Que a vida social dos homens se assemelhe ao processo biológico é uma observação que vem de antiga data. A comparação com o organismo biológico deveria ter ensinado à sociologia uma coisa: assim como um organismo só pode ser concebido como sendo um sistema de órgãos, um arranjo social só pode ser concebido como sendo um sistema composto por indivíduos. E isto significa apenas que a essência de um organismo é a divisão do trabalho. Somente a divisão do trabalho faz com que as partes se tornem membros; é nesta colaboração entre os membros que reconhecemos a unidade do sistema, o organismo. Isto vale tanto para a vida das plantas e dos animais quanto para a sociedade. No que tange ao princípio da divisão do trabalho, o corpo social pode ser comparado ao biológico. A divisão do trabalho é atertium comparationis (base para comparação) desta analogia.
A divisão do trabalho é um princípio fundamental para todas as formas de vida. A primeira vez que ela foi detectada na esfera da vida social foi quando economistas políticos enfatizaram o significado da divisão do trabalho para a economia social. Subsequentemente, a biologia adotou este conceito, inicialmente sob a exortação de Milne Edwards em 1827. O fato de que podemos considerar a divisão do trabalho como sendo uma lei geral não significa, entretanto, não devemos reconhecer as diferenças fundamentais entre, de um lado, a divisão do trabalho nos organismos animais e vegetais, e, de outro, a divisão do trabalho na vida social dos seres humanos.
Independentemente de como imaginemos ser a origem, a evolução e o significado da divisão fisiológica do trabalho, o fato é que ela claramente não joga nenhuma luz sobre a natureza da divisão sociológica do trabalho. O processo que diferencia e integra células homogêneas é completamente diferente daquele que leva ao crescimento da sociedade humana formada por indivíduos autossuficientes. Neste último processo, a razão e a vontade desempenham suas funções na aglutinação, por meio da qual unidades até então independentes formam uma unidade maior e se tornam partes de um todo, ao passo que a intervenção de tais forças naquele primeiro processo é inconcebível.
Mesmo quando criaturas como formigas e abelhas se agrupam em “comunidades animais”, todos os movimentos e mudanças ocorrem instintivamente e inconscientemente. O instinto pode perfeitamente ter operado também nos primórdios da formação social. O homem já é membro de um corpo social quando ele surge como uma criatura racional e munida de vontades e desejos, pois é inconcebível para o homem racional ser um indivíduo solitário. “É somente entre os homens que o homem se torna um homem” (Fichte). O desenvolvimento da razão humana e o desenvolvimento da sociedade humana são exatamente o mesmo processo. Todo o crescimento subsequente das relações sociais será totalmente uma questão de desejo. A sociedade é o produto da razão e da vontade. Ela não existe fora da razão e da vontade. Sua existência está dentro do homem, e não no mundo externo. Ele é projetada de dentro para fora.
Sociedade é cooperação; é comunidade em ação.
Dizer que a Sociedade é um organismo significa dizer que a sociedade é formada pela divisão do trabalho. Para fazer justiça a esta ideia, devemos levar em conta todos os objetivos que os homens se impõem e os meios pelos quais tais objetivos devem ser alcançados. A divisão do trabalho inclui todas as interrelações entre homens racionais munidos de vontade. O homem moderno é um ser social. Não apenas um ser cujas necessidades materiais não poderiam ser supridas caso vivesse em completo isolamento, mas também um ser que alcançou um desenvolvimento de suas faculdades racionais e perceptivas que teria sido impossível fora do contexto da sociedade. O homem é inconcebível como um ser isolado, pois a humanidade existe somente como fenômeno social, e a humanidade transcendeu o estágio da animalidade somente quando a cooperação expandiu as relações sociais entre os indivíduos. A evolução do animal humano para o ser humano foi possibilitada e alcançada única e exclusivamente por meio da cooperação social. E aí jaz a interpretação da máxima de Aristóteles, que diz que o homem é o ser vivo político.
A divisão do trabalho como o princípio do desenvolvimento social
Ainda estamos longe de entender o supremo e mais profundo segredo da vida, o princípio da origem dos organismos. Quem sabe se um dia iremos realmente descobrir? Tudo o que sabemos hoje é que, quando os organismos são formados, algo que até então não existia passa a existir em decorrência da ação de indivíduos. Organismos vegetais e animais são mais do que um conglomerado de células únicas, e a sociedade é mais do que a soma dos indivíduos que a compõem. Ainda não entendemos por completo toda a significância deste fato. Nossos pensamentos ainda estão limitados pela teoria mecânica da conservação da energia e da matéria, a qual não é capaz de nos dizer como um pode virar dois. Aqui, novamente, se quisermos ampliar nosso conhecimento acerca da natureza da vida, compreender como funciona a organização social terá de preceder o entendimento da organização biológica.
Historicamente, a divisão do trabalho se originou em dois fatores da natureza: a desigualdade das capacidades e habilidades humanas, e a variedade das condições externas da vida humana na terra. Estes dois fatos são, na realidade, um só: a diversidade da natureza, a qual não se repete mas cria o universo em variedade infinita e inexaurível. O critério especial de nossa investigação, no entanto, a qual é dirigida para o conhecimento sociológico, nos permite tratar estes dois aspectos separadamente.
É óbvio que, tão logo a ação humana se tornou consciente e lógica, ela certamente foi influenciada por estes dois fatores. Eles, com efeito, se combinaram quase que como para forçar a divisão do trabalho sobre a espécie humana. Jovens e velhos, homens e mulheres, crianças e adultos, todos cooperam entre si ao fazerem os melhores usos possíveis de suas várias habilidades. Aqui está também o germe da divisão geográfica do trabalho: o homem vai à caça e a mulher vai à fonte para buscar água. Fossem as habilidades e a força de todos os indivíduos, bem como as condições externas de produção, idênticas em todos os lugares, a ideia da divisão do trabalho jamais poderia ter surgido. Sob essas condições, o homem, por si só, jamais teria tido a ideia de fazer com que sua luta diária pela sobrevivência fosse facilitada pela cooperação gerada pela divisão do trabalho. Nenhuma vida social poderia ter surgido entre homens de iguais capacidades e habilidades em um mundo que fosse geograficamente uniforme.
Talvez os homens iriam se agrupar para assim conseguir lidar com aquelas tarefas que estivessem além de suas forças individuais; porém, tal tipo de aliança não forma uma sociedade. As relações que ela cria são transientes, e duram somente enquanto durar a ocasião criada por ela. Sua única importância na origem da vida social é que ela cria uma reaproximação, uma reconciliação, entre homens, o que traz consigo o reconhecimento mútuo da diferença que existe entre as capacidades naturais de cada indivíduo, propiciando assim o surgimento da divisão do trabalho.
Uma vez que o trabalho foi dividido, a própria divisão exerce uma influência diferenciadora. O fato de o trabalho ser dividido possibilita um maior aperfeiçoamento do talento individual, o que por si só já faz com que a cooperação seja ainda mais produtiva. Por meio da cooperação, os homens são capazes de alcançar aquilo que estaria além de suas capacidades enquanto indivíduos, e até mesmo o trabalho que um indivíduo é capaz de realizar sozinho se torna mais produtivo. Porém, tudo isto só pode ser entendido em toda a sua complexidade quando as condições que governam o aumento da produtividade sob a cooperação são especificadas com precisão analítica.
A teoria da divisão internacional do trabalho é uma das mais importantes contribuições da Economia Política Clássica. Ela mostra que, enquanto os movimentos de capital e mão-de-obra entre países forem proibidos (por qualquer motivo), serão os custos de produção comparativos, e não absolutos, que governarão a divisão geográfica do trabalho.[1] Quando o mesmo princípio é aplicado à divisão pessoal do trabalho, percebe-se que o indivíduo se beneficia ao cooperar não somente com pessoas superiores a ele em determinadas capacidades, mas também com aquelas que são inferiores a ele em absolutamente todos os aspectos relevantes.
Se, em decorrência de sua superioridade em relação a B, A precisa de três horas de trabalho para produzir uma unidade de mercadoria p, e B precisa de 5 horas, e para a produção da mercadoria q A gasta duas horas e B, quatro, então A irá se beneficiar caso concentre todo o seu trabalho na produção de q e deixe a produção de p por conta de B. Se cada um dedicar sessenta horas à produção tanto de p quanto de q, o resultado do trabalho de A será 20p + 30q, e o de B será 12p + 15q. Em conjunto, a produção de ambos será de 32p + 45q.
Se, no entanto, A se concentrar exclusivamente na produção de q, ele irá produzir sessenta unidades em 120 horas, ao passo que B, caso se concentre exclusivamente na produção de p, irá produzir neste mesmo período vinte e quatro unidades. O resultado desta divisão do trabalho, portanto, será 24p + 60q, o que significa que — dado que p tem para A um valor de substituição de 3 : 2q e para B um de 5 : 4q — a produção foi maior do que para 32p + 45q.
Portanto, torna-se óbvio que toda e qualquer expansão da divisão pessoal do trabalho gera vantagens para todos aqueles que participam dela. Aquele que colabora com os indivíduos menos talentosos, menos capazes e menos laboriosos obtém a mesma vantagem do que o homem que se associa àqueles mais talentosos, mais capazes e mais laboriosos. A vantagem trazida pela divisão do trabalho é mútua; ela não é limitada ao caso em que se faz um trabalho que um indivíduo sozinho jamais seria capaz de realizar.
A maior produtividade gerada pela divisão do trabalho é uma influência unificadora. Ela leva os homens a considerar seus semelhantes como colegas em sua batalha conjunta para a melhoria de seu bem-estar. Ele não os vê como concorrentes em um conflito pela própria sobrevivência. Ela faz com que inimigos se tornem amigos, transforma guerra em paz e possibilita que indivíduos vivam pacificamente em sociedade.
Este artigo foi extraído do capítulo 18 do livro Socialism — an economic and sociological analysis
[1] Ricardo, Principles of Political Economy and Taxation, pp. 76 ff.; Mill, Principles of Political Economy, pp. 348 if.; Bastable, The Theory of International Trade, 3rd ed. (London, 1900), pp. 16 ff.