[Nota do Tradutor: O texto a seguir — referente a uma parte da amostra, lançada pelo autor, da sua obra The Gold Standard (“O Padrão Ouro”) — apresenta, de forma concisa, os fatos da Primeira Guerra Mundial — o enorme e catastrófico conflito que aniquilou a antiga civilização europeia da Belle Époque, com estados de propriedade privada (monarquias/principados) e regime monetário baseado num padrão ouro, e lançou a Europa e o resto do mundo às trevas do estado de propriedade pública (o republicanismo democrático de massas ao estilo americano e o comunismo totalitário soviético) e do regime monetário fiduciário (espelhado no funcionamento do Federal Reserve dos EUA). A “Introdução” também foi traduzida para mostrar ao leitor o contexto do livro, cuja leitura se sugere.]

Introdução
A invenção do bitcoin despertou o interesse pela história monetária ao mesmo tempo em que oferecia às pessoas uma oportunidade historicamente incomparável de experimentar, em primeira mão, o potencial transformador do aprimoramento da tecnologia monetária. Em 2018, publiquei The Bitcoin Standard (“O Padrão Bitcoin”), um livro que se concentra na história monetária e na ciência econômica em torno dos assuntos monetários, explicando o problema da moeda ao longo dos milênios de modo a ilustrar o verdadeiro potencial do bitcoin e a importância histórica dele. Em 2021, publiquei The Fiat Standard (“O Padrão Fiduciário”), que também se foca na história monetária e na ciência econômica em torno dos assuntos monetários para explicar o funcionamento do dinheiro fiduciário e as suas implicações de longo alcance. Em 2023, publiquei Principles of Economics (“Princípios de Economia”), um livro que explica a ciência econômica da ação humana e detalha como a civilização emerge da cooperação dos indivíduos. Todos esses três livros ofereceram aos leitores um afastamento da abordagem usual dos livros modernos de economia, pois desafiam a inevitabilidade e a desejabilidade do dinheiro controlado pelo governo e ilustram os muitos impactos devastadores desse dinheiro para os indivíduos e a sociedade. Um tema central permeando todos os três livros é que o progresso civilizacional humano se encontra inextricavelmente ligado à robustez (hardness) da nossa moeda: quanto mais difícil o dinheiro for de fazer, menos a sua oferta aumentará no decorrer do tempo; melhor ele manterá o seu valor; e mais possibilitará que o seu detentor proveja para o futuro de forma mais eficaz, diminuindo a incerteza em torno do futuro e fazendo com que o descontemos menos. Em outras palavras, a moeda robusta nos torna mais orientados para o futuro, reduzindo a nossa preferência temporal, que é o que dá início ao processo de civilização. À medida que conferimos cada vez mais valor ao futuro, nós vamos postergando a gratificação imediata em prol de recompensas de longo prazo. Poupamos os nossos recursos para o futuro e os investimos para a ampliação da nossa produtividade. Controlamos os nossos instintos ordinários, as nossas paixões ordinárias; e nós subjugamos tais instintos e paixões à nossa razão, a qual calcula o que é do nosso interesse a longo prazo. Cooperamos e resolvemos diferenças de modo pacífico porque somos capazes de apreciar que os frutos de longo prazo da cooperação pacífica superam, em muito, os benefícios de curto prazo da agressão. Nós nos envolvemos no comércio e efetuamos a construção de uma divisão de trabalho altamente sofisticada. Caso for praticado no decorrer de gerações, esse processo de civilização se manifesta como um incremento contínuo no bem-estar material de uma sociedade, com cada geração vivendo melhor que a geração anterior.
O inverso, infelizmente, também é verdadeiro. Quanto mais fácil o dinheiro for de produzir, quanto mais a sua oferta aumentar e quanto mais o seu valor diminuir no transcurso do tempo, menos esse dinheiro nos possibilitará prover para os nossos futuros “eus”, ampliando a incerteza em torno do futuro e fazendo com que o descontemos mais. Em outras palavras, o dinheiro frouxo (easy money) nos torna mais voltados para o presente, aumentando a nossa preferência temporal; e esse aumento é o que destrói o processo de civilização. À medida que descontamos mais o futuro, consumimos os nossos recursos com pouca consideração por ele. A poupança e o investimento de capital diminuem. Temos mais probabilidade de agir para a satisfação dos nossos desejos presentes às custas do nosso bem-estar futuro, já que isso importa cada vez menos. É menos provável que cooperemos e resolvamos diferenças de modo pacífico; então, a nossa divisão de trabalho fica prejudicada — e, com ela, a nossa produtividade. Grande parte da história do século passado refletiu esse declínio civilizacional. O colapso da sociedade testemunhado sob a hiperinflação mostra-se apenas uma versão mais rápida e mais perceptível do mesmo processo provocado pela inflação fiduciária lenta.
Uma tese controversa para muitos, mas que encontrou apoio entre um crescente público leitor mundial, com mais de um milhão de cópias vendidas em 38 idiomas. Acredito que muito do sucesso dos livros se deve à capacidade deles de explicar aos leitores muitos dos fenômenos que vivenciam ao utilizarem diferentes formas de dinheiro. Quanto mais eu escrevia e falava sobre os impactos da moeda na preferência temporal, mais histórias escutava de leitores e ouvintes sobre as experiências dos seus próprios países com inflação e hiperinflação no decorrer do século do dinheiro fiduciário. Em todos os lugares, há inúmeras histórias para contar sobre o solapamento da moeda causando a destruição da segurança econômica e a destruição da civilização.
Permeando todos os meus três livros está uma profunda sensação de arrependimento histórico em relação a um mundo que poderia ter existido — um mundo no qual o dinheiro escapava das garras do estado, era livremente escolhido no mercado e constantemente subia em valor de mercado, viabilizando poupanças, protegendo contra a degradação dos governos e dos bancos centrais e limitando o poder governamental ao restringir o financiamento dos governos à tributação transparente. Inúmeras vezes, ao analisar um aspecto específico da devastação da humanidade pelo dinheiro fiduciário, eu me pegava imaginando o quão diferentes as coisas poderiam ter sido, quanta prosperidade foi perdida e quanto sofrimento humano poderia ter sido evitado. Por anos, eu me peguei divagando em longos experimentos mentais em torno desta questão: como teria sido o século XX em um padrão de moeda robusta? Podemos ver o quão impactante, cheia de consequências significativas, é a redução no valor do dinheiro em episódios de hiperinflação, de inflação elevada e até mesmo de baixa inflação. Podemos perceber o impacto que a atualização aprimorada de um dinheiro frouxo para uma moeda mais robusta exerce sobre os indivíduos, conforme atestam as histórias dos bitcoiners. E podemos ver como a moeda robusta já está mostrando sinais de transformação de El Salvador, país do presidente Nayib Bukele. A toda vez em que observo um desses fenômenos, imagino o quão diferente o mundo teria sido no século passado caso tivesse utilizado moeda robusta. Em muitas entrevistas, perguntas desse teor eram feitas a mim, e eu me encontrava transbordando de ideias para respostas, com a minha boca incapaz de articulá-las na velocidade em que a minha mente as produzia. Esse sentimento é o que coloca fogo nos meus dedos e os faz coçarem para começar a escrever essas ideias, sistematicamente as explorando e elaborando sobre elas, culminando na produção de um livro.
Teria sido uma continuação natural dos meus dois primeiros livros sobre bitcoin e dinheiro fiduciário completar a série através da elaboração de um novo livro que se estendesse mais para trás no tempo, de modo a se efetuar o estudo do padrão ouro, do funcionamento e das implicações desse padrão para a sociedade; de um livro que analisasse questões atinentes a preferência temporal, liberdade individual, poder governamental, preços, pobreza, crescimento econômico e mercados de capital no contexto do padrão ouro do século XIX. Mas esse livro já foi escrito, em 2001, pelo falecido banqueiro suíço Ferdinand Lips, com o título Gold Wars (“Guerras do Ouro”). Esse foi um dos livros mais influentes que li na minha vida. Tal livro explica a história do padrão ouro e a sua influência positiva quase mística sobre a sociedade humana de uma maneira notavelmente clara. Essa obra, mais que qualquer outra, foi a influência motriz por trás de mim na elaboração de The Bitcoin Standard e inspirou muitas das ideias críticas contidas nesse livro meu. Se eu fosse aplicar as ideias de The Bitcoin Standard ao padrão ouro histórico, dificilmente poderia trazer melhorias à obra-prima de Lips, cuja leitura fortemente recomendo. Também recomendaria o livro Gold and the Gold Standard: The Story of Gold Money, Past, Present and Future (“Ouro e o Padrão Ouro: A História do Dinheiro de Ouro, Passado, Presente e Futuro”), de Edwin Walter Kemmerer, para uma perspectiva mais prática e mecânica sobre como o padrão ouro funcionava. Lips, Kemmerer e muitos outros já vasculharam montanhas de dados e obras antigos para nos explicarem como o padrão ouro clássico de fato funcionava; mas havia muitas imperfeições no padrão ouro no século XIX. Mesmo no seu melhor, ele ficou aquém da forma ideal de um padrão ouro na qual todos os instrumentos financeiros são lastreados por 100% do seu valor de face em ouro nos cofres dos emissores. O padrão ouro clássico ainda permitia a criação de dinheiro e de crédito muito acima da quantidade de ouro mantida em reservas. O que aconteceria se tivéssemos um padrão ouro perfeito? Como seria o mundo quando nenhuma entidade é capaz de criar dinheiro sem custos de oportunidade? Essa questão, junto com a indagação de como o século XX teria sido com moeda robusta, inspirou a elaboração de The Gold Standard (“O Padrão Ouro”).
O presente livro recolhe as ideias dos meus três livros anteriores sobre a importância da solidez monetária e as aplica a uma lista de perguntas elaboradas: Como seria o mundo caso tivéssemos um padrão ouro no século XX? E se, em vez de se rebaixar de um padrão ouro imperfeito para o catastrófico padrão fiduciário no início do século XX, o mundo tivesse se aprimorado para um padrão ouro melhor? Tendo em vista tudo que sabemos sobre o impacto da moeda robusta, quão diferente teria sido um dinheiro forte no século XX? Como seria a vida com um dinheiro em constante valorização e com preços em declínio? O que teria acontecido caso os governos, no último século, não pudessem ter se financiado com inflação, sem qualquer responsabilização em relação a isso? Quanto menos sangue teria sido derramado se os governos tivessem de lutar as suas guerras com os seus próprios tesouros, sem possuírem o recurso à inflação para roubar todos os seus cidadãos? Como os padrões de vida e os salários mudariam? Como o estado teria evoluído? O que teria acontecido com a educação, a tecnologia, a política e a nossa produção de energia?
The Gold Standard tenta responder a essas perguntas com uma história econômica fictícia de um século XX alternativo no qual o experimento do dinheiro fiduciário fracassa em 1915. Já que o dinheiro permeia todos os aspectos da vida, eu me esforcei para tornar isso tão realista quanto possível. No lugar de simplesmente supor o sistema monetário que desejo e moldar o mundo em torno dele, escolhi elaborar uma história que poderia, em termos concebíveis, ter levado essa transição monetária a se concretizar, de modo a dar ensejo a acontecimentos históricos realistas ao longo do século. Na consideração de cenários para uma História alternativa, existem muitas conjunturas históricas em relação às quais um escritor poderia tomar a liberdade de escolher um resultado diferente da realidade e, dessa forma, a partir daí, modificar a História. A arma de fogo do assassino de Franz Ferdinand (Francisco Ferdinando) poderia ter emperrado, e o conflito entre a Sérvia e a Áustria teria sido evitado, impedindo a bola-de-neve de guerra que consumiria o planeta. O antigo imperador austríaco Franz Joseph (Francisco José) poderia facilmente ter falecido uma semana antes de o príncipe herdeiro Franz Ferdinand, sobrinho seu, viajar para a Bósnia, falecimento esse que tornaria Franz Ferdinand imperador, algo que potencialmente faria com que a influência modernizadora do novo governante obstasse por completo o conflito com a Sérvia e a Rússia. Mas essas simples mudanças não abordam os fatores históricos e econômicos subjacentes que conduziram à guerra; e elas, portanto, não ofereceriam uma justificativa convincente para a história mudar em termos fundamentais. Os mesmos governos e bancos centrais que foram à guerra em 1914 poderiam ter ido à guerra alguns anos depois, com consequências semelhantes. Para mim, de maneira a tornar essa história interessante e realista, era importante modificar alguma coisa fundamental com a tecnologia monetária da época. Economistas da escola austríaca há muito enfatizaram a importância do empreendedorismo na mudança da História; esta, então, é uma obra de ficção empreendedorial de economistas austríacos.
A bifurcação da realidade da qual este livro se origina tem início em outubro de 1910, com uma carta imaginária que irá promover, nos anos seguintes, avanços na indústria da aviação. Alguns empreendedores estabelecem, em 1911, um serviço internacional de liquidação de ouro, serviço esse baseado em aviões; mas isso não modificaria nada drástico no mundo até o ano de 1915. Fora da indústria da aviação, todos os principais eventos mundiais permanecem os mesmos nesta história até setembro de 1915, quando o experimento do dinheiro fiduciário fracassa de modo irreversível e a nossa história alternativa realmente passa a começar. Os anos de 1914–1915 foram de extraordinária importância histórica, pois deram origem ao sistema monetário e à ordem mundial em que hoje vivemos. Ao introduzir acontecimentos que não são totalmente estranhos à indústria da aviação, este livro descarrila o experimento do dinheiro fiduciário na sua infância e estrangula o século fiduciário no seu berço. O presente livro convida você, prezado leitor, a se teletransportar através do poder da imaginação para esse mundo alternativo e a pensar de forma profunda sobre como tal mundo teria sido.
A Parte I deste livro é baseada na história do nosso mundo real e cobre o período que levou até 1915. Até onde sei, na medida do meu melhor conhecimento, estão corretos todos os fatos históricos mencionados nessa seção. A história alternativa começa na Parte II, que detalha um final alternativo da Grande Guerra e a emergente nova ordem mundial. A Parte III aborda o funcionamento do padrão ouro moderno e a evolução do estado e dos bancos no mundo alternativo. A Parte IV descreve a evolução do padrão de vida, da energia, da tecnologia, da sociedade e da educação no decorrer do século. Finalmente, a Parte V fornece um estudo comparativo entre a dinâmica econômica do nosso mundo fiduciário real e o imaginado mundo dourado deste livro.
Nesta amostra de pré-lançamento, os dois primeiros capítulos são da Parte I, a seção historicamente precisa baseada na história real do nosso mundo. Os capítulos 3 e 4 são da história fictícia da Parte II. Citações que contêm referências são citações verdadeiras, reais, ao passo em que citações sem referências são imaginárias.
Parte 1: A Grande Guerra
A relativa estabilidade da ordem monetária a partir de 1873 coincidiu com a estabilidade da ordem política. À medida que o mundo passava a comercializar através de uma única moeda, ele também se aproximava de um ideal de unidade econômica, com restrições decrescentes ao comércio e reduções em conflitos militares. As relações entre as principais potências continuaram a melhorar no decorrer do tempo, e a perspectiva de guerra parecia cada vez menos provável. A Grã-Bretanha e a França, rivais ferozes por séculos, assinaram em 1904 a Entente Cordiale, um acordo demarcando colônias britânicas e francesas no norte da África, evitando conflitos entre os países e levando à paulatina cooperação entre os dois impérios. As relações anglo-russas também se aprimoraram com a assinatura da Convenção Anglo-Russa em 1907, na qual a Grã-Bretanha e a Rússia delinearam as suas colônias asiáticas de modo a se resguardarem de conflitos.
O relacionamento da Grã-Bretanha com a Alemanha também estava melhorando. Por meio de casamentos reais dos seus filhos e das suas filhas com monarcas da Europa, a Rainha Vitória da Grã-Bretanha se tornou avó de muitos membros da realeza no continente inteiro, mais notavelmente do Kaiser alemão Wilhelm II (Guilherme II), cuja coroação, em 1888, marcou um momento auspicioso para as relações britânico-alemãs, pois ele era o mais velho dos quarenta e dois netos da Rainha Vitória, através da sua filha mais velha, a princesa Vitória. Quando do seu nascimento, Wilhelm II era o terceiro na linha de sucessão ao trono prussiano e o sexto na linha de sucessão ao trono britânico. Quando a Rainha Vitória se encontrava no seu leito de morte em 1901, Wilhelm II, que a amava muito, viajou para estar ao lado dela. Dizem que a Rainha faleceu nos braços dele. O Kaiser carregou o caixão da Rainha no funeral dela.
Após a sua vitória na Guerra Franco-Prussiana, a Alemanha se concentrou em consolidar o seu império no continente europeu, e a Grã-Bretanha e a Alemanha se aproximaram do século XX com os seus interesses harmonizados e a ameaça de guerra diminuindo. A Alemanha poderia dominar o continente europeu, ao passo em que a Grã-Bretanha expandia o seu império em todos os outros lugares. Uma aliança entre as duas grandes potências foi até mesmo seriamente considerada, com a Alemanha por fim rejeitando esse enlace porque temia que os emaranhados imperiais da Grã-Bretanha pudessem arrastá-la para um conflito indesejado com a Rússia e a França, os rivais históricos da Grã-Bretanha; ou para o horror impensável: uma guerra com ambos.
De 1890 a 1902, três problemas potenciais surgiram nas relações britânico-alemãs. O Kaiser Wilhelm II removeu Bismarck como chanceler e ignorou o conselho dele de evitar perseguir a formação de um império estrangeiro, o que inevitavelmente provocou a desconfiança e o descontentamento dos britânicos, que tinham o maior império do mundo e não desejavam que a Alemanha competisse com eles por territórios. Wilhelm II também ficou obcecado em construir uma marinha para apoiar o seu império, provocando mais animosidade da Grã-Bretanha, que possuía a maior e mais poderosa marinha do mundo, a qual controlava a entrada do Mar do Norte, o portal naval de acesso da Alemanha ao mundo.
O falecimento da Rainha Vitória em 1901 e a ascensão do seu filho Edward VII (Eduardo VII) ao trono ampliaram o atrito nas relações britânico-alemãs. O Kaiser Wilhelm tinha uma rivalidade ciumenta com o seu tio Edward, que sempre olhou para ele de modo altivo e desdenhoso, considerando-o apenas um homem jovem e sobrinho seu, em vez de tratá-lo de maneira equivalente, como um monarca governante de uma superpotência. Conhecido como “o possuidor da língua menos inibida da Europa”,[1] Wilhelm sofrera danos cerebrais durante o nascimento, os quais o tornaram errático, impulsivo e emocional; e o comportamento dele criou uma tensão desnecessária entre a Alemanha e a Grã-Bretanha, tensão essa que ameaçou azedar a ordem internacional cada vez mais cordial e cooperativa. Numa entrevista infame ao periódico The Daily Telegraph em outubro de 1908, as tentativas do Kaiser Wilhelm de conquistar a opinião pública britânica saíram pela culatra, pois os seus rompantes causaram maior tensão não somente com a Grã-Bretanha, mas também com a França, a Rússia e o Japão. As ambições navais e imperiais de Wilhelm alarmaram os britânicos, e ele ficou cada vez mais preocupado com a hipótese de que a aproximação da Grã-Bretanha com a França e a Rússia visasse a cercar e sufocar a Alemanha.
Mas esses temores foram aliviados na segunda década do século XX. Após o falecimento do rei Edward VII, o Kaiser Wilhelm II compareceu ao funeral do tio em 20 de maio de 1910, o que auxiliou a consertar as relações do Kaiser com o povo e a realeza britânicos. Um soberano popular no auge do seu reinado, o seu cortejo fúnebre atraiu aproximadamente de três a cinco milhões de pessoas, com 35.000 soldados alinhando a rota do funeral. Da Europa inteira e do mundo todo, monarcas lotaram o palácio na maior reunião de soberanos régios até o momento. O espantoso espetáculo e o surpreendente senso de solidariedade e união cordiais sugeriam que as superpotências estivessem adentrando um período de paz e cooperação prolongadas. Barbara Tuchman imortalizou a ocasião numa famosa passagem do seu livro The Guns of August (“Os Canhões de Agosto”):
Tão deslumbrante era o espetáculo na manhã de maio de 1910, quando nove reis cavalgavam no funeral de Edward VII da Inglaterra, que a multidão, esperando em silêncio e assombro vestida de preto, não conseguia conter suspiros de admiração. Em escarlate e azul e verde e roxo, três a três os soberanos cavalgaram pelos portões do palácio, com capacetes emplumados, tranças douradas, faixas carmesim e feixes de joias brilhando ao sol. Depois deles, vieram cinco herdeiros aparentes, mais quarenta altezas imperiais ou reais, sete rainhas — quatro viúvas e três regentes — e uma dispersão de embaixadores especiais de países não coroados. Juntos, representavam setenta nações na maior congregação de realeza e posição já reunida num só lugar e, desse tipo, a última. O som abafado do Big Ben soou nove horas quando o cortejo deixou o palácio; mas no relógio da História era o pôr-do-sol, e o sol do velho mundo estava se pondo em um clarão de esplendor que nunca mais seria visto.[2]
O novo rei, George V (Jorge V), ascendeu ao trono em 1910 com o seu primo de primeiro grau governando a Alemanha e os seus primos de primeiro grau governando a Rússia como Imperador Nicolau II e Imperatriz Alexandra. Em 1913, a rivalidade naval entre a Grã-Bretanha e a Alemanha parecia ter esmorecido, pois a Alemanha concordou em manter a sua frota inferior à da Grã-Bretanha numa proporção de 10:16. As tensões acerca do Oriente Médio também receberam alívio em junho de 1914, quando a Grã-Bretanha e a Alemanha resolveram as suas diferenças sobre a Ferrovia de Bagdá.[3]
Tensões estavam sempre presentes no coração da Europa, onde a diversidade étnica e religiosa criava muitos pequenos conflitos que ameaçavam enredar potências maiores. Entretanto, não era fácil imaginar isso se transformando, tal qual uma bola de neve, em algo grande o suficiente para atrair a Grã-Bretanha. Afinal, a Grã-Bretanha não tinha interesses vitais no continente europeu; todos os interesses dela se encontravam no seu império ultramarino. “Somos peixes”, dissera famosamente Lord Salisbury para explicar a indiferença do seu governo às disputas territoriais intereuropeias e o grande interesse do governo britânico no império que a sua magnífica marinha tornou possível.
Em 1913, a filha do Kaiser Wilhelm, a princesa Victoria Louise, casou-se. A sua cerimônia de casamento também foi uma grande reunião de monarcas europeus, sugerindo dissipação adicional de tensões. Qualquer aparência de tensão anglo-germânica se insinuava ter desaparecido na fatídica semana final de junho de 1914. O Kaiser alemão se juntara às festividades da anual Regata Semanal de Kiel (Alemanha), na qual ele inaugurou as novas eclusas do Canal de Kiel. A regata daquele ano foi uma ocasião histórica, pois testemunhou o convite da Segunda Esquadra de Batalha da Marinha Real Britânica, esquadra que abrangia os quatro mais novos e mais poderosos encouraçados do mundo. Já que a Marinha Alemã havia crescido e se tornado a segunda maior marinha de guerra do mundo, o fato de a maior marinha ter sido convidada para essa ocasião sinalizava que as duas marinhas tinham encontrado uma maneira de coexistirem pacificamente e que a rivalidade naval entre as duas terminara. O Kaiser Wilhelm, a quem foi concedido, pela sua avó, o posto de almirante na Marinha Britânica, vestiu o seu uniforme do almirantado britânico para inspecionar os navios de guerra britânicos. A noite de sábado, 27 de junho, viu festas barulhentas enquanto marinheiros britânicos e alemães visitavam os barcos uns dos outros, bebiam juntos, participavam de lutas amistosas de boxe e festejavam adentrando a manhã do fatídico dia 28 de junho. Às 18h daquele dia, com os marinheiros ainda se recuperando da ressaca, chegariam as notícias do assassinato do arquiduque Franz Ferdinand (Francisco Ferdinando), herdeiro do trono do Império Austro-Húngaro.
Essas notícias tirariam a alegria dos eventos da semana e fariam com que o Kaiser Wilhelm encurtasse a sua visita. Ele deixou Kiel no dia seguinte. O Rei George, então, enviou uma mensagem entregue pelo comandante da esquadra britânica, a qual deixou Kiel em 30 de junho:
Amigos Hoje
Amigos no Futuro
Amigos para Sempre
Para qualquer pessoa envolvida, era quase completamente inconcebível que essas duas marinhas entrassem em guerra uma contra a outra em apenas cinco semanas; mas foi exatamente isso que aconteceu. Foi uma reviravolta surpreendente. Dentro do espaço de uma semana entre julho e agosto, a Europa passou do otimismo de que a Áustria e a Sérvia encontrassem uma solução diplomática para a disputa delas a uma guerra total com cinco grandes potências em conflito: Áustria-Hungria, Rússia, Alemanha, França e Grã-Bretanha; e com mais três potências a se juntarem ao confronto nos próximos meses: Japão, Império Otomano e Itália. Para você ter uma ideia de quão improvável isso se mostrava na época, observe que a crise sérvio-austríaca não tinha sido mencionada no parlamento britânico por quatro semanas após o ocorrido. Quase ninguém considerava que essa situação tivesse alguma importância para os britânicos. Em 24 de julho, o primeiro-ministro britânico Herbert Asquith escreveu para a sua amante Venetia: “Nós nos encontramos a uma distância mensurável ou imaginável de um verdadeiro Armaguedom. Felizmente, não parece haver motivos pelos quais devamos ser mais que espectadores.”[4] Em 27 de julho, um dia antes de a Áustria-Hungria declarar guerra à Sérvia, o Ministro das Finanças (cargo chamado, na Grã-Bretanha, de Chanceler of the Exchequer), David Lloyd George, disse que não existia nenhuma possibilidade de participar de qualquer guerra, e ele não conhecia nenhum ministro que fosse a favor disso.[5]
Em 4 de agosto, a Alemanha entrou na Bélgica; e, em 5 de agosto, a primeira batalha da Grande Guerra começou: a Batalha de Liège, que colocou o exército alemão contra o exército belga. Liège caiu em 16 de agosto, e o exército alemão prosseguiu a sua marcha pela Bélgica a caminho da França, onde uma das frentes de guerra mais brutais da História os aguardava contra os exércitos francês e britânico.
Em 12 de agosto de 1914, o exército austro-húngaro, sob o comando do general Oskar Potiorek, lançou a sua primeira ofensiva na Sérvia. Centenas de milhares de soldados foram mortos e feridos em ambos os lados enquanto a Sérvia conseguiu rechaçar o ataque austro-húngaro. Foi uma das maiores reviravoltas da história militar. Logo depois, em 17 de agosto, a Rússia invadiu a província prussiana-oriental da Galícia e sofreu grandes perdas em um contra-ataque alemão bem-sucedido. Na Batalha de Tannenberg, que ocorreu na semana seguinte, a Alemanha arrancou da Rússia uma derrota esmagadora, colocando a Rússia no pé errado desde o início da guerra. Em 23 de maio de 1915, a Itália declarou guerra à Áustria-Hungria e abriu uma nova frente de guerra.
Talvez não tenha havido melhor testemunho da insensatez dessa guerra que a trégua de Natal de 1914, quando soldados alemães e ingleses na Frente Ocidental decidiram parar de lutar durante as datas festivas de Natal (sem terem recebido ordens para fazê-lo) e cruzaram as linhas inimigas para socializarem e trocarem presentes. Os soldados inclusive jogaram uma partida de futebol juntos antes de voltarem para as suas trincheiras e retomarem o massacre sem sentido. O absurdo da guerra era palpável: soldados alemães, muitos dos quais tinham trabalhado na Inglaterra e gostaram do país e aprenderam a jogar futebol por lá, estavam na França para lutar contra o exército britânico do rei George V, primo do Kaiser Wilhelm. A Alemanha não tinha planos de se apoderar da Grã-Bretanha, e a Grã-Bretanha não tinha planos de se apoderar da Alemanha; então nenhum desses grupos de soldados sentia uma ameaça séria um do outro. Nenhum dos soldados conseguia sequer entender como as coisas se transformaram tão rapidamente numa guerra em larga escala; nem os diplomatas e intelectuais nos respectivos países conseguiam sequer explicar isso. A trégua de Natal expôs a verdade de que esses soldados nada tinham uns contra os outros, nada a ganhar lutando essa guerra, e não conseguiam enxergar motivos para lhe dar prosseguimento. Qualquer rivalidade existente entre essas nações poderia muito bem ser encenada pacificamente no campo de futebol ao custo do treinamento disciplinado em vez de ao custo do sangue de uma geração inteira.
Depois da guerra, praticamente ninguém conseguia explicar como as grandes potências tinham entrado em guerra umas contra as outras. Existia uma sensação de que isso foi um desastre no qual as grandes potências inadvertidamente entraram como que por sonambulismo. Após o assassinato do príncipe herdeiro austríaco em Sarajevo por nacionalistas sérvios, a Áustria parecia confiante demais na sua capacidade de colocar a Sérvia sob controle. Os russos pareciam extremamente arrogantes sobre esmagar os austríacos em defesa da Sérvia. Os alemães, por sua vez, pareciam tomados pela paranoia, com os demônios do Kaiser Wilhelm despertados de que os britânicos, os franceses e os russos estivessem tentando destruir a Alemanha. No lugar de trabalharem para evitar um confronto com as três potências, os alemães pareciam pensar que poderiam enfrentar a França, depois a Rússia, enquanto a Grã-Bretanha se mantinha reservada. Os franceses pareciam ter superestimado enormemente a sua capacidade de combater os alemães e de recuperar a Alsácia-Lorena; e os britânicos imaginaram que a sua entrada resolveria a guerra de forma decisiva e rápida.
Estavam todos imensuravelmente errados.
Há um arrazoado convincente a ser elaborado de que todas as partes merecem parcela da culpa pela sua reação exagerada e pela sua instigação. Para o historiador, é fácil simplesmente lançar culpa em todos os lugares e fazer sinalização de virtude sobre a paz ser boa e a guerra ser ruim. No entanto, também havia um contexto histórico muito real, muito concreto, no qual essa tragédia nasceu, um contexto que possui as suas raízes nos conflitos bélicos e nas alianças militares do século XIX e nas aspirações imperiais de monarcas que se tornaram insensíveis, indiferentes, ao verdadeiro custo das suas ambições em termos de homens e recursos financeiros.
À medida que a guerra se encaminhava para um impasse brutal e os beligerantes pareciam infernalmente determinados a prosseguirem com a guerra a todo custo, o financiamento se provou ser o fator decisivo na determinação do resultado da guerra. Todas as principais potências da época encontravam-se num padrão ouro clássico. Os seus bancos centrais mantinham grandes quantidades de reservas de ouro e emitiam notas de papel e crédito bancário aos seus cidadãos. Assim que a guerra se intensificava, a pressão sobre essas reservas aumentava no mundo inteiro porque os cidadãos preferiam confiar nas leis imutáveis da química representadas no ouro em vez de nas promessas dos governos de que fariam o que fosse necessário para garantir aquilo que aparentava ser vitórias sem importância.
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Notas
[1] Barbara W. Tuchman, “The Death of Jaurès”, capítulo 8 de The Proud Tower: A Portrait of the World before the War: 1890–1914, páginas 451–515 (Nova York: Random House, 1966), p. 1.
[2] Barbara W. Tuchman, “The Guns of August” (Nova York: Ballantine Books, 1990).
[3] R. J. W. Evans, Hartmut Pogge von Strandmann, eds., The Coming of the First World War (New York: Oxford University Press, 1990); Ruth Henig, The Origins of the First World War, 3ª edição (Londres e Nova York: Routledge, 2002 [1989]).
[4] Herbert Henry Asquith, em H. H. Asquith: Letters to Venetia Stanley, editado por Michael Brock e Eleanor Brock (Oxford: Oxford University Press, 1985), p. 123.
[5] Martin Gilbert, First World War (Londres: Harper Collins, 1995), p. 23.









Que beleza!