25. Externalidades: caixa de Edgeworth ou de Pandora?
Nam tua res agitur, paries cum proximus ardet[1].
A existência de externalidades constitui uma das principais justificativas modernas para intervenção estatal na economia. A maneira como o problema das externalidades é tratado pela teoria econômica tradicional, porém, abre espaço para abusos que podem justificar qualquer tipo de arbitrariedade, tornando-se uma ameaça a uma sociedade livre. Vejamos na sequência em que consiste o problema, duas maneiras rivais de lidar com ele, e como uma delas, se levada às suas últimas consequências, resultaria em uma sociedade totalitária.
Uma vez que não é possível atender todos os propósitos das pessoas a partir de recursos limitados, comparamos os valores que esses recursos teriam em usos alternativos. Para os bens e serviços transacionados nos mercados, essa avaliação é feita com o auxílio do sistema de preços, através da comparação entre benefícios e custos esperados de cada escolha, expressos em termos monetários. Os preços de mercado refletem as opiniões que compradores e vendedores têm a respeito do benefício líquido que resultaria da alocação de certos recursos a fins específicos. Existem certas escolhas, porém, que afetam o bem-estar das pessoas, mas que não têm seu valor expresso em termos monetários. Nesses casos, dizemos que as decisões apresentam externalidades.
A decisão de uma siderúrgica aumentar sua produção, por exemplo, considera tanto o acréscimo de receita, que se relaciona ao valor do aço produzido para os consumidores, quanto o acréscimo dos custos, que se relaciona ao valor que os recursos produtivos teriam caso fossem empregados em outra indústria. A diminuição da produtividade das outras indústrias causada pelos poluentes emitidos pela siderúrgica, ou a redução do bem-estar dos vizinhos da fábrica, porém, não são em geral levadas em conta no cálculo. A siderúrgica produz então mais do que deveria.
O problema das externalidades é real. As formas de lidar com ele são objeto de investigação jurídica, política, moral e econômica. Neste último campo, podemos distinguir duas grandes formas de abordá-lo, conforme a postura do autor a respeito da complexidade dos fenômenos econômicos. Denominaremos essas duas formas de dirigista e institucional. Na tradição dirigista, acredita-se tacitamente que o problema alocativo é simples o bastante para que as firmas e o estado saibam quais são as consequências econômicas de cada escolha. Uma agência reguladora poderia impor ao agente causador da externalidade a obrigação de considerar os “custos sociais” ou totais de suas ações. No nosso exemplo, a tendência de produzir mais do que o adequado poderia ser corrigida através da imposição à firma poluidora de um imposto que reflita exatamente os custos externos – o imposto de Pigou, batizado em homenagem ao economista que sugeriu essa forma de incorporar a externalidade nos cálculos da firma.
Os economistas gostam de representar a situação na figura abaixo, denominada Caixa de Edgeworth. Nela, temos dois vizinhos, T e S. A largura da caixa representa a quantidade total de um bem qualquer, digamos, comida. A distância TU representa a comida de T e a distância SX a comida de S. A altura da caixa, por sua vez, representa o número de horas no dia. Para T, a flecha vertical apontando para cima representa o número de horas gastas tocando tuba, e para S, a flecha vertical apontando para baixo o número de horas de silêncio. Se A tocar bastante, partimos de um ponto próximo a X, com bastante barulho e metade da comida para cada um. T não considera em sua escolha o valor que o silêncio tem para S. Para um economista dirigista, o governo poderia impor um imposto de Pigou a T tal que, partindo-se do ponto U, que reflete o fato de que S tem direito ao silêncio, o tubista pagaria um imposto em comida por hora tocada que reflita os custos impingidos a S, o que nos levaria a um ponto eficiente, digamos, V, com menos horas de ensaio que X.
Essa solução foi duramente criticada pelos economistas da tradição institucionalista, que reconhecem a complexidade do problema alocativo. Os autores dessa vertente enfatizam a natureza subjetiva e sempre cambiante dos custos que caracterizam a competição nos mercados reais. A consideração dos aspectos dinâmicos do processo competitivo torna fantasiosa a ideia de que um burocrata possa conhecer os custos relevantes a cada instante. Se conhecesse, aliás, qual seria o propósito de se utilizar o sistema de preços com impostos corretivos em vez de um sistema de planejamento central, que diga exatamente o que cada um deva produzir?
Ronald Coase, um dos principais críticos da abordagem dirigista, revela na seguinte ironia sua falta de paciência com esse tipo de sugestão: “… essas propostas de impostos são o material a partir do qual os sonhos são feitos. Na minha juventude alguém disse que aquilo muito tolo para ser dito pode virar uma canção. Na Economia moderna, pode ser expressa em termos matemáticos.”[2]
Ao contrário do economista dirigista, que condena as “falhas de mercado” com base apenas em um ideal inatingível de eficiência, sem que essas falhas sejam comparadas com os méritos relativos de um arranjo institucional alternativo concreto (a falácia da “abordagem do nirvana” de que nos fala Demsetz), a perspectiva rival prefere a análise comparativa de instituições. Afinal, criar mecanismos políticos para corrigir “falhas de mercado” gera por sua vez “falhas de governo”. Entre outros problemas, pela própria natureza das decisões políticas, as soluções dos ganhadores são impostas aos perdedores, de forma que as externalidades reaparecem com intensidade muito maior. Que arranjo particular deve ser escolhido?
Para vários autores da abordagem institucional, que reconhecem que o conhecimento das peculiaridades dos mercados é disperso entre os agentes e sempre se altera, é mais produtivo tratar do problema por meio de regras gerais, que dispensam o conhecimento dos detalhes de cada caso. Coase, por exemplo, argumenta que a definição clara dos direitos de propriedades envolvidos é capaz de gerar um ambiente no qual os agentes terão incentivos para gerar acordos que diminuam o problema das externalidades. Na caixa de Edgeworth, se for estabelecido que T tem o direito de tocar quanto quiser, partimos de X e S teria condições de pagar a T para que deixe de tocar um pouco, chegando-se assim em um acordo no ponto Z. Se S detiver o direito ao silêncio, poderia vender o direito de fazer barulho a T, chegando-se assim no ponto V. Nos dois casos, todos os benefícios e custos são contemplados e resolve-se o problema da externalidade. Isso é possível sempre que as partes puderem negociar acordos. Esse resultado é conhecido como Teorema de Coase. O programa de pesquisa derivado da contribuição do autor convida então a preferir instituições que reduzam os custos de fazer esses acordos, os chamados custos de transação.
Pois bem, depois de rever as duas maneiras de tratar a questão, nos voltamos agora ao nosso ponto: a ameaça à liberdade inerente ao abuso do conceito de externalidade. Se recordarmos a definição de externalidade, é difícil imaginar alguma situação na qual não exista alguma manifestação do fenômeno. Na teoria moderna, ele aparece em toda parte. Argumenta-se que sofremos uma situação de virtual monopólio da Microsoft porque o valor de seus produtos é derivado não apenas de sua utilidade, mas também do número de pessoas que usam o mesmo software e trocam arquivos – uma externalidade de rede. Argumenta-se que o sistema de preços não transmite informação de forma perfeita porque algumas pessoas, em vez de investir em pesquisa sobre as condições dos mercados, se baseiam (pegam carona) na informação contida na variação dos preços, causadas por aqueles que fazem de fato tais pesquisas. Neste caso, os pesquisadores geram externalidades positivas para o resto do sistema, sem que isso seja valorizado. Argumenta-se que, como a educação gera benefícios não apenas para o estudante, mas também externalidades positivas para a sociedade como um todo, a liberdade educacional levaria a quantidade insuficiente de estudo, justificando a condução pública do sistema de ensino.
Para a abordagem institucionalista, a ubiquidade das externalidades não implica no controle estatal de cada aspecto das atividades humanas. Se o conjunto dessas atividades for reconhecida como uma cataláxia (ou ordem espontânea no sentido hayekiano), as intervenções estatais com frequência resultam em consequências não intencionais que contrariam seus objetivos. Aqui a essência da análise econômica se aplica: a maioria dessas intrusões estatais não é recomendada porque os meios propostos (a intervenção) são inconsistentes com os fins almejados (eliminar ou reduzir os problemas de externalidades). Mas, se a interação em sociedade for vista como uma economia (ou organização cujas decisões alocativas possam ser feitas conscientemente por comandos centrais, novamente no sentido hayekiano), como acredita a abordagem dirigista, as falhas de governo desaparecem e de fato seria difícil imaginar algum aspecto da ação humana livre de externalidades que não seja então sujeita ao controle central.
Isso faz com que deixemos de lado a Caixa de Edgeworth para nos ocuparmos com a caixa de Pandora aberta pelo argumento das externalidades. Considere a seguinte lista de exemplos, todos envolvendo externalidades negativas:
i) Firma produz um bem. Externalidade: poluição. Solução: estado impõe certo tipo de filtro e cobra imposto de Pigou;
ii) Pessoa fuma. Externalidades: fumo passivo e aumento dos custos da saúde pública. Solução: proibição, mesmo em espaços privados.
iii) Firma faz publicidade. Externalidade: o senso estético-arquitetônico das pessoas é ferido pela feiura dos cartazes. Solução: “lei da cidade limpa” da cidade de São Paulo, virtualmente proibindo a atividade publicitária.
iv) Pessoas emitem suas tolas opiniões. Externalidades: a opinião ofende alguns e influencia a opinião pública. Solução: censura, patrulhamento ideológico, subsídios a veículos “politicamente corretos”.
v) Pessoas feias andam nas ruas. Externalidade: a feiura ofende o senso estético de alguns. Solução: os feios pagam imposto de Pigou por quadra caminhada ou impõe-se o uso de burkas (o equivalente ao filtro da fábrica do primeiro exemplo…)
Vamos ignorar os defeitos do argumento dirigista e supor que instrumentos como impostos pigouvianos possam ser implementados com sucesso e que as intervenções não criam novas externalidades, atividade derent-seeking, distorções alocativas e outros problemas. Embora alguns dos exemplos da lista acima pareçam razoáveis e outros absurdos, qual é a diferença entre eles? O economista dirigista tem então que indagar: existem limites de outra natureza ao uso do argumento da externalidade como justificativa para as intervenções? Em caso positivo, como estabelecer o limite, lembrando que os ataques mais graves aos direitos individuais são em geral desferidos pelas pessoas mais moralistas?
Na lista acima, temos um gradiente organizado em ordem crescente de abuso do argumento de externalidades. A ameaça à liberdade, porém, não vem do contraste entre o primeiro e o último, mas nas pequenas diferenças entre cada passo, que vai quebrando aos poucos a resistência à expansão do argumento. A lista também apresenta, grosso modo, grau decrescente de aprovação popular. Todo mundo acha razoável limitar a quantidade de poluição e de cigarro em ambientes públicos. Poucos percebem, no entanto, que o argumento da saúde pública mostra a incompatibilidade entre liberdade individual e estatização da economia: com um sistema público de saúde, a decisão individual de fumar afeta a todos, na medida em que aumenta os custos do sistema, financiados por impostos – um exemplo de estatização gerando um gigante problema de externalidade. O mesmo vale para a progressiva popularidade da proposta de taxação do hambúrguer, a próxima vítima do argumento.
No terceiro caso, o desrespeito à propriedade privada e imposição de prejuízos as firmas anunciantes são justificados em larga medida com um argumento estético. Ainda assim a maioria da população paulistana aprovou a lei. Qual é a diferença entre esse exemplo e o último, ambos baseados em externalidades da mesma natureza? Desconfio que a rejeição ao quinto caso tenha menos a ver com a violência maior aos direitos individuais e mais com o fato de que a maioria de nós seja de fato feia…
Finalmente, embora ninguém defenda a solução proposta pelo quarto exemplo na forma direta como foi exposto, é espantoso como na prática essa solução é progressivamente defendida sem que se ouçam réplicas lembrando o valor da liberdade. Tomemos um exemplo que ocorre ao mesmo tempo em que estas linhas são escritas: o comercial com a modelo Gisele Bündchen ensinando que a forma de dar uma má notícia ao marido, como o abuso do cartão de crédito ou um acidente com o carro, consiste em fazê-lo apenas delingerie. Depois de repetir a tese mil vezes refutada pela ciência de que o comportamento humano não tem base biológica alguma e é totalmente moldado pela cultura, os defensores da censura ao comercial apontam para a necessidade de que opiniões que fomentem supostos estereótipos sejam proibidas de funcionar como “poluentes” da boa cultura, ou seja, como externalidades negativas. De fato, um leitor da Folha de São Pauloescreve que “o poder público tem o dever de coibir esse tipo de estereótipo, pois atinge negativamente a sociedade.” (3 de outubro de 2011). Dois dias depois, um articulista do mesmo periódico, promotor no distrito federal, em uma peça de humor involuntário, acusa Bündchen de discriminar os homens, vistos como tarados que só podem ter direito a lindas esposas se cumprirem o papel de provedores, papel esse imposto pela cultura. Além de reforçar estereótipos opressores, o autor cita outra externalidade causada pelo comercial: as ideias lá expressas o ofendem e portanto (?) o comercial deve ser proibido: “por isso, pedimos ao Conar que suspenda a propaganda da Hope e outras ridículas, não só por ofenderem nossas mães, filhas e esposas, mas por nos agredirem profundamente enquanto homens.”
Da mesma forma que o gradiente existente na nossa lista implica em progressivo desrespeito às liberdades individuais e propriedade privada, a tendência na teoria econômica moderna de ampliar a noção de externalidade e “falhas de mercado” em geral que devam ser corrigidas por um estado tacitamente visto como sábio e benevolente representa a mesma ameaça. Como prevenir que a caixa de Edgeworth se transforme em uma caixa de Pandora? Com certeza, não através da especialização excessiva que assola a profissão e dificulta a apreciação do legado deixado por autores que efetuam comparações institucionais, como Coase.
[1] “É problema teu quando a parede do vizinho pega fogo.” Horácio, Epístolas 1, 20 a.C.
[2] Coase( 1988), pg. 185.