietária de seu próprio corpo e dos bens e lugares originalmente produzidos e/ou apropriados por seu corpo, bem como dos bens voluntariamente (contratualmente) adquiridos de outros proprietários anteriores, então apenas duas alternativas existiriam, a saber: Ou uma outra pessoa, B, deveria ser reconhecida como a proprietária do corpo de A, bem como dos bens e lugares apropriados, produzidos ou adquiridos por A; ou ambas as pessoas, A e B, deveriam ser consideradas igualmente co-proprietárias de todos os corpos, lugares e bens existentes.

No primeiro caso, A estaria reduzida à categoria de escravo de B, sendo um objeto de exploração. B seria o proprietário do corpo de A e de todos os lugares e bens apropriados, produzidos e adquiridos por A. Mas A, por sua vez, não seria o proprietário do corpo de B, e nem dos lugares e bens apropriados, produzidos e adquiridos por B. Assim, sob essas regras, duas classes categoricamente distintas de pessoas estariam constituídas – os Seres Inferiores, como A, e os Seres Superiores, como B -, às quais seriam aplicadas “leis” diferentes. Logo, tal sistema deve imediatamente ser descartado como uma ética humana, pois não é igualmente aplicável a qualquer um que esteja na condição de ser humano (animal racional). Desde sua concepção, qualquer sistema de leis desse tipo já é identificável como não sendo universalmente aceitável – logo, tal sistema não pode alegar que representa a lei. Para que uma regra ambicione ganhar o status de lei – uma regra justa – é necessário que tal regra seja igual e universalmente aplicável a todos.

Alternativamente, no segundo caso, que defende a co-propriedade universal, o requisito de se ter uma lei igual para todos seria cumprido. Entretanto, essa alternativa sofreria de uma deficiência ainda mais severa, que, se aplicada, faria com que toda a humanidade instantaneamente sucumbisse. (Dado que toda ética humana deve permitir a sobrevivência da humanidade, essa alternativa também deve ser rejeitada). Toda ação de uma pessoa requer o uso de algum meio escasso (pelo menos o uso do corpo dessa pessoa e do espaço que ele ocupa). Porém, se todos os bens pertencessem simultaneamente a todas as pessoas, então ninguém, em nenhum momento e em nenhum lugar, teria a permissão de fazer qualquer coisa, a menos que ele anteriormente tivesse obtido a permissão de todos os outros co-proprietários. Entretanto, fica o dilema: como é que uma pessoa poderia conceder tal permissão sendo que ela não é a dona exclusiva de seu próprio corpo (incluindo suas cordas vocais)? Afinal, é através de seu corpo que a autorização deve ser expressa. De fato, antes de dar seu consentimento, ela teria de obter o consentimento de outra pessoa, que a autorizaria a expressar a sua própria autorização. Mas essa outra pessoa não poderia dar esse consentimento sem antes ter obtido, de uma outra pessoa, a autorização para tal, e assim por diante.

Essa constatação da impossibilidade praxeológica do “comunismo universal” – como Rothbard se referiu a essa proposta – me leva imediatamente a uma maneira alternativa de demonstrar a ideia da apropriação original e da propriedade privada como a única solução correta para o problema da ordem social.[2] Se as pessoas têm ou não quaisquer direitos e, caso tenham, quais são eles, é algo que só pode ser decidido por meio da argumentação (debate proposicional). Uma justificativa – prova, conjectura, refutação – é uma proposição argumentativa. Qualquer um que negue essa afirmação estaria envolvido em uma contradição performativa, pois sua negação iria por si só constituir um argumento. O seu próprio ato de negar é em si uma argumentação. Mesmo um relativista ético teria de aceitar essa primeira afirmação, que é apropriadamente conhecida como o apriorismo da argumentação.

Dada a aceitação inegável – o status axiomático – desse apriorismo da argumentação, duas conclusões igualmente necessárias se seguem. A primeira ocorre quando não há uma solução racional para o problema do conflito que surge em decorrência da existência de escassez. Suponha, em meu cenário anterior envolvendo Crusoé e Sexta-Feira, que Sexta-Feira não fosse um homem, mas sim um gorila. Obviamente, da mesma forma que Crusoé poderia se envolver em conflitos com Sexta-Feira, o homem – conflitos relativos a seu corpo e ao espaço que ele ocupa -, ele também poderá se envolver nesse mesmo tipo de conflito com Sexta-Feira, o gorila. O gorila pode querer ocupar o mesmo espaço que Crusoé já ocupa. Nesse caso, se o gorila for o tipo de ente que sabemos ser, não haveria uma solução racional para o conflito. Ou o gorila iria acossar, esmagar e devorar Crusoé – essa seria a solução do gorila para o problema -, ou Crusoé iria domar, caçar, abater ou matar o gorila – essa seria a solução de Crusoé. Nesse cenário, alguém poderia de fato falar sobre relativismo moral. Entretanto, seria mais apropriado se referir a essa situação como uma na qual a questão da justiça e da racionalidade simplesmente não seria levantada; isto é, esta seria considerada uma situação extra-moral. A existência do gorila implicaria um problema técnico para Crusoé, e não em um problema moral. Ele não teria outra escolha que não a de aprender como gerenciar e controlar com sucesso os movimentos do gorila, assim como ele teria de aprender a gerenciar e controlar quaisquer outros objetos inanimados no ambiente ao seu redor.

Dedutivamente, somente se ambos os lados de um conflito forem capazes de incorrer mutuamente em uma argumentação, é que poderemos considerar a questão do problema moral. E, apenas nesse caso, a pergunta sobre se há ou não uma solução para esse problema se torna uma pergunta significante. Logo, somente se Sexta-Feira, independentemente de sua aparência física, for capaz de incorrer em alguma argumentação (mesmo que ele tenha se mostrado capaz de tal ato apenas uma vez), poderá ele ser considerado racional, e a pergunta sobre se existe ou não uma solução correta para o problema da ordem social passará então a fazer sentido. Não se deve esperar que uma pessoa dê qualquer resposta para uma outra pessoa que jamais fez alguma pergunta ou, mais especificamente, que jamais expressou seu próprio ponto de vista relativístico na forma de um argumento. Nesse caso, essa “outra” pessoa só poderá ser considerada e tratada como uma planta ou um animal – isto é, como uma entidade extra-moral. Somente se esta outra entidade for capaz de pausar suas atividades – quaisquer que sejam – e dizer “sim” ou “não” (não necessariamente em termos verbais, obviamente) para alguma coisa que outra pessoa tenha dito, é que então teremos a obrigação de dar a essa entidade uma resposta. E, consequentemente, só então poderemos alegar que o nosso ponto de vista é o correto para ambos os lados envolvidos eu um conflito.

Ademais, segue-se do apriorismo da argumentação que, tudo o que deve ser tomado como pressuposição para uma argumentação, isto é, tudo o que deve ser considerado como uma precondição lógica e praxeológica para uma argumentação, não pode, por sua vez, ter a sua validade contestada argumentativamente. Pois, ao fazer isso, a pessoa cairia em contradição performativa – uma autocontradição.

Porém, debates proposicionais não são feitos por afirmações vagas e flutuantes; ao contrário, eles constituem uma atividade humana específica. Uma discussão argumentativa entre Crusoé e Sexta-Feira requer que ambos tenham – e mutuamente reconheçam que o outro também tem – controle exclusivo sobre seus respectivos corpos (seus cérebros, cordas vocais, etc.), bem como sobre o espaço ocupado por seus corpos. Uma pessoa só pode propor alguma coisa e esperar que o oponente se convença da validade do argumento – ou o negue e proponha outra coisa – se o seu direito e o do seu oponente sobre o controle exclusivo de seus respectivos corpos e espaços forem pressupostos. De fato, é exatamente esse reconhecimento mútuo que o proponente e o oponente têm a respeito da propriedade de seus próprios corpos e do espaço que respectivamente ocupam que constitui o characteristicum specificum de todas as argumentações proposicionais: embora uma pessoa possa não concordar quanto à validade de uma proposição específica, ela pode, no entanto concordar com o fato de que ela discorda de algo. Ademais, esse direito à propriedade que alguém tem sobre o próprio corpo e sobre o espaço que ele ocupa deve ser considerado, tanto pelo proponente como pelo oponente, aprioristicamente (ou incontestavelmente) autoevidente. Qualquer um que afirme que a sua argumentação é que é válida vis-à-vis a de um oponente, já estaria automaticamente pressupondo que ele e seu oponente têm controle exclusivo sobre seus respectivos corpos e espaços ocupados por eles. Quando uma pessoa diz “Eu afirmo que isso e isso é verdade e desafio você a provar que estou errado”, ela está automaticamente assumindo as condições acima.

Mais ainda: seria igualmente impossível uma pessoa incorrer em alguma argumentação e depender da força proposicional de seu argumento se essa pessoa não pudesse ser a proprietária (controle exclusivo) de outros meios escassos (além de seu corpo e do espaço que ele ocupa). Se essa pessoa não tivesse esse direito, ela já estaria morta. Expandindo-se essa situação universalmente, todos nós já estaríamos mortos, e todo o problema de ter de justificar regras – bem como qualquer outro problema – simplesmente não existiria. Logo, unicamente pela virtude do fato de essa pessoa estar viva, o direito de propriedade sobre outras coisas deve ser pressuposto como válido, também. Ninguém que esteja vivo pode argumentar o contrário.

Se uma pessoa não pudesse adquirir a propriedade sobre esses bens e espaços por meio de um ato de apropriação original – isto é, estabelecendo um elo objetivo (intersubjetivamente averiguável) entre ela própria e o bem e/ou espaço específicos antes de qualquer outra pessoa – e se, ao invés disso, a propriedade sobre esses bens ou espaços fosse concedida àqueles que chegassem por último (retardatários), então uma pessoa só teria a permissão de começar a utilizar qualquer bem após ter a autorização do retardatário. Entretanto, como pode um retardatário conceder autorizações àquele que chegou antes? Ademais, todo retardatário teria, por sua vez, de obter a autorização de futuros retardatários, e assim por diante. Ou seja: nem nós, nem nossos antepassados e nem os nossos rebentos seriam capazes de sobreviver caso essa regra fosse estabelecida e cumprida. Contudo, para que qualquer pessoa – no passado, no presente ou no futuro – possa argumentar alguma coisa, sua sobrevivência deve ser algo possível; e para poder fazer isso (argumentar) os direitos de propriedade não podem ser entendidos como algo atemporal e indefinido em relação ao número de pessoas envolvidas. Antes, os direitos de propriedade devem necessariamente ser entendidos como originados através da ação de indivíduos específicos em pontos específicos do espaço e do tempo. Caso contrário, seria impossível para alguém poder dizer alguma coisa em um ponto específico do espaço e do tempo de modo que outra pessoa pudesse responder. Portanto, simplesmente dizer que a regra do “primeiro usuário, primeiro dono” – que é a ética fundamental da propriedade privada – pode ser ignorada ou é ilógica, implica automaticamente uma contradição performativa, pois se uma pessoa está sendo capaz de dizer isso, deve-se pressupor a existência dessa pessoa como uma unidade independente para tomar decisões em um dado ponto do tempo e do espaço.[3]

 

III. Conceitos errados e esclarecimentos

De acordo com esse entendimento acerca da propriedade privada, pode-se dizer que ‘propriedade’ significa o controle exclusivo de um indivíduo sobre espaços e objetos físicos. Reciprocamente, invasão dos direitos de propriedade significa causar danos físicos não autorizados, bem como causar a diminuição de objetos e territórios pertencentes a outras pessoas. Em contraste, há uma visão amplamente aceita de que a perda, ou a diminuição, do valor (ou preço) de uma propriedade constitui uma agressão passível de punição.

Considerando-se a (in)compatibilidade de ambas as posições, é fácil reconhecer que quase toda ação de um indivíduo pode alterar o valor (preço) da propriedade de outro. Por exemplo, quando uma pessoa A ingressa no mercado de trabalho ou decide se casar (o mercado do casamento), isso pode alterar o valor de B nesses mesmos mercados. Se A alterar suas valorações subjetivas relativas a cerveja e pão, por exemplo, ou se o próprio A decidir se tornar um cervejeiro ou um padeiro, isso alteraria o valor da propriedade dos outros cervejeiros e padeiros.

Desse cenário surgem duas possibilidades.

Primeira: De acordo com a visão que alega que o dano ao valor constitui uma violação de direitos, A estaria cometendo uma agressão passível de punição frente aos cervejeiros e padeiros. Se A é culpado, então B, os cervejeiros e os padeiros devem ter o direito de se defenderem das atitudes de A, e suas ações defensivas podem consistir somente em restrições físicas ao indivíduo A e invasões à sua propriedade. Deve ser permitido a B proibir fisicamente o ingresso de A no mercado de trabalho ou no de casamento; aos cervejeiros e padeiros deve ser permitido impedirem fisicamente A de gastar seu dinheiro da maneira que mais lhe aprouver. Entretanto, nesse caso, a diminuição da propriedade e/ou o dano físico impostos a A não podem ser vistos como uma agressão passível de punição. Já que essas atitudes foram tomadas em legítima defesa, elas são legítimas.

Segunda: Inversamente, considerando-se que danos físicos e diminuição física constituem uma violação de direitos, então B ou os cervejeiros e os padeiros não têm o direito de se defender das ações de A, pois as ações deste – entrada no mercado de trabalho ou no de casamento, alteração na valoração subjetiva da cerveja e do pão, ou a abertura de uma cervejaria ou padaria – não afetam a integridade corpórea de B ou a integridade física da propriedade dos cervejeiros ou da dos padeiros. Se, ainda assim, eles se defenderem fisicamente, então o direito de defesa passaria ao indivíduo A, pois este teria tido sua integridade gratuitamente atacada. Nesse cenário, portanto, se alguém altera o valor da propriedade de outras pessoas, isso não pode ser considerada uma agressão passível de punição.

Uma terceira possibilidade não existe.

Entretanto, ambas as ideias acerca dos direitos de propriedade não são apenas incompatíveis. A visão alternativa – a de que um indivíduo pode ser o dono do valor ou do preço de bens escassos – é indefensável. Embora uma pessoa tenha controle sobre se suas atitudes irão ou não gerar alterações físicas na propriedade de terceiros, ela não tem controle algum sobre se suas atitudes irão ou não afetar o valor (ou o preço) da propriedade de terceiros. Isso é algo determinado por outros indivíduos e por suas avaliações subjetivas. Consequentemente, seria impossível saber com antecedência se as atitudes tomadas por uma pessoa, e que geraram alterações no valor de uma propriedade, foram legítimas ou não. Assim, antes de se iniciar qualquer empreendimento, por mais insignificante que fosse, toda a população teria de ser interrogada a fim de se assegurar que tal ação não prejudicaria o valor de alguma propriedade. E ninguém poderia começar a agir até que o consenso universal fosse alcançado. A humanidade pereceria muito antes de essa hipótese poder se cumprir.

Além disso, a afirmação de que uma pessoa tem um direito de propriedade sobre o valor das coisas envolve uma contradição. Pois, para alegar que essa afirmação é válida – universalmente aceita – teríamos de assumir que é legítimo agir antes de haver um consenso sobre se é permitido ou não a essa pessoa agir. Caso contrário, seria impossível propor-se qualquer coisa. Entretanto, se uma pessoa é capaz de expressar uma proposição – e ninguém pode negar isso sem cair em contradição – isto só é possível porque existem fronteiras físicas para a propriedade, isto é, fronteiras que qualquer um pode reconhecer e determinar independentemente e sem qualquer informação sobre as valorações subjetivas de terceiros.[4]

Outro equívoco igualmente comum a respeito da ideia da propriedade privada se refere à classificação de ações como sendo admissíveis ou inadmissíveis baseando-se exclusivamente em seus efeitos físicos – isto é, sem levar em consideração que cada direito de propriedade tem uma história (gênese temporal).

Se A danificar fisicamente a propriedade de B (por exemplo, através de poluição do ar ou sonora), a situação deve ser julgada de modo diferente, dependendo de quais direitos de propriedade foram estabelecidos primeiro. Se a propriedade de A foi estabelecida primeiro, e se ele já vinha efetuando suas atividades problemáticas antes de a propriedade vizinha de B ser fundada, então A pode continuar suas atividades. O indivíduo A estabeleceu um tipo de servidão.[5] Desde o início, B adquiriu e sabia que estava adquirindo uma propriedade suja e barulhenta, e se B quiser que sua propriedade seja limpa e silenciosa ele deve pagar A por esse benefício. Inversamente, se a propriedade de B tiver se estabelecido primeiro, então A deverá parar suas atividades; e se ele não quiser fazer isso, então deverá pagar B por esse privilégio. Qualquer outra sentença é impossível e indefensável porque, estando uma pessoa viva e acordada, não tem como ela não agir. Uma pessoa que se estabeleceu primeiro (o precursor) não pode, mesmo se ela quisesse, esperar que um retardatário dê seu aval para que ela comece a agir. A ela deve ser permitida a ação imediata. E se nenhuma propriedade – além da do precursor – existe (porque um retardatário obviamente ainda não chegou), então o raio de ação desse precursor está limitado apenas pelas leis da natureza. Um retardatário só poderá questionar a legitimidade de um precursor se ele, o retardatário, for o dono dos bens afetados pelas ações do precursor. Entretanto, isso implica que uma pessoa pode ser dona de coisas ainda não apropriadas; ou seja, que uma pessoa pode ser proprietária de coisas que ainda não foram descobertas ou apropriadas por ela por meio da ação física. E isso, finalmente, significa que ninguém teria a permissão de se tornar o primeiro usuário de uma entidade física ainda não apropriada e não descoberta. Afinal, essa entidade, mesmo que ainda não tenha sido descoberta, já teria dono. Daí a contradição.

 

IV. A economia da propriedade privada

A ideia da propriedade privada, além de estar de acordo com a nossa intuição moral e ser a única solução justa para o problema da ordem social, representa algo ainda maior: a instituição da propriedade privada é também a base da prosperidade econômica e do “bem-estar social”. Se as pessoas agirem de acordo com as regras que fundamentam a instituição da propriedade privada, o bem-estar social será otimizado.

Todo ato de apropriação original melhora o bem-estar do apropriador (pelo menos ex ante); caso contrário, tal ato não seria executado. Ao mesmo tempo, ninguém fica em situação pior por causa desse ato. Qualquer outro indivíduo poderia ter apropriado esses mesmos bens e territórios caso ele tivesse reconhecido-os como escassos – logo, valiosos. Entretanto, considerando-se que nenhum outro indivíduo faz tal apropriação, ninguém mais pode ter sofrido uma perda de bem-estar decorrente da apropriação original. Portanto, o chamado critério de Pareto (que alega ser cientificamente legítimo dizer que haverá uma melhora do “bem-estar social” somente se uma determinada mudança aumentar o bem-estar individual de uma pessoa e não causar uma piora no bem-estar de qualquer outra pessoa) está cumprido. Um ato de apropriação original satisfaz essa condição. Ele aumenta o bem-estar de uma pessoa, o apropriador, sem diminuir a riqueza física (propriedade) de nenhuma outra. Todas as outras pessoas seguem tendo a mesma quantidade de propriedade que tinham antes, exceto o apropriador, que ganhou uma propriedade nova e previamente inexistente. Um ato de apropriação original sempre aumenta o bem-estar social.

Qualquer ação adicional feita com os bens e territórios originalmente apropriados aumenta o bem-estar social, pois, não importa o que a pessoa faça com sua propriedade, ela estará fazendo com o intuito de aumentar seu bem-estar. Isso vale tanto para quando ela consome sua propriedade, como para quando ela produz uma nova propriedade a partir da “natureza”. Todo ato de produção é motivado pelo desejo que o produtor tem de transformar uma entidade menos valiosa em uma mais valiosa. Desde que os atos de consumo e de produção não causem danos físicos ou diminuição da propriedade de terceiros, eles estarão aumentando o bem-estar social.

Finalmente, toda troca (transferência) voluntária de propriedade – seja ela uma propriedade adquirida ou produzida – entre duas pessoas, também aumenta o bem-estar social. Uma troca de propriedade só é possível se ambos os proprietários preferem aquilo que irão obter àquilo de que estão abrindo mão. E com isso ambos esperam se beneficiar da troca. Duas pessoas melhoram seu bem-estar após cada troca de propriedade, enquanto que a propriedade sob o controle de todas as outras pessoas permanece inalterada.

Em um contraste marcante, qualquer desvio da instituição da propriedade privada necessariamente levará a perdas no bem-estar social.

No caso da co-propriedade igual e universal – comunismo universal em vez de propriedade privada – o preço a ser pago seria a morte instantânea da humanidade, pois uma co-propriedade universal significaria que ninguém teria a permissão para fazer qualquer coisa, inclusive se mover para algum lugar. Qualquer desvio real da ordem da propriedade privada representaria um sistema de dominação desigual e hegemônica. Isto é, seria uma ordem na qual uma pessoa ou um grupo – os soberanos, os exploradores ou os Seres Superiores – teria a total liberdade de adquirir propriedade por outros meios que não a apropriação original, a produção ou a troca, ao passo que outra pessoa ou grupo – os governados, explorados ou Seres Inferiores – estaria proibido de fazer o mesmo. Conquanto esse tipo de hegemonia seja possível, ela envolveria perdas no bem-estar social e levaria a um relativo empobrecimento.

Se A puder adquirir livremente um bem ou território já apropriado por B, o bem-estar de A aumentará à custa de uma correspondente perda no bem-estar de B. O critério de Pareto não estará sendo cumprido, e o bem-estar social será sub-ótimo. O mesmo é válido para outras formas de regras hegemônicas. Se A proibir B de se apropriar originalmente de um bem ou espaço até então sem proprietário; se A puder adquirir bens produzidos por B sem a autorização de B; se A puder determinar o que B pode ou não fazer com seus bens apropriados ou produzidos – mesmo que em cada situação esteja sendo respeitado o requisito de que uma pessoa não pode diminuir ou danificar fisicamente a propriedade de outra, ainda assim, em cada caso haverá um “ganhador”, A, e um “perdedor”, B. Em cada caso, A aumenta seu estoque de propriedade à custa da correspondente perda de propriedade de B. Em nenhuma situação o critério de Pareto está sendo cumprido, o que sempre resulta em um nível de bem-estar social sub-ótimo.

Ademais, hegemonia e exploração levam a um nível reduzido de produção futura. Qualquer sistema que dê aos não-produtores, não-comerciantes e não-apropriadores o controle, total ou parcial, sobre os bens apropriados, produzidos ou comercializados por terceiros, é um sistema que necessariamente levará a uma redução de futuros atos de apropriação original, produção e trocas mutuamente benéficas. Pois, para as pessoas que executam esses atos, cada uma dessas atividades está associada a determinados custos, e os custos de se realizar esses atos aumenta sob um sistema hegemônico, ao passo que os custos de não realizá-los, diminui. O consumo presente e o lazer se tornam mais atraentes do que a produção (consumo futuro), o que faz com que o nível da produção fique abaixo do que poderia ser. Quanto aos soberanos, o fato de que eles podem aumentar sua riqueza simplesmente expropriando qualquer propriedade apropriada, produzida ou adquirida contratualmente por terceiros irá levar a uma utilização esbanjadora e destrutiva da propriedade à sua disposição.

E pelo fato de eles terem o poder de suplementar sua riqueza futura por meio da expropriação (impostos), um comportamento orientado para o curto prazo e para o consumo (preferência temporal alta) passa a ser estimulado; e ainda que os soberanos utilizem seus bens “produtivamente”, a probabilidade de ocorrerem más alocações, erros de cálculo e prejuízos econômicos é sistematicamente aumentada.

 

V. O pedigree clássico

Como observado no início desse ensaio, a ética e a economia da propriedade privada apresentadas acima não reivindicam qualquer originalidade. Antes, são uma expressão moderna de uma tradição “clássica” que remete a Aristóteles, ao direito romano, a São Tomás de Aquino, aos escolásticos espanhóis tardios, a Hugo Grócio e a John Locke.[6]

Em contraste à utopia comunista de A República, de Platão, Aristóteles fornece uma lista abrangente das vantagens comparativas da propriedade privada em sua obra Política. Primeiro, a propriedade privada é mais produtiva. “Aquilo que é comum para o maior número de pessoas recebe a quantidade mínima de cuidado. Os homens dão atenção máxima apenas para aquilo que lhes pertence; eles se preocupam menos com o que é comum para todos; ou se preocupam apenas até o grau que for do seu interesse individual. Mesmo quando não há motivo para a negligência, os homens são mais propensos a serem omissos em suas tarefas sempre que pensam que outro está se incumbindo dela”.[7]

Segundo, a propriedade privada evita conflitos e promove a paz. Quando as pessoas têm seus próprios campos de interesse em separado, “não haverá os mesmos motivos para litígios, e a dose de interesse aumentará, pois cada homem sentirá que está se dedicando ao que é deles próprios”[8]. “Realmente, é fato observado que, aqueles que possuem propriedade comum e compartilham sua administração, estão em discórdia uns com os outros com muito mais frequência do que aqueles que possuem propriedade em separado.”[9] Mais: a propriedade privada existiu sempre e em todo lugar, ao passo que as utopias comunistas não surgiram espontaneamente em lugar algum. Finalmente, a propriedade privada promove as virtudes da benevolência e da generosidade. Ela permite que as pessoas assim o sejam com amigos em necessidade.

O direito romano, desde a Lei das Doze Tábuas, passando pelo Código Teodosiano até chegar ao Código de Justiniano, reconheceu o direito à propriedade privada como sendo quase absoluto. Naquela época – muito antes de o estado criar seus inúmeros encargos e restrições -, a propriedade era reconhecida como originária de qualquer posse incontestada. O dono poderia fazer o que quisesse com sua propriedade, e a liberdade de contrato era plenamente reconhecida. Também, o direito romano fazia uma distinção importante entre o direito ‘nacional’ (romano) – ius civile – e o direito ‘internacional’ – ius gentium.

A contribuição cristã a essa tradição clássica – expressada por católicos como São Tomás de Aquino e os escolásticos tardios espanhóis, bem como pelos protestantes Hugo Grócio e John Locke – é dupla. Tanto Roma quanto a Grécia eram civilizações que possuíam escravos. Aristóteles, habitualmente, considerava a escravidão como sendo uma instituição natural. Em contraste, a civilização ocidental – cristã -, salvo algumas exceções, sempre foi essencialmente uma sociedade de homens livres. Daí, tanto para Aquino quanto para Locke, todo indivíduo tem um direito de propriedade sobre si próprio (soberania individual). Ademais, Aristóteles e a civilização clássica em geral eram desdenhosos do trabalho, do comércio e da ação de se ganhar dinheiro. Diferentemente, a Igreja, em conformidade com o Velho Testamento, glorificava as virtudes do trabalho e do esforço. Destarte, para Aquino e Locke, foi por meio do trabalho, do uso e do cultivo de terras até então ociosas que a propriedade veio a surgir.

Essa teoria clássica da propriedade privada – que se baseia na soberania do indivíduo sobre seu o próprio corpo, no princípio da apropriação original e nos contratos (transferência de títulos de propriedade) – continuou encontrando defensores famosos, como Jean Baptiste Say. Entretanto, desde o auge de sua influência no século XVIII até bem recentemente, com o avanço do movimento rothbardiano, a teoria clássica caiu no esquecimento.

Durante dois séculos, a economia e a ética (filosofia política) se distanciaram de suas origens, que é a doutrina do direito natural, e passaram a fazer parte de empreendimentos intelectuais aparentemente desconexos. A economia era uma ciência “positiva” livre de julgamentos de valor. Ela perguntava “quais meios são apropriados para produzir um dado (pressuposto) fim?”. A ética era uma ciência “normativa” (se é que era uma ciência). Ela perguntava “quais fins (e qual o uso a ser dado aos meios) uma pessoa pode justificadamente adotar?”. Como resultado dessa separação, o conceito de propriedade foi crescentemente desaparecendo de ambas as disciplinas. Para os economistas, ‘propriedade’ soava muito normativo; para os filósofos políticos, ‘propriedade’ tinha sabor de economia trivial.

Em contraste, observou Rothbard, termos econômicos elementares como trocas diretas e indiretas, mercados e preços de mercado, assim como agressão, crime, delito e fraude não podem ser definidos ou entendidos sem uma teoria adequada sobre a propriedade. Também não é possível estabelecer teoremas econômicos relacionados a esses fenômenos sem a noção implícita de propriedade e direitos de propriedade. Uma definição e uma teoria para a propriedade devem anteceder a definição e o estabelecimento de todos os outros termos e teoremas econômicos.

A contribuição especial de Rothbard, desde o início dos anos 1960 até sua morte em 1995, foi a redescoberta de que a propriedade e os direitos de propriedade são a base comum tanto da economia quanto da filosofia política. Isso levou a uma reconstrução sistemática e a uma integração conceitual da moderna economia marginalista e da filosofia política do direito natural em uma ciência moral unificada: o libertarianismo.

 

VI. Os desvios de Chicago

Durante a época em que Rothbard estava restituindo o conceito de propriedade privada à sua posição central na ciência econômica, além de estar reintegrando a economia à ética, outros economistas e teóricos do direito associados à Universidade de Chicago, tais como Ronald Coase, Harold Demsetz e Richard Posner, também estavam começando a redirecionar atenção profissional à questão da propriedade e dos direitos de propriedade.[10]

Entretanto, enquanto que para Rothbard a propriedade privada e a ética logicamente precedem a economia, para os chicaguenses a propriedade privada e a ética estão subordinadas à economia e a todas as considerações econômicas. De acordo com Posner, qualquer coisa que aumente a riqueza social é justa.[11]

A diferença entre as duas abordagens pode ser ilustrada considerando-se um dos problemas utilizados por Coase como exemplo: uma ferrovia que passa ao lado de uma fazenda. O motor emite faíscas, e as faíscas danificam as plantações do fazendeiro. O que deve ser feito?

Do ponto de vista clássico, o que precisa ser estabelecido é quem estava lá primeiro: o fazendeiro ou a ferrovia? Caso seja o fazendeiro, ele poderia então obrigar a ferrovia a interromper suas atividades (através de uma ordem se cessação) ou então exigir compensação. Caso tenha sido a ferrovia quem se estabeleceu primeiro, então ela poderia continuar emitindo faíscas, e o fazendeiro teria de pagar à ferrovia caso ele quisesse se manter livre das faíscas.

Do ponto de vista coaseano, a resposta é dupla. Primeiro e “positivamente”, Coase alega que não importa comoos direitos de propriedade e os encargos são alocados; o que importa é que eles estejam alocados de alguma forma e de modo que os custos de transação sejam zero (algo irrealista).

Coase alega ser errado pensar no fazendeiro e na ferrovia em termos de “certo” ou “errado”, como “agressor” e “vítima”.

“O problema é normalmente pensado como: A causa danos a B, e a decisão a ser tomada é ‘Como deveríamos restringir A? Mas isso está errado. Estamos lidando com um problema de natureza recíproca. Evitar o dano causado a B seria infligir dano a A. A verdadeira questão a ser decidida é: deveria A ter permissão para prejudicar B ou será que B é quem deveria ter permissão para prejudicar A? O problema é como evitar o dano mais sério.”[12]

Ademais, considerando-se que A e B possuem “igual” estatura moral, supostamente não interessa para quem os direitos de propriedade foram inicialmente designados: a alocação de recursos econômicos, no final, será a mesma. Suponha que o prejuízo da safra para o fazendeiro, A, é de $1000, e o custo de um aparelho retentor de faísca (ARF) para a ferrovia, B, seja $750. Se B for julgado responsável pelos danos à colheita, então B terá de instalar um ARF ou interromper suas operações. Se B for considerado inocente, então A irá voluntariamente pagar uma soma entre $750 e $1000 para que B instale um ARF. Ambas as possibilidades resultam na instalação de um ARF. Agora, assuma que os números sejam trocados: o prejuízo da safra é de $750, e o custo de um ARF é de $1000. Se B for julgado responsável, ele pagará a A $750, mas não irá instalar um ARF. E se B for julgado inocente, A não poderá pagar a B o suficiente para instalar um ARF. Novamente, ambos os cenários acabam com o mesmo resultado: não haverá um ARF. Portanto, independentemente de como os direitos de propriedade são inicialmente designados, de acordo com Coase, Demsetz e Posner a alocação dos fatores de produção será a mesma.

Segundo e “normativamente” – sendo o único caso realista de custos de transação positivos -, Coase, Demsetz e Posner pedem que os tribunais designem direitos de propriedade aos queixosos de maneira tal que a “riqueza” ou o “valor da produção” seja maximizado. Para o caso acima considerado, isso significa que, se o custo do ARF for menor que o prejuízo da colheita, então o tribunal deveria ficar do lado do fazendeiro e responsabilizar a ferrovia. Por outro lado, se o custo do ARF for maior que o prejuízo da colheita, então o tribunal deveria ficar do lado da ferrovia e responsabilizar o fazendeiro. Posner oferece outro exemplo. Uma fábrica emite fumaça e, por isso, diminui o valor das propriedades residenciais na vizinhança. Se o valor das propriedades cai $3 milhões e o custo de se remanejar a fábrica é de $2 milhões, a planta deve ser condenada e obrigada a se mudar. Entretanto, se os números forem trocados – o valor das propriedades cai $2 milhões e os custos de remanejamento são de $3 milhões – a fábrica poderá continuar ali emitindo fumaça.

Ambas as alegações positivas e normativas da economia e do direito de Chicago devem ser rejeitadas.[13] Quanto à alegação de que não importa a quem os direitos de propriedade são inicialmente designados, três respostas são cabíveis. Primeiro, como até Coase admite, certamente interessa ao fazendeiro e à ferrovia como e a quem esses direitos serão designados. Interessa não apenas como os recursos são alocados, mas também quem fica com eles.

Segundo e mais importante: para o valor da produção social, é de fundamental importância como são designados os direitos de propriedade. Os recursos alocados para empreitadas produtivas não são simplesmente dados de graça. Eles próprios são resultado de uma série de atos anteriores de apropriação original e produção; e o quanto haverá de apropriação original e de produção é algo que depende do incentivo dado aos apropriadores e produtores. Se os apropriadores e produtores forem os donos absolutos daquilo que apropriaram ou produziram, ou seja, se não houver risco de surgir qualquer dependência direta para com retardatários em decorrência dos atos de apropriação e produção, estão o nível de riqueza será maximizado. Por outro lado, se os apropriadores originais e produtores puderem ser responsabilizados por retardatários, como subentendido na doutrina da “reciprocidade do dano” de Coase, então o valor da produção será menor do que no outro contexto. Isto é, a doutrina do “não interessa” é contraprodutiva e, ironicamente, provoca o resultado oposto da maximização da riqueza almejada por Coase.

Terceiro, a alegação de Coase de que a utilização dos recursos não será afetada pela alocação inicial dos direitos de propriedade não é normalmente verdadeira. Aliás, é fácil criar contra-exemplos. Suponha que o fazendeiro não perca $1000 de colheita por causa das faíscas da ferrovia, porém perca um jardim de flores que valia $1000 para ele, mas que não valia absolutamente nada para ninguém mais. Se o tribunal declarar a ferrovia culpada, o ARF de $750 será instalado. Se o tribunal não declarar a ferrovia culpada, o ARF não será instalado porque o fazendeiro simplesmente não possui os fundos necessários para dar à ferrovia de modo que esta instale o ARF. Logo, a alocação final dos recursos será diferente dependendo do arranjo inicial dos direitos de propriedade.

De forma similar, contra a alegação normativa de que os tribunais deveriam designar direitos de propriedade de modo a maximizar a riqueza social, mais três respostas são cabíveis. Primeiro, qualquer comparação interpessoal que envolva utilidade é cientificamente impossível. Entretanto, os tribunais têm de incorrer a contragosto em tais comparações sempre que precisam fazer análises de custo-benefício. Essas análises de custo-benefício são tão arbitrárias quanto as presunções nas quais se baseiam. Por exemplo, elas assumem que os custos psíquicos podem ser ignorados e que a utilidade marginal do dinheiro é constante e igual para todos.

Segundo, como os exemplos numéricos acima mostram, os tribunais designam direitos de propriedade de maneira distinta dependendo dos voláteis dados do mercado. Se o ARF for menos caro que os danos à colheita, o fazendeiro ganha a causa, ao passo que se o ARF for mais caro que os danos à colheita, a ferrovia ganha a causa. Ou seja, circunstâncias diferentes levam a uma redistribuição dos títulos de propriedade. Nesse cenário, ninguém jamais está seguro de sua propriedade.[14] A incerteza jurídica se torna permanente. Isso não parece ser justo nem econômico; ademais, quem em sã consciência iria utilizar um tribunal que tenha anunciado que, no decurso do tempo, poderá realocar os atuais títulos de propriedade dependendo das voláteis condições de mercado?

Finalmente, uma ética não deve apenas ser permanente e estável em circunstâncias voláteis; uma ética deve permitir que uma pessoa decida sobre o que é “justo ou injusto” antes de ela tomar uma atitude, e deve estar relacionada a algo que esteja sob o controle de um agente. Esse é o caso para a ética clássica da propriedade privada e seu princípio do “primeiro usuário, primeiro dono”. De acordo com essa ética, agir de forma justa significa que uma pessoa emprega somente meios adquiridos justamente – meios originalmente apropriados, produzidos ou adquiridos contratualmente de um ex-dono -, e os emprega de forma tal que não ocorra dano físico algum à propriedade alheia. Qualquer pessoa pode determinar ex ante se essas condições são satisfeitas ou não; e ela obviamente tem o controle sobre se suas ações danificam fisicamente a propriedade de terceiros ou não. Em distinto contraste, a ética da maximização de riqueza fracassa em atingir ambos os aspectos. Nenhuma pessoa pode determinar ex ante se suas ações irão ou não levar à maximização da riqueza social. Se isso de fato pode ser determinado, só o seria ex post. Da mesma forma, ninguém tem controle sobre se suas ações maximizam ou não a riqueza social. Se elas vão maximizar ou não depende das ações e avaliações de outras pessoas.

Novamente, quem em seu perfeito juízo se sujeitaria ao julgamento de um tribunal que não o deixou saber antecipadamente nem como agir de forma justa e nem como evitar agir de forma injusta, mas que certamente o julgaria ex post, depois dos fatos.

 

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Notas

[1] Ver Murray N. Rothbard, Man, Economy, and State; Power and Market; idem, The Ethics of Liberty; idem, Egalitarianism as a Revolt against Nature and other Essays; idem, The Logic of Action, 2 vols.

[2] Ver também Hans-Hermann Hoppe, Uma teoria sobre Socialismo e Capitalismo; idem, The Economics and Ethics of Private Property.

[3] Perceba o caráter da “lei natural” dessa solução proposta para o problema da ordem social: que a propriedade privada e sua obtenção através de atos de apropriação original não são meras convenções, mas instituições necessárias (de acordo com a natureza do homem como animal racional). Uma convenção serve a um propósito e existe uma alternativa a uma convenção. Por exemplo, o alfabeto latino serve ao propósito da comunicação escrita. Ele, contudo, possui uma alternativa: o alfabeto cirílico. Portanto, temos aí uma convenção. Qual o propósito das normas? Evitar conflitos relacionados ao usufruto de objetos escassos. Normas geradoras de conflitos contradizem exatamente o seu objetivo. No entanto, com relação ao propósito de evitar conflitos, não existe alternativa à propriedade privada e à apropriação original. Na ausência de uma harmonia pré-estabelecida entre os agentes, os conflitos só podem ser prevenidos se todos os bens estiverem sempre em posse privada de indivíduos específicos e se for sempre evidente quem é e quem não é dono de quê. Ademais, se a humanidade estivesse começando agora, os conflitos só poderiam ser evitados se a propriedade privada fosse adquirida através de atos de apropriação original (ao invés de por meio de meras declarações ou de palavras de retardatários).

[4] Embora ninguém pudesse agir se todos possuíssem direitos de propriedade sobre o valor de suas propriedades, na prática seria possível que uma pessoa ou um grupo, A, tivesse direitos de propriedade sobre o valor de sua propriedade e, com isso, pudesse determinar o que outra pessoa ou grupo, B, poderia ou não fazer com as coisas sob o controle de A. Isso, entretanto, significaria que B não é dono nem do valor e nem da integridade física das coisas sob seu controle; ou seja, B e sua propriedade na verdade pertencem a A. Essa regra poderia até ser implantada, mas não se qualificaria como uma ética humana. Ao contrário, trata-se de um sistema de duas classes, onde os Seres Superiores são os exploradores e os Seres Inferiores, os explorados.

[5] Em termos jurídicos, servidão é um encargo que dá ao possuidor de um terreno o direito de usar ou tirar algum proveito de uma área contígua que pertence a terceiros. Por exemplo, direito de passagem, busca de água, instalação de fios elétricos, etc. [N. do T.]

[6] Para mais detalhes, ver Murray N. Rothbard, Economic Thought Before Adam Smith. An Austrian Perspective on the History of Economic Thought, Volume I; ver também Tom Bethell, The Noblest Triumph. Property and Prosperity Through the Ages (New York: St. Martin’s Press, 1998).

[7] Aristótels, Política (Oxford: Clarendon Press, 1946), 1261b.

[8] Ibidem, 1263a.

[9] Ibidem, 1263b.

[10] Ver Ronald Coase, The Firm, The Market, and the Law (Chicago, University of Chicago Press, 1988); Harold Demsetz, Ownership, Control, and the Firm (Oxford: Basil Blackwell, 1988); Richard Posner, The Economics of Justice (Cambridge: Harvard University Press, 1981).

[11] Posner, The Economics of Justice, p. 74: “um ato de injustiça (é definido) como sendo um ato que reduz a riqueza da sociedade.”

[12] Ronald Coase, “The Problem of Social Cost,” em: idem, The Firm, the Market, and the Law, p. 96. A perversidade moral dessa alegação é melhor ilustrada quando aplicada ao caso hipotético de A estuprando B. De acordo com Coase, A não deve ser contido. Ao contrário, “estamos lidando com um problema de natureza recíproca”. Ao se impedir que A estupre B, está-se infligindo um dano a A, pois agora ele não pode mais estuprar livremente. A verdadeira questão é: deveria A poder estuprar B, ou deveria B poder proibir que A o estuprasse? “O problema é como evitar o dano mais sério.”

[13] Ver também Walter Block, “Coase and Demsetz on Private Property Rights,” Journal of Libertarian Studies, Vol.1, no. 2, 1977; idem, “Ethics, Efficiency, Coasian Property Rights, and Psychic Income: A Reply to Harold Demsetz,” Review of Austrian Economics, Vol. 8, no. 2, 1995; idem, “Private Property Rights, Erroneous Interpretations, Morality and Economics,” Quarterly Journal of Austrian Economics, Vol. 3, no. 1, 2000; Gary North, The Coase Theorem: A Study in Epistemology (Tyler, Texas: Institute for Christian Economics, 1992); idem, “Undermining Property Rights: Coase and Becker,” Journal of Libertarian Studies, Vol. 16, no. 4 (por vir).

[14] Posner, The Economics of Justice, p. 70-71, admite isso com uma franqueza cativante: “Direitos absolutos perfazem um importante papel na teoria econômica do direito…. Mas quando os custos de transação são proibitivos, o reconhecimento de direitos absolutos é ineficiente….. direitos de propriedade, embora absolutos, (estão) sujeitos aos custos de transações e são subservientes ou instrumentais ao objetivo de se maximizar a riqueza.

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