Algum povo é verdadeiramente indígena?

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O Dia de Colombo é comemorado nos Estados Unidos como feriado federal na segunda segunda-feira de outubro. A data comemora a chegada de Cristóvão Colombo às Américas em 1492, e em muitos lugares é celebrada com desfiles e eventos. No entanto, a comemoração é controversa e muitos estados e cidades também celebram o “Dia dos Povos Indígenas” e sempre vemos postagens usuais da mídia – tanto nas mídias sociais quanto na velha mídia – afirmando que a terra deve ser controlada por aqueles que são indígenas dela.

Isso levanta a questão do que significa ser “indígena” – um status geralmente baseado na reivindicação de que estavam aqui primeiro – o que implica um direito de propriedade. Esse direito implícito de propriedade, por sua vez, tem como premissa a presunção de que o suposto grupo indígena se apropriou da terra em questão – em virtude de ser o primeiro a ocupá-la. Ou, em termos mais coloquiais, a propriedade tem como premissa a teoria moral conhecida como “achado não é roubado”.

Mas, existem alguns problemas e ambiguidades com a afirmação de que estavam aqui primeiro, como geralmente ela é feita. De fato, os problemas são encontrados na própria frase e na falta de especificidades que geralmente é apresentada no argumento. Ou seja, quando encontramos a frase “nós estávamos aqui primeiro”, temos que ser muito específicos sobre pelo menos três dos termos contidos na frase. Por exemplo, qual é o significado preciso de “nós” e de “aqui” e de “primeiro”?

Uma vez que examinamos esse problema em detalhes, descobrimos que nenhum grupo é verdadeiramente indígena. Por outro lado, se preferirmos a paz à total ilegalidade e guerra, torna-se necessário reconhecer que só porque uma população em um determinado lugar não é indígena e deslocou alguma outra população no passado, isso não significa que a terra em questão esteja simplesmente em disputa.

Quem é indígena?

Ao abordar o problema da indigeneidade, podemos recorrer a um relato fictício útil de uma conversa entre o Chefe Touro Sentado e o Coronel Nelson Miles no filme de 2007 Enterre meu coração na curva do rio. Esta cena do filme é frequentemente postada por usuários nas mídias sociais sempre que a alegação de indigeneidade tribal circula na mídia. A conversa certamente não aconteceu dessa maneira – se é que aconteceu – mas o diálogo em si ajuda a ilustrar como surgem as dificuldades quando um grupo de pessoas afirma ser indígena.

Touro Sentado: Tire seus soldados daqui, eles revelam sua verdadeira intenção.

Miles: Muito bem, senhor, diga-me então, até onde devo retirar meus homens?

Touro Sentado: Você deve tirá-los de nossas terras.

Miles: Quais são exatamente suas terras?

Touro Sentado: Estas são as terras onde meu povo viveu antes de vocês, brancos, chegarem.

Miles: Eu não entendo. Nós, brancos, não fomos seus primeiros inimigos. Por que você não exige de volta a terra em Minnesota, onde os Chippewa e outros o expulsaram anos antes …

Touro Sentado: As Colinas Negras são terras sagradas dadas ao meu povo por Wakan Tanka.

Miles: Muito conveniente encobrir suas reivindicações no espiritismo. … Não importa o que suas lendas digam, você não brotou das planícies como as gramíneas da primavera e não se aglutinou do éter. Você saiu da floresta de Minnesota armado até os dentes e atacou seu semelhante. Você massacrou os Kiowa, os Omaha, os Ponca, os Otoe e os Pawnee sem piedade … e ainda assim você afirma que Black Hills é uma reserva privada legada a você pelo grande espírito. … Você conquistou essas tribos, cobiçando sua caça e suas terras, assim como agora conquistamos você por um motivo não menos nobre.

A conversa é ficcionalizada e dramatizada, mas os fatos apresentados são amplamente corretos. Praticamente ninguém contesta, por exemplo, que os Lakota viveram em Minnesota durante o século XVIII e provavelmente viveram em outro lugar – talvez no vale do rio Ohio – antes disso.  Os Lakota só emigraram para as planícies do norte do que hoje são os Estados Unidos no final do século XVIII, reivindicando as Black Hills como suas. Outras tribos viveram nesses lugares antes que os Lakota aparecessem e expulsassem os moradores de cada área.

O problema de “onde”

A conversa acima poderia ser utilizada, com os nomes alterados, em inúmeros contextos ao longo do tempo e em todo o mundo. Se voltarmos o suficiente na história, praticamente nenhum grupo de pessoas é indígena de onde está agora. Os árabes não são nativos do norte da África. Os húngaros não são nativos da Hungria. Os japoneses não são nativos do Japão. E assim por diante.

Tal como acontece com a Eurásia, a história da América do Norte está repleta de inúmeras migrações à medida que o clima e as realidades demográficas mudaram. Isso aconteceu antes e depois da chegada dos europeus. Por exemplo, os chamados Puebloans Ancestrais se expandiram e migraram bem antes da chegada dos europeus, deslocando outras tribos no local onde as tribos Pueblo agora residem. Os Comanches mudaram-se para as planícies do sul no século XVI. A lista de migrações semelhantes é longa. Portanto, a primeira pergunta que deve ser respondida sempre que houver reivindicações de indigeneidade é esta: “indígena de onde exatamente?”

Determinar os direitos de propriedade – incluindo direitos de propriedade comunal semelhantes aos afirmados por grupos tribais – requer especificidade. O mesmo vale para determinar quem é indígena onde. Claramente, então, uma afirmação de “somos indígenas da América” é tão específica quanto a frase “somos indígenas da Europa”. Mesmo falando em geral, isso não é útil. Podemos ver por que se aplicarmos o método à Europa: os irlandeses não são autóctones, digamos, da Bulgária, embora ambos os grupos estejam na Europa. Assim, ser indígena da Europa não denota indigeneidade em qualquer lugar da Europa. O mesmo é verdade na América do Norte. Os Arapahoe, por exemplo, não são indígenas das terras dos Muscogee, mesmo que ambas as áreas sejam na América do Norte.

O problema de “quem”

Isso nos leva ao segundo desafio no estabelecimento da indigeneidade: de quem exatamente estamos falando? A própria ideia de que todos os grupos tribais da América podem ser agrupados como “índios” é uma invenção puramente moderna que só começou a se enraizar na década de 1920. Antes disso, poucos membros da, digamos, tribo Navajo se considerariam parte do mesmo grupo que os membros da tribo iroquesa. É igualmente absurdo afirmar que um inglês no século XVIII se considerava francês porque a Inglaterra e a França estão ambas na Europa. Os detalhes são importantes.

Por outro lado, pelo menos os ingleses e os franceses compartilham alguma história comum e documentada em termos de instituições romanas, laços culturais anteriores na cristandade e idioma. Esse tipo de unidade e troca cultural ténue era muito mais raro entre os grupos tribais norte-americanos que não eram próximos uns dos outros. Nos tempos pré-colombianos, certamente não havia nada como a Igreja internacional na América do Norte que pudesse fornecer uma espécie de unidade cultural entre muitos grupos “nacionais”. As línguas eram numerosas e variadas. Também não havia nenhuma linguagem escrita amplamente conhecida que pudesse facilitar a comunicação através do tempo e do espaço, como acontece com o latim na Europa.

Portanto, qualquer referência a “índios” como um grupo genérico é de pouco valor para determinar a indigeneidade em qualquer lugar específico. É inútil dizer que “índios” são indígenas de, digamos, Texas. A pergunta apropriada é “quais índios?” (E, por falar nisso, onde no Texas?) Sem responder a essa pergunta muito especificamente, não estamos nem perto de estabelecer qualquer coisa que possamos chamar de reivindicação ao status indígena.

O problema do “primeiro”

Finalmente, temos que abordar o problema do que se entende por “primeiro”. Quando a frase “nós estivávamos aqui primeiro” é invocada, “primeiro” significa “habitantes originais” ou significa apenas “aqui antes de você“.

Em teoria, o termo significa necessariamente “nós somos os habitantes originais”, uma vez que a reivindicação de indigeneidade é essencialmente uma reivindicação de propriedade por meio da apropriação original. Na prática, no entanto, o termo significa apenas “aqui antes de você” porque é impossível provar a indigeneidade com base em histórias não específicas sobre o passado distante. É por isso que muitos que reivindicam indigeneidade, como o personagem de Miles observa na conversa acima, “encobrem [suas] reivindicações no espiritismo”. Se tudo mais falhar, simplesmente diga “nosso deus nos deu esta terra”.

Como mostrado na dramatização acima, ficou claro que os Lakota não foram as primeiras pessoas a viver na região de Black Hills. Eles vieram de outro lugar. Mas, eles poderiam alegar com razão que estavam na área antes que os colonos europeus começassem a reivindicar a área. Isso certamente dá aos Lakota uma melhor reivindicação à terra, mas não estabelece a indigeneidade.[1]

Mas, pelas razões listadas por Miles em sua réplica a Touro Sentado, simplesmente estar presente antes do outro cara não estabelece um direito moral à propriedade. Afinal, outra pessoa esteve lá antes dos Lakota e foi forçada a abrir mão de sua propriedade.

Isso significa que o poder determina quem tem razão?

No entanto, os Lakota e os americanos são conquistadores que apareceram e expropriaram terras das pessoas que estavam lá antes. Quando os americanos chegaram, eles fizeram com os Lakota o mesmo que os Lakota haviam feito com suas vítimas antes. Miles, na dramatização, aparentemente reconhece que nenhum dos grupos pode reivindicar moralmente a terra. Em nenhum momento Miles realmente estabelece uma justificativa moral para a conquista da região pelo governo dos EUA.  Ou seja, em ambos os casos, o vencedor vence sem nenhuma virtude além da de ser militarmente vitorioso. A única lei em vigor em ambos os casos era a lei da selva, a lei do mais forte.

Então, se ninguém é verdadeiramente indígena, isso significa que todas as terras estão em disputa em todos os lugares? A resposta é “não” se quisermos viver em um mundo onde a conquista e a carnificina sem lei não sejam a norma sempre e em todos os lugares.

Na prática, o conceito de indigeneidade é de pouco valor em qualquer caso. Na verdade, provar a verdadeira indigeneidade é impossível, por isso não é viável basear qualquer reivindicação de propriedade em quem viveu em um lugar, digamos, 2.000 anos atrás. Com o tempo, os registros legais desaparecem, são queimados ou destruídos de alguma outra forma. As migrações ocorrem, e mesmo a memória viva local não é suficiente como um registro de quem viveu onde. Isso, é claro, é o motivo pelo qual alguns recorrem à afirmação de que “nosso deus nos deu esta terra”. Essa é uma última tentativa de afirmar a propriedade quando não sobrou nenhum registro legal.

A impossibilidade da tarefa de provar a indigeneidade significa que ficamos com o imperativo moral de empregar o pragmatismo e a prudência na busca da paz. Assim, o melhor que geralmente podemos fazer é considerar quem mora em um lugar agora ou no passado recente. O grupo que atende esses requisitos deve ser considerado a população indígena de fato. Caso contrário, estaremos aderindo a conquista, a expulsão e as guerras como formas legítimas de aquisição de propriedade.

Obviamente, este não é um problema novo. Em todos os lugares, conquista, migração e expulsão estão entrelaçados no tecido da história local. Isso é o que a Igreja e as classes dominantes da Europa passaram séculos tentando consertar na Idade Média. Com movimentos como a Paz de Deus, os medievais tentaram criar instituições legais que protegessem os direitos de propriedade e mediassem conflitos sobre reivindicações de terras. A ideia era substituir a guerra pela negociação e arbitragem legal. Afinal, as guerras eram conhecidas por causar fomes e massacres. Poucos descreveriam esses resultados como “justos”. Pelas mesmas razões, esperava-se que nobres e reis agissem como árbitros e juízes que poderiam “manter a paz”, evitando que as disputas de terras saíssem do controle.

Nesses casos, o objetivo raramente era descobrir quem tinha o direito à terra com base em alguma reivindicação antiga de 1.000 anos antes. Todos sabiam que mediar com base em reivindicações tão grandiosas e tênues faria pouco para proteger a paz aqui e agora. O que importava era manter alguma aparência de ordem e paz, protegendo os direitos de propriedade daqueles que poderiam ser realmente vistos como os proprietários da propriedade em questão.

Essas primeiras tentativas de substituir a guerra aberta pelo direito continuam a influenciar o direito internacional moderno e o reconhecimento de que, pelo menos em teoria, o poder não determina quem tem razão. De muitas maneiras, houve progresso, se não por outra razão, agora é raro ver populações impelidas pela fome a migrar desesperadamente para terras vizinhas e expulsar à força os nativos. Além disso, o crescimento e a disseminação do conceito de propriedade privada ajudaram a institucionalizar reivindicações de propriedade que são mais precisas, específicas e não fundadas em reivindicações vagas de uma história antiga e improvável.

Infelizmente, esses princípios ainda são frequentemente ignorados, até hoje. Em muitos lugares, a realidade ainda se parece com a de quando a cavalaria dos EUA lutou contra os Lakota.

 

 

 

 

Artigo original aqui

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Notas

[1] O fracasso em estabelecer uma reivindicação moral foi explicado de forma concisa em um poema de Carl Sandburg no qual ele escreve:

“Saia desta propriedade.”
“Por que?”
“Porque ela é minha.”
“Onde você a conseguiu?”
“Do meu pai.”
“Onde ele a conseguiu?”
“Do pai dele.”
“E onde ele a conseguiu?”
“Ele lutou por ela.”
“Bem, eu vou lutar com você por ela.”

1 COMENTÁRIO

  1. Não entendi se houve uma crítica a Ïgreja Católica ou não neste texto…
    O certo de toda a forma é que os portugueses só conseguiram se estabelecer na Terra da Santa Cruz porque tiveram a habilidade de se aliar a índios insatisfeitos com a forma como haviam sido subjugados por outros índios…

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