A Economia do Intervencionismo

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19. Chutando a Escada para a Liberdade

Presenciamos neste momento mais uma vez um curioso fenômeno, típico da dinâmica dos sistemas econômicos intervencionistas: quanto maior o fracasso das políticas intervencionistas, maior a demanda por novas intervenções e mais a culpa desse fracasso é transferida para imaginários mercados livres. Da mesma forma que a recessão iniciada em 2008 foi atribuída aos mercados financeiros supostamente desregulados e a agentes irracionais e não à prévia expansão do crédito orquestrada pelos bancos centrais, a persistência dos problemas econômicos europeus durante a mesma crise foi atribuída a uma imaginária austeridade fiscal e não aos problemas causados pelo fracasso dos “estímulos” anteriores utilizados para lidar com as consequências do financiamento do estado de bem-estar.A atribuição aos mercados dos problemas originados pela sua antítese – fenômeno que poderíamos batizar de Efeito Krugman – é algo bem documentado e estudado pela teoria austríaca sobre a dinâmica do intervencionismo. No presente capítulo, vemos como esse fenômeno ideológico é apenas um dos entraves à adoção de reformas liberalizantes necessárias nas fases de crise do ciclo intervencionista. Especificamente, exporemos a seguinte tese: o processo de expansão do estado implica em custos crescentes do abandono das políticas associadas a essa expansão. Em outros termos, o avanço do estatismo estabelece um seguro contra sua reversão, tal como um parasita que não pode ser removido, pois suas estruturas estão por demais entranhadas no corpo do hospedeiro.

A manifestação mais evidente disso é naturalmente a resistência à mudança empreendida por grupos organizados, formados pelos detentores de privilégios concedidos ao longo da expansão do estado. Para Buchanan[1], essa resistência faz parte do catastrófico legado keynesiano dos déficits públicos crônicos. Para Buchanan, os gastos públicos não poderiam ser tratados como instrumento de política de curto prazo porque a burocracia tem dinâmica de funcionamento próprio: uma vez girado para a direita o botão do “ajuste fino” dos gastos, consolidam-se privilégios e o botão não mais girará no outro sentido.

Formam-se assim grupos de pessoas que se beneficiam da expansão do estado: os lobistas e os funcionários do estado. Estes defenderão com vigor seus privilégios, obtidos legalmente. Quando os efeitos daninhos da atividade de rent-seeking se manifestam de forma mais significativa, quais seriam as perspectivas para uma reforma liberal, diante da resistência daqueles que lucram com o estatismo, em especial diante da confusão entre normas abstratas e legislação de privilégios? O conceito de estado de direito, de fato, só é lembrado pelos beneficiários do sistema quando seus privilégios legais são ameaçados. Diante desse cenário, o liberal recua horrorizado diante da constatação da quase impossibilidade de reformas sem adoção de violência, de modo que lhe resta se refugiar na atividade intelectual de denúncia do sistema.

Na arena ideológica, por sua vez, nos deparamos com o problema da atribuição das responsabilidades, mencionado no início do capítulo. Aqui, não temos apenas as versões opostas dos fatos, formuladas pelos críticos do estado e dos mercados. Opera nesse assunto uma assimetria fundamental, derivada da distribuição temporal das consequências da ação estatal. Como nos mostrou Bastiat, os benefícios dessa ação tendem a se concentrar no curto prazo e são concretos, pois os beneficiários podem ser identificados objetivamente. Os custos, por sua vez, são posteriores e difusos, na medida em que são arcados por todos, de forma que não é simples perceber que custo foi resultado de qual medida passada. Ilustrando o ponto, uma proposta de subsidiar a indústria de bondes salva o emprego de um motorneiro com “RG” conhecido, ao passo que a transferência de recursos dos demais setores por impostos, inflação ou dívidas impedirá a criação do emprego de um motorista na indústria de ônibus, cujo RG não pode ser determinado, pois a vaga não foi de fato criada. Adicionalmente, a diminuição de produtividade resultante dessa má alocação de recursos será atribuída ao “capitalismo”.

Quando os problemas do intervencionismo se manifestam na esfera macroeconômica, se torna ainda mais difícil a atribuição de responsabilidades. Na discussão das recessões, o emprego do Efeito Krugman é facilitado pela dissociação entre prazos realizada por Keynes: não se consideram os custos de uma medida de curto prazo nos prazos seguintes, o que dá credibilidade à velha mágica: o fracasso dos estímulos fiscais e monetários gera sua própria demanda – uma espécie de “lei de Say” do estatismo que fecha as portas para reformas. Quanto mais se cura uma bolha estourada pela inflação da próxima, maior o endividamento e o acúmulo de problemas, tornando cada vez mais ameaçador e temível e, portanto, cada vez mais evitado a todo custo o dia do ajuste de contas.

Existe ainda outro problema relativo à eventual reversão de política, problema esse que conspira contra a difusão de uma explicação liberal alternativa para os fatos: a natureza positivista do discurso econômico moderno, que leva a sério apenas argumentos calcados em estatísticas. Ocorre que, na esfera macroeconômica, nos deparamos com a opacidade inerente às contas públicas, visto que esses números são gerados e publicados pelo estado, o maior interessado em esconder seus problemas de endividamento. De fato, nem mesmo os maiores especialistas em finanças públicas conseguem nos fornecer um mapa acurado sobre as formas pelas quais a atividade estatal é financiada. Qualquer suspeita de déficit escondido em estatísticas de superávit é desencorajada por inexpugnáveis cipoais contábeis. Na esfera microeconômica, por sua vez, a análise de falhas de governo se restringe sempre a “evidências anedóticas”, que raramente obtém status científico, já que os corruptos não passam nota fiscal ou escolhem “rent-seeker” como ocupação em seus formulários de imposto de renda ou censo.

O intervencionismo, além de criar clientes privilegiados, que defenderão entusiasticamente a ideologia estatista, bloqueia de várias maneiras o surgimento de soluções de mercado que lhe fariam concorrência. Em primeiro lugar, devido à natureza subjetiva dos custos, conforme a atuação estatal se expande, menor será a percepção da existência de alternativas, como argumentaremos no próximo capítulo. De fato, as pessoas não conseguem conceber um mundo com instituições diferentes daquelas prevalecentes nos locais e períodos nos quais vivem. Para a maioria das pessoas, seria inconcebível um mundo sem bancos centrais, serviço postal público ou concorrência em diversos outros setores hoje monopolizados pelo estado, por mais que a história, e de vez em quanto mesmo a geografia, contrarie essas crenças.

Esse fenômeno pode ser visto como um exemplo do processo mais geral do bloqueio do processo de descoberta empresarial causada pelo intervencionismo. Para os defensores da teoria microeconômica tradicional, para os quais os custos de produção independem da estrutura de mercado, escapa a apreciação a respeito da capacidade do mercado de funcionar como um processo de descoberta, que poderia viabilizar a concorrência em vários casos vistos como monopólios naturais, por exemplo. Embora continuem repetindo que a ação privada não seria viável nesses casos, temem extinguir a proibição à entrada nesses setores, em um reconhecimento tácito da fraqueza de seu argumento.

Além de enfraquecer a imaginação de alternativas, o aprofundamento do estatismo mina a confiança dos indivíduos a respeito de sua capacidade de agir por si próprios. A magnitude desse efeito pode ser examinada pelo contraste entre um moderno beneficiário das políticas assistencialistas, eternamente grato aos políticos pelas migalhas obtidas, inconsciente do que poderia fazer sob instituições livres.

Essa progressiva dependência do estado consiste em outro exemplo de retroalimentação positiva no processo de expansão do estado. Como percebeu Hayek, quanto maior a parcela de pessoas que trocam sua liberdade por segurança, na forma de salários estáveis no setor público, maior será a instabilidade daqueles cuja renda ainda depende de trocas voluntárias, o que aumenta ainda mais a demanda por segurança. Mais uma vez, nos deparamos com a perversidade da lei de Say do estatismo: a intervenção gera sua própria demanda.

Finalmente, devemos examinar ainda outro aspecto associado às formas como a expansão do estado dificulta sua reforma: o estatismo desorganiza os mercados e, como a reestruturação destes demanda tempo, o não desaparecimento instantâneo dos problemas abre espaço para o Efeito Krugman. Vamos ilustrar esse ponto com um exemplo histórico: a tentativa de liberalização dos mercados de grãos executada por Turgot na França no século XVIII[2].

Antes de Turgot assumir o cargo de ministro das finanças, o mercado de grãos na França era fortemente regulado interna e externamente. Esse intervencionismo, naturalmente, resultou na escassez de alimentos, como ilustrava o alto preço do pão. O estado, além de proibir exportações de grãos, proibia qualquer um de participar do mercado interno de grãos sem licença prévia. Em geral, existiam companhias com o monopólio regional desse comércio. Os produtores rurais, além de impedidos de operar nesses mercados como concorrentes, não podiam negociar entre si, negociar fora da época da colheita, sendo obrigados a vender apenas nas semanas nas quais o preço era o menor possível. Além disso, não podiam vender fora do mercado oficial ou em outras províncias ou mesmo estocar o produto. As empresas que obtinham o privilégio monopolístico de comercialização lucravam consideravelmente, pois além de explorar os produtores rurais, cobravam caro pelo produto. Naturalmente, existia escassez de grãos e preços altos dos alimentos.

Essa crise gerada pelo intervencionismo levou o rei Luiz XVI a nomear Turgot para efetuar uma reforma liberal. Em 1774 Turgot permite que os produtores negociem livremente seus preços. No ano seguinte, porém, o preço do trigo subiu 50%, o que levou a uma série de revoltas populares. Entrou então em ação o Efeito Krugman, na forma de demandas pelo controle do preço do pão – a própria causa inicial dos problemas!

Inicialmente o rei apoiou seu ministro, que em 1776 promoveu a aprovação de seis éditos que aprofundavam as reformas: o trabalho forçado (corveia) e o imposto do sal foram substituídos por impostos sobre a terra, o comércio interno foi liberado, os privilégios monopolísticos abolidos e o cipoal de regulações desmantelado. O capital político de Turgot, porém, já se esgotara: a população acreditava que a liberdade gerava preços mais elevados, os burocratas reguladores perderam sua função e os monopolistas seus lucros. Diante disso, Turgot foi substituído por Clugny, que restabeleceu os controles anteriores e o problema da escassez de trigo e preço elevado do pão persistiu.

Condillac[3], em seu livro Comércio e Governo (parte II, caps. 12 a 15), escrito no mesmo ano que a Riqueza das Nações de Smith, diagnosticou o problema, apontando para vários aspectos salientados durante nossa discussão. Para Condillac, os mercados não se formam instantaneamente. De modo bem “austríaco”, o autor salienta a importância do fator tempo nos processos produtivos – o estabelecimento de mercados requer a formação de capital, de uma rede de contatos comerciais e de aquisição de conhecimento (aprendizado hayekiano!). Condillac nota o dilema envolvido no debate moderno entre terapia de choque versus gradualismo: embora apenas o tratamento de choque possa funcionar, esse requer um tempo de adaptação durante o qual se deve resistir às pressões políticas contrárias à reforma. Em termos ideológicos, Condillac nota também a inversão de atribuição das causas: a população não se lembra da escassez antes da reforma e atribui tal escassez à própria liberalização. Os comerciantes, por sua vez, são demonizados, vistos como exploradores da pobreza. Nota também a possibilidade de empurrar o problema para frente, por meio da compra estatal de grãos subsidiados, que arruinaria as finanças públicas. Por fim, nota que ceder à pressão dos grupos de interesses não implica no fim do problema, mas no seu recrudescimento[4].

O leitor, ao notar as semelhanças entre essa situação e as crises modernas do intervencionismo, poderia ser tomado de angústias pessimistas diante da única moral possível da história: como o estatismo chuta a escada para a liberdade, seria melhor impedir o processo de expansão do estado, pois sua reversão é virtualmente impossível. No entanto, em nome do otimismo, podemos concluir com o seguinte pensamento. O lado da liberdade conta com um grande aliado: a realidade! As políticas intervencionistas simplesmente não funcionam e por mais que virtualmente todos os intelectuais sejam inimigos da liberdade, e esta seja defendida apenas por um punhado de economistas, a expansão do estado é limitada pela descoordenação gerada pela incapacidade de resolver o problema do cálculo econômico sem propriedade privada e sistema de preços[5].

 



[1] Buchanan (1978).

[2] Eltis (1993).

[3] Condillac (1997).

[4] Na época, o monarca não podia fazer como o político moderno, que joga o custo para o mandato seguinte, de preferência com um rival ocupando o gabinete. Como advertiu Turgot, a cabeça do monarca poderia acabar em uma bandeja…

[5] Esse tema é explorado no capítulo intitulado “Eleições e o copo meio cheio”.

 

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