A Anatomia da Intervenção Estatal

1

[Extraído do livro Curso Básico de Escola Austríaca]

Agora que dispomos de um panorama geral da economia de mercado em seu funcionamento natural, livre de obstáculos, podemos investigar os efeitos de eventuais intervenções nesse sistema. Só é possível saber o que é uma intervenção e quais os seus respectivos efeitos se se souber de antemão o que é uma economia livre e como ela funciona, o que temos visto nas aulas anteriores.

Ensina Fábio Barbieri que o intervencionismo, também chamado de “capitalismo de Estado” e “terceira via”, não é considerado um sistema econômico relevante pelos economistas ortodoxos modernos.[1] Procedem, assim, diferentemente dos austríacos e dos economistas clássicos, que consideram o intervencionismo como sistema econômico e extraem dele análises de seu funcionamento. No entanto, dentro da Escola Austríaca mesmo, há o entendimento, defendido por Hoppe em Uma Teoria do Socialismo e do Capitalismo, de que só há dois sistemas econômicos possíveis: o capitalismo e o socialismo (este em seus diversos graus).[2] Não obstante essa discordância de nomes, as conclusões sobre os efeitos do intervencionismo continuam sendo as mesmas entre os austríacos.

 

***

 

Mises definiu intervenção como “uma norma restritiva, imposta por um órgão governamental, que força os donos dos meios de produção e empresários a empregarem estes meios de uma forma diferente da que empregariam”.[3] Essa definição, deve-se dizer, é por demais estrita e não engloba institutos como a tributação e o alistamento obrigatório. Cito-a aqui por se tratar do parecer de Mises e também para se ter um contraste entre ela e a definição que adotaremos.

Para bem se definir intervenção é preciso saber qual é o princípio fundamental sobre o qual a economia se baseia, de modo que intervir significaria justamente violar esse princípio. Evidentemente, como a economia se baseia em indivíduos escolhendo como certos recursos escassos serão usados, tem-se que o fio condutor desse sistema é a propriedade privada, que significa controle exclusivo de um recurso escasso por um único indivíduo ou grupo de indivíduos. Se o processo econômico e tudo que nele se dá pressupõem a propriedade privada de todos os meios, uma intervenção só poderia fazer sentido se fosse considerada uma violação da propriedade privada de alguém. É por isso que Rothbard, em Homem, Economia e Estado, oferece uma definição bem mais ampla que a de Mises para intervenção, definindo-a como “uma intrusão de força física agressiva na sociedade”, que significa “a substituição de ações voluntárias pela coerção”.[4]

Nota-se que, pela definição de Rothbard, qualquer violação de propriedade cometida por um homem ou um grupo de homens, seja um agente privado, seja um órgão governamental, equivale a uma intervenção na economia. Porém, como empiricamente se verifica que a maior parte das intervenções substanciais cometidas provém de Estados, Rothbard, juntamente com os outros economistas que decidem realizar esse estudo, focam apenas nas intervenções estatais.

E, interessantemente, Rothbard foi o primeiro a propor uma tipologia das intervenções, dizendo que todas elas podem se agrupar sob três espécies distintas.[5] O primeiro tipo que ele propõe é a chamada intervenção autística, em que o interventor restringe o uso da propriedade de um sujeito sem que haja uma troca envolvida, construindo assim uma relação unidirecional, que diz respeito à propriedade do indivíduo com ele mesmo. Exemplos desse tipo de intervenção são o homicídio, a censura e a proibição de práticas religiosas.[6] O segundo tipo é a intervenção binária, em que o interventor obriga o súdito a envolver-se em uma troca com ele, do que são exemplos a tributação e o alistamento obrigatório, e a partir do que se forma uma relação bidirecional.[7] Já o terceiro e último tipo é chamado de intervenção triangular, em que o interventor impõe ou proíbe uma relação entre dois sujeitos, como é o caso do controle de preços e da proibição de produtos.[8]

A primeira coisa que podemos deduzir a partir do que é uma intervenção é que ela necessariamente diminui a utilidade ex ante das vítimas e aumenta a dos interventores.[9] O termo ex ante é usado para significar aquilo que os agentes esperam obter a partir de uma situação; contrapõe-se ao termo ex post, que significa que a situação já foi posta e pode-se averiguar se as expectativas “ex ante” se confirmaram. Equivaleriam a “antes de o fato se concretizar” e “depois de o fato se concretizar”.

O raciocínio dá-se do seguinte modo. Como já sabemos, todos os indivíduos agem conforme sua escala ordinal de valores, direcionando-se para aquilo que consideram mais importante em cada momento dado. O interventor, por definição, sempre obrigará o sujeito a fazer aquilo que voluntariamente ele não faria. Se o sujeito, ao invés de atender àquilo que está em primeiro lugar em sua escala de valores, fizer qualquer outra coisa, sob o comando do agressor, então infere-se que ele espera perder em utilidade a partir da sua ação e que o agressor espera ganhar, do contrário não interviria.[10] Com isso se demonstra a priori que toda política intervencionista cria desutilidade social ex ante. Em outros termos, se é preciso obrigar alguém a fazer alguma coisa, é evidente que ele não o faria voluntariamente e que portanto espera sofrer um dano a partir disso.

Por outro lado, o resultado final pode por acaso se mostrar benéfico e ele ganhar assim em utilidade ex post. Esse não é, todavia, o caso no que concerne às intervenções estatais, que de acordo com as demonstrações de Mises e Rothbard sempre geram desutilidades também ex post. Mas, antes de entrarmos nas principais espécies de intervenção e seus efeitos, é preciso salientar uma diferença que existe entre o governo e o mercado quanto ao modo de lidar com as desutilidades ex post.

No mercado, quando se sofre uma desutilidade ex post, ela pode ser rapidamente verificada e corrigida.[11] Do ponto de vista dos consumidores, quando se compra um produto ou se contrata um serviço que não atende às expectativas, sabe-se exatamente onde se encontra o problema e pode-se desse modo trocar de marca ou de prestador. Não há necessidade de se conhecer uma longa cadeia causal para se identificar o problema e a sua solução. Se eu não gostei de uma marca de sorvetes, compro de outra; se determinado atendimento não me agradou, não retorno ao estabelecimento. O problema e a solução são imediatamente evidentes. Do ponto de vista dos empreendedores, quando se incorre em investimentos equivocados, sofrem-se prejuízos monetários e fazem-se a partir daí as devidas correções (sendo as falências também processos corretivos do mercado). O sistema de lucros e prejuízos é o guia último das ações empresariais no mercado e o único critério de sucesso e fracasso. Assim, tanto os consumidores quanto os empreendedores possuem critérios diretos e imediatos para averiguar o sucesso de suas escolhas. O mesmo não se verifica quando se trata de intervenções estatais.

Consideremos, no caso das intervenções estatais, os dois pontos de vista análogos aos do consumidor e empresário: o do cidadão e do político. Da parte do cidadão, fica-lhe impossível saber se uma intervenção governamental logrou sucesso ou fracassou se ele não tiver os conhecimentos praxeológicos necessários para julgar. Não se trata de algo que ele possa verificar direta e imediatamente. Há infinitos fatores envolvidos, e apenas com o devido estudo ele saberá dizer se as intervenções do governo obtiveram os resultados pretendidos. Da parte do político, por sua vez, assumindo-se pelo bem do argumento a hipótese longínqua de estar ele agindo em prol do maior bem para a sua comunidade, ele sofrerá o mesmo problema do cidadão comum e ficará, de um lado, sem saber que medidas adotar e, de outro, se suas medidas obtiveram sucesso ou fracassaram, caso ignore a ciência econômica, como costuma acontecer. Sem uma teoria a priori que defina bem os mecanismos atuantes na economia, qualquer coisa poderá ser alegada como causa de determinado efeito. Em consequência disso, o que acaba por decidir o voto da maioria é a capacidade dos candidatos de se promoverem e encantarem o público, e não a utilidade ex post de suas intervenções.[12]

Resumindo, enquanto no mercado há sempre utilidade ex ante e mecanismos fáceis para se corrigir as desutilidades ex post, no modelo intervencionista há sempre desutilidade ex ante e grande dificuldade em se identificar e corrigir desutilidades ex post.

 

_______________________________

Notas

[1] Fabio Barbieri, A Economia do Intervencionismo, p. 101.

[2] Hoppe, Uma Teoria do Socialismo e do Capitalismo, p. 16.

[3] Mises, Uma crítica ao intervencionismo, p. 21.

[4] Rothbard, Homem, Economia e Estado, p. 820.

[5] Idem, p. 821.

[6] Idem, p. 821.

[7] Idem, p. 822.

[8] Idem, p. 822.

[9] Idem, p. 823.

[10] Idem, p. 823.

[11] Idem, p. 828.

[12] Idem, pp. 830-832.

 

1 COMENTÁRIO

  1. Na verdade, há impossibilidade de averiguar desutilidade ex post através do intervencionismo.
    É racionalmente impossível calcular a utilidade perdida em decorrência de uma intervenção estatal.

DEIXE UMA RESPOSTA

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui