10. Da Impossibilidade do Socialismo
Antes da formulação do argumento da impossibilidade, a crítica econômica ao socialismo era centrada no problema dos incentivos: removida a busca pelo lucro, as pessoas não se dedicariam às suas tarefas com o mesmo entusiasmo. Mesmo hoje os economistas, influenciados pela Economia da Informação, acreditam que o ponto crucial do socialismo se refere ao desenho de mecanismos de incentivos adequados que induzam as pessoas a se esforçar de maneira desejada. Mas o objeção ao socialismo colocada pela tese sobre a impossibilidade do cálculo econômico que abordaremos agora é mais fundamental. Admita então, para desenvolvermos o argumento, que tenhamos uma sociedade habitada exclusivamente por entusiasmados stakhanovistas[1] e na qual não possa surgir um único indivíduo “egoísta”. Mesmo assim, afirma o argumento, o socialismo não seria viável, pois os trabalhadores não teriam nenhuma indicação a respeito de como seus esforços deveriam ser empregados. Em outros termos, as decisões produtivas seriam tomadas às cegas, isto é, sem consideração sobre a importância dos usos alternativos dos recursos. Vejamos o argumento mais de perto.
Quando Marx escreveu, a teoria econômica dominante se preocupava com o estudo das causas da riqueza das nações e a distribuição da mesma entre as classes sociais. Nessa tradição, os economistas se interessavam pela capacidade produtiva de um país como um todo, desconsiderando em larga medida o problema de determinar o que deveria ser produzido. Com a revolução marginalista na teoria econômica, em 1871, esta última questão passou para o primeiro plano, na medida em que o problema econômico fundamental passou a considerar não apenas um meio – a atividade produtiva – mas também a relação deste com os fins – a importância que os indivíduos atribuem àquilo que é produzido. Na presença da escassez de meios, a diferença entre riqueza e pobreza na verdade consiste na escolha adequada sobre os usos alternativos dos meios, ou seja, sobre que fins serão atendidos e quais serão deixados de lado, ou ainda sobre o que (e também quanto, quando e onde) deve ser produzido.
Com isso a atividade produtiva passa a ser problematizada: ao passo que para os economistas clássicos as decisões produtivas são apenas um dado técnico, que diz respeito a engenheiros, para os economistas modernos passa a ter um aspecto econômico: qualquer decisão produtiva deve comparar o valor do bem produzido com o valor daquilo que se deixou de produzir com os mesmos recursos, ou seja, deve-se comparar o valor com o custo de oportunidade dos recursos.
Essa comparação é feita em qualquer sociedade, seja qual for o seu grau de desenvolvimento. Em sociedades tribais, cuja economia é simples o bastante para que os usos alternativos dos recursos sejam razoavelmente percebidos por todos, as decisões produtivas são tomadas centralmente, não importa se por um chefe ou conselho tribal, não importa se ajudados por rituais mágicos ou tradição. Em sociedades mais ricas, cujo grau de especialização das tarefas é maior, não é possível que uma única mente ou grupo conceba conscientemente os usos alternativos dos recursos. O grau de complexidade dessas economias é apenas possível então devido ao cálculo econômico – a comparação de valores e custos de oportunidades com o auxílio de valores monetários derivados de um sistema de preços.
A tese de que toda sociedade se depara com o problema alocativo é conhecida como tese da similitude formal entre os diferentes sistemas econômicos[2]. Essa tese implica que também no socialismo o problema se coloca: se o objetivo é superar o nível de riqueza das economias de mercado e não retornar a uma economia primitiva de subsistência, também no socialismo deve-se decidir quanto do esforço deve ser voltado para a produção de bens de consumo e quanto para a produção de bens de capital para aumentar a produtividade futura, o que implica que tal sociedade deve levar em conta as preferências temporais (a noção dos juros) da população, de um comitê ou de um ditador. Também ali o emprego de um recurso em uma indústria implica diminuição da produção nas outras indústrias que usem esse recurso, o que significa que a categoria “custo” também permanece no socialismo.
Se a tese da similitude formal for entendida, não tem sentido a crença historicista nutrida por Marx e outros de que as categorias como preços, valor, custos, lucros ou juros só teriam sentido naquilo que denominam “capitalismo”. Embora não seja necessário o pagamento de um valor monetário denominado juros, por exemplo, a teoria econômica do socialismo deve dizer como as decisões intertemporais de produção devem ser tomadas, o que implica considerar a preferência temporal e expectativas de produtividade de diferentes projetos por parte de seja lá qual for o agente que aloca recursos nessa sociedade, seja por uso de planejamento central ou não.
A tese da similitude formal nos leva diretamente ao argumento da impossibilidade do cálculo econômico no socialismo, formulado em 1920 pelo economista austríaco Ludwig von Mises[3]. Este autor nota ironicamente que os autores socialistas estão condenados a traçar para sempre planos de como chegar ao socialismo sem dizer uma única palavra sobre o socialismo em si. De fato, se procurarmos na vasta literatura marxista, dificilmente encontramos alguma observação sobre o assunto além de umas poucas observações de Engels que negam a complexidade do problema relativo à decisão sobre o que deve ser produzido. Lênin, por sua vez, em seu livro sobre a economia da transição para o socialismo[4], acredita que as decisões produtivas são de fato apenas técnicas: basta convencer os engenheiros e a trabalhar para o proletariado. As questões gerenciais se resumem a manter livros de controle.
Para Mises, por outro lado, a abolição da propriedade privada levaria não a substituição do “caos da produção capitalista” por um sistema racional, como quer Marx, mas, pelo contrário, levaria ao abandono da racionalidade nas decisões econômicas. Sem propriedade privada, não teríamos mercados desenvolvidos. Sem mercados, não existiriam preços de mercado. Sem estes, não é possível comprar a importância daquilo produzido com o seu custo de oportunidade, ou seja, não é possível realizar cálculo econômico. Sem este, as decisões alocativas seriam arbitrárias, o que resulta em desperdício de recursos e em última análise colapso do complexo sistema produtivo atual, cuja produtividade torna possível sustentar a população presente.
O nível de riqueza obtido em uma economia de mercado é obtido através da crescente produtividade. Essa produtividade é obtida por meio de cada vez mais especialização dos fatores produtivos. Essa crescente especialização gera uma complexidade cada vez maior do sistema: a produção de um bem qualquer envolve a cooperação de incontáveis componentes, de crescente número de bens de capital e de inúmeras firmas cujas atividades devem ser coordenadas entre si. Mises percebeu que esse aumento de complexidade é tal que seus detalhes não podem ser percebidos por uma única mente (ou grupo de mentes) de forma consciente. Se as decisões produtivas tivessem que ser conscientes, “não alienadas”, haveria um limite à expansão da complexidade do sistema econômico. O uso do sistema de preços em uma economia livre, para o autor, permite que ocorra uma espécie de “divisão intelectual do trabalho”: cada firma decide o que produzir levando em conta a lucratividade do empreendimento, conhecendo apenas os fatores que afetam o seu mercado específico, sem saber cada detalhe dos incontáveis fatores que afetam os usos alternativos dos recursos nos outros mercados. Isso permite que a complexidade do sistema seja expandida, contornando assim a limitação do conhecimento dos agentes[5].
Se o socialismo é de fato impossível, o que dizer sobre a União Soviética e outros experimentos do gênero? Os defensores do socialismo, geralmente depois do fracasso desses experimentos, tendem a renegar o status socialista desses países, apelando para termos como “capitalismo de estado” e coisas do gênero. Se levarmos em conta a tese de Mises, de fato devemos concordar com a tese de que não eram socialistas, mas sim regimes mercantilistas ou economias altamente intervencionistas. A abolição do sistema de preço e dos mercados no início do experimento russo, com efeito teria, segundo a nossa tese, resultado no colapso do sistema econômico e a perda de poder dos bolchevistas. A NEP, ao reintroduzir o sistema de preços, embora de forma bastante imperfeita, permitiu, com o auxílio dos preços internacionais, que o cálculo econômico fosse realizado. De fato, um economista russo, Boris Brutzkus, observando a realidade de seu país, formulou no mesmo ano que Mises o argumento do cálculo econômico[6]. Para ele, a crise econômica no início do regime não pode ser atribuída à guerra e a ausência de comércio exterior, como reza a interpretação hoje dominante, mas sim à impossibilidade do cálculo econômico. Os pesqueiros de Astrakan, ilustra o autor (pág. 47), perdem milhões de libras de peixes porque não conseguem obter redes, já que os trabalhadores de Nizhni-Novgorod, que as fabricam, não têm acesso às matérias-primas.
Os planos quinquenais, por sua vez, não refletiam o planejamento central de fato e portanto não respondem ao argumento. Tais planos consistiam em metas quantitativas, altamente agregadas, baseadas em produção passada mais acréscimo pretendido. Não levavam em conta, por exemplo, os custos de oportunidade dos recursos, o que gera problemas como aquele descrito acima por Brutzkus. Como nota Michael Polanyi[7], seria algo como, baseado na observação de jogos de xadrez passados, alguém dissesse que o plano de jogo consistiria em mover os bispos 30 vezes na diagonal, em média três casas, mover os peões 40 vezes para frente e assim por diante, sem referência às complexidades relativas às posições relativas no tabuleiro.
Reconhecida importância da complexidade do sistema produtivo e da dificuldade em levar em conta todos os elementos necessários para uma decisão alocativa econômica, a tese de Mises, Weber e Brutzkus lança o desafio: como resolver o problema do cálculo no socialismo? Os autores marxistas, como vimos, não reconhecem o problema e se refugiam na dialética para fugir do mesmo. As propostas concretas de socialismo, que deixam sem resposta o problema do cálculo, sempre foram desprezadas como socialismo utópico. Autores neoclássicos, por seu turno, propuseram modelos, conhecidos como “socialismo de mercado”, que buscavam estabelecer no mundo real o modelo teórico de competição perfeita, em um ambiente no qual firmas estatais tomam decisões levando em conta preços artificiais, gerados seja por um sistema de equações, por um mecanismo centralizado de fixação de preços por tentativas e erros ou preços fixos por monopólios setoriais. Nesses modelos, encontramos até mesmo a existência de bolsas de valores no socialismo. Essas propostas, embora largamente irrelevantes para a solução do nosso problema em si e em geral rejeitadas politicamente pelos defensores do socialismo, são importantes para o desenvolvimento da teoria econômica e serão analisadas no próximo capítulo.
Embora não exista resposta adequada ao desafio de Mises, o argumento do autor mudou para sempre os termos do debate em torno do socialismo: não mais é satisfatória a defesa do mesmo apenas na condenação do “capitalismo”: algo precisa ser dito sobre o que fazer depois assumir o poder. A falta de propostas viáveis, como é bem sabido, sempre assombrou os políticos de esquerda quando ganham eleições em economias “capitalistas”
[1] Stakhanovistas eram trabalhadores que ultrapassavam as quotas de produção impostas como metas na União Soviética.
[2] Essa tese será examinada no capítulo intitulado “Intervencionismo e Historicismo”.
[3] Ver Mises, L (1935) [1920]. A mesma tese foi formulada de forma independente por Weber (1997) e Brutzkus (1935).
[4] Lenin (1920).
[5] Esse tema será elaborado por seu aluno F.A. Hayek, no debate gerado pelo argumento de Mises. Ver Hayek (1935).
[6] Trotsky, levado pela conveniência política do momento, considerou mais adequado deportar do que fuzilar um grupo de economistas russos, Brutzkus entre eles. Isso permitiu que seu livro fosse publicado em inglês em 1935.
[7] Polanyi (2003).