A encíclica “Laudato Si´”: bem intencionada, mas economicamente insensata

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popeNos dias posteriores à publicação da nova encíclica do papa Francisco, Laudato Si’ (Louvado Seja), a maioria dos comentários abordava as possíveis implicações da mesma para o debate sobre as mudanças climáticas.
Um esforço para influenciar esse discussão — sendo que boa parte dela, como Al Gore, já desapareceu das manchetes dos noticiários e se confinou a organizações internacionais, ONGs, burocratas governamentais e lobistas profissionais — é claramente parte da intenção imediata da encíclica.

Ademais, apesar das incursões ocasionais do texto em temas muito técnicos — como, por exemplo, o impacto do ar condicionado (55) —, a importância mais profunda desse documento longo (e, em partes, muito mal escrito) certamente será a de como ele moldará a reflexão teológica católica a respeito do relacionamento do homem com o mundo natural.

Embora a maior parte das reflexões do texto esteja centrada na questão do meio ambiente, um tema subjacente — e que se torna claramente visível de tempos em tempos — é a visão profundamente negativa da encíclica com relação aos mercados. Isso confirma que a reação desse pontificado aos respeitosos questionamentos que várias pessoas fizeram a ele sobre as análises econômicas contidas na exortação apostólica de 2013, Evangelii Gaudium, foi simplesmente a de reciclar (sem trocadilho) alguns dos argumentos comprovadamente falhos contidos naquela exortação com relação aos efeitos da economia de mercado.

Apenas para deixar claro, existem muitos aspectos da economia global que merecem críticas. A encíclica enfatiza corretamente o problema de socorrer bancos com o dinheiro público (189). Alguém por acaso duvida que, se o mundo passar por outra série de falências bancárias, os governos se comportarão exatamente da mesma forma, reforçando assim o problema do risco moral que está na raiz de grande parte da disfuncionalidade do setor financeiro?

A encíclica também sugere, corretamente, que apesar dos eventos de 2008, houve um grande fracasso na reforma do sistema financeiro global (189). Igualmente, as duras palavras do papa em relação àquelas pessoas que consideram o crescimento demográfico prejudicial ao meio ambiente e um obstáculo ao desenvolvimento econômico são certeiras (50).

Não obstante, a visão dessa encíclica sobre a realidade econômica contemporânea sofre de vários problemas conceituais, além de fazer uso de alegações que são empiricamente questionáveis.

Em termos de degradação ambiental, Laudato Si’ parece ignorar o fato de que a poluição mais significativa ligada à atividade econômica no século XX ocorreu como resultado dos esquemas de industrialização estatal centralmente planificada das antigas nações comunistas (ver aqui e aqui). Qualquer pessoa que tenha visitado a antiga URSS ou o Leste Europeu durante a vigência do comunismo, e testemunhando aquela paisagem frequentemente devastada, rapidamente atestará a validade dessa constatação.

E há também, na encíclica, o uso da dicotomia “norte e sul” para descrever algumas das dinâmicas da economia global (51). Essa terminologia tem sido ocasionalmente utilizada por papas em um passado recente. Mas ela também reflete o aparato conceitual daquilo que é chamado de ‘teoria da dependência’: a noção de que os recursos — especialmente os recursos naturais — fluem da “periferia” (países pobres) para o “centro” (países ricos), beneficiando os ricos em detrimentos dos pobres.

De acordo com os economistas adeptos da teoria da dependência, isso significava que as nações periféricas deveriam restringir o comércio com os países desenvolvidos e dificultar a entrada de investimentos externos. O objetivo seria o de reduzir a dependência de exportação de matérias-primas e de produtos agrícolas, consequentemente promovendo (magicamente) o surgimento de uma indústria doméstica forte.

Essa caracterização da economia global, em grande parte formulada por economistas latino-americanos nos anos 1950, foi há muito desacreditada. Nem mesmo muitos economistas de centro-esquerda estão dispostos a defendê-la. Qual o país que enriqueceu dificultando o comércio e afugentando investimentos estrangeiros?

No que mais, existem, por exemplo, países do “sul” — tais como Chile, Austrália e Nova Zelândia — que são formalmente classificados como países desenvolvidos. Eles se tornaram ricos parcialmente (a) por causa da exportação de minerais e commodities agrícolas e (b) porque optaram voluntariamente por se integrar à economia global em vez de utilizar barreiras protecionistas e de recorrer a políticas ineficientes de proteger a indústria nacional por meio de subsídios governamentais.

Adicionalmente, vale a pergunta: onde algumas economias do “hemisfério norte” — tais como a corporativista Rússia ou as petrolíferas economias do Oriente Médio — se encaixam nesse eixo econômico global “norte-sul”? A resposta é simples: elas não se encaixam.

Em suma, se o paradigma “norte-sul” é como a Santa Sé entende o cenário geopolítico global, então ela está decididamente apegada a uma determinada perspectiva da economia mundial cujas profundas falhas e limitações já eram aparentes ainda no início da década de 1970.

Outro problema com a Laudato Si’ — também já manifestada em Evangelii Gaudium — é a simplificação leviana que ela faz ao comentar a visão daqueles que acreditam que o livre mercado é a melhor solução econômica, tanto para uma nação quanto para o mundo. Eis um exemplo:

Em alguns círculos, defende-se que a economia atual e a tecnologia resolverão todos os problemas ambientais, do mesmo modo que se afirma, com linguagens não-acadêmicas, que os problemas da fome e da miséria no mundo serão resolvidos simplesmente com o crescimento do mercado. (109).

O crescimento econômico é, obviamente, indispensável para salvar as pessoas da pobreza. Não existe solução de longo prazo contra a pobreza sem crescimento econômico, e as economias de mercado têm a incomparável capacidade de produzir esse crescimento.

Mas quem quer que sejam esses “círculos”, não há nenhum defensor do livre mercado que acredite que o crescimento econômico, por si só, seja a resposta para a miséria e a pobreza. Muitas outras coisas têm estar no lugar certo, mais notavelmente as bases morais, culturais e institucionais apropriadas.

Essas vão desde algo tão fundamental como o estado de direito (amplamente ausente em grande parte dos países latino-americanos e sobre o qual a Laudato Si’ — como a Evangelii Gaudium — nada dizem) até sociedades civis vibrantes. A maioria dos defensores do livre mercado vem argumentando nesse sentido há décadas. (Ver aqui e aqui).

Em seguida, a Laudato Si’ afirma que:

Eles estão menos preocupados com certas teorias econômicas, as quais hoje praticamente ninguém ousa defender, do que com seu funcionamento no desenvolvimento concreto da economia. Eles podem não afirmar tais teorias com palavras, mas as defendem com os seus atos ao não demonstrarem nenhum interesse em níveis de produção mais equilibrados, uma melhor distribuição da riqueza, um cuidado com o meio ambiente e com os direitos das gerações futuras. Seus comportamentos mostram que, para eles, o objetivo da maximização dos lucros é o suficiente. Mas o mercado, por si só, não garante o desenvolvimento humano integral nem a inclusão social. (109)

Deixando de lado a demasiada imprecisão da primeira sentença (quem são “eles” e quais “teorias econômicas” estão necessitando de defesa?), não é difícil ver sinais de uma linguagem que beira ao populismo. A alegação nada dissimulada de que as pessoas que favorecem o livre mercado estão sendo insinceras é muito séria, e é insustentável perante uma simples análise rápida dos escritos e das ações de muitos pensadores liberais, desde Wilhelm Röpke até o próprio Adam Smith.

É errôneo afirmar, por exemplo, que ser a favor do livre mercado significa que você é necessariamente indiferente para com o meio ambiente e obcecado pelo lucro. Muitos defensores do livre mercado têm dedicado suas vidas a inventar formas de alinhar incentivos econômicos à conservação ambiental (ver aqui, aqui e aqui).

Tampouco é justo dizer que os defensores do livre mercado não têm interesse nas gerações futuras. Em grande parte, são justamente as pessoas que apóiam o livre mercado que criticam o crescente endividamento de governos ocidentais — uma maneira de evitar reformas fiscais duras, porém necessárias —, endividamentos estes que estão colocando em risco o futuro das próximas gerações. Pessoas com uma postura mais intervencionista ou keynesiana são normalmente silenciosos quanto a isso, ou não creem que o endividamento dos governos — o qual será inteiramente arcado pelas gerações futuras — seja realmente um problema.

Por fim, é provavelmente possível contar nos dedos de uma mão o número de defensores do livre mercado que acreditam que a liberdade econômica, por si só, garante o total desenvolvimento humano. Considere, por exemplo, Adam Smith. Nem tudo no pensamento de Smith é compatível com a visão católica do homem. Contudo, a visão de Smith, no que diz respeito ao comércio e às transações de mercado, está arraigada em uma visão amplamente civilizacional, a qual destaca não apenas a necessidade de a sociedade civil ser íntegra, como também enfatiza que, para uma economia prosperar e beneficiar a maioria — em vez de somente elites privilegiadas que usufruem laços estreitos com a classe política —, é fundamental que a sociedade possua virtudes clássicas e judaico-cristãs.

O que é tristemente irônico sobre tudo isso é que a mesma encíclica que faz declarações tão impetuosas sobre o livre mercado e seus defensores é também marcada por diversos clamores por um debate amplo e racional (16, 61, 135, 138, 165) sobre como devemos tratar os problemas ambientais e econômicos.

Laudato Si’ enfatiza que a Igreja não detém o monopólio da sabedoria nas questões ambientais e econômicas. Entretanto, o uso de frases como “mercado divinizado” (56) e “concepção mágica do mercado” (190); o fato de associar o relativismo moral à “mão invisível” (123) de Adam Smith; o fato de estabelecer uma ligação cruel entre materialismo e consumismo (nenhum dos quais teve qualquer dificuldade de florescer em economias planificadas); sua incapacidade de criticar os regimes populistas de esquerda que têm trazido destruição econômica e aumento da pobreza em países como a Argentina e a Venezuela; e sua atribuição de motivos suspeitos àqueles que defendem o livre mercado vão contra a esse apelo por um debate “aberto e respeitoso”.

É verdade que, para uma parte do clero católico e de ativistas políticos, “diálogo com o mundo” significa ouvir apenas o que a esquerda política (crescentemente ateísta e anticatólica) pensa sobre qualquer assunto.

Isso, todavia, não é uma justificativa para estigmatizar a posição daqueles que argumentam, de maneira clara e difícil de ser negada, que o maior e mais rápido redutor da pobreza na história humana — em níveis local, nacional e global — tem sido a economia de mercado, bem como e os hábitos, a cultura e as instituições sobre as quais depende o empreendedorismo, o livre comércio e o crescimento da acumulação de capital (a qual possibilita os investimentos que irão gerar empregos, aumentar a produção de bens e serviços e, consequentemente, elevar o padrão de vida).

Nada disso serve para negar que algumas críticas feitas por conservadores ao papa Francisco desde 2013 beiram ao absurdo. Um olhar rápido nos escritos do papa mostra que Jorge Mario Bergoglio não é um seguidor da Teologia da Libertação. É igualmente absurdo descrever esse papa como um marxista. Com efeito, a sua defesa inflexível da vida inocente, desde a concepção em diante, sua condenação aberta da eutanásia, e suas críticas crescentemente ferozes àquele mundo de fantasia conhecido como “teoria de gênero” contradizem as mais básicas ortodoxias da esquerda contemporânea.

Por tudo isso, no entanto, e apesar da incontestável autenticidade do amor e da preocupação do papa Francisco para com os pobres, é lamentável que esse pontificado pareça tão indisposto a se engajar em discussões sérias sobre os méritos morais e econômicos da economia de mercado em relação às alternativas. É fato que o bem-estar da sociedade não pode ser reduzido à eficiência e ao crescimento econômico; tampouco o livre mercado salvará nossas almas.

Porém, havendo os ambientes ético, social e institucional propícios, a liberdade econômica e um setor comercial vibrante são de inestimável ajuda na luta contra a pobreza, contra as doenças e contra a estagnação econômica que marcou grande parte da história europeia antes da publicação de A Riqueza das Nações e a qual ainda flagela grande parte do mundo em desenvolvimento.

Ao que parece, essa é uma lição que boa parte do mundo católico ainda precisa ouvir.

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