Seria algum exagero dizer que, desde a Revolução Francesa, a esquerda tem sido a fonte de praticamente todas as perversidades políticas, e continua sendo até hoje?
É verdade que não pode haver dúvidas de que várias crueldades podem ser e foram infligidas com o intuito de se preservar a ordem vigente. Porém, quando comparamos as piores atrocidades do passado mais distante com as revoluções totalitárias de esquerda ocorridas no século XX, aquelas parecem, em geral, um mero distúrbio. Como dizia Joseph Sobran, toda a história da Inquisição mal alcança o nível daquilo que os comunistas faziam em uma tarde normal.
A Revolução Francesa, particularmente em sua fase mais radical, representou a clássica manifestação do esquerdismo moderno, e serviu de modelo para revoluções ainda mais radicais que viriam a ocorrer ao redor do mundo mais de um século depois.
À medida que a Revolução Francesa avançava, seus objetivos iam se tornando mais ambiciosos, com seus mais fervorosos partidários exigindo nada menos que a total transformação da sociedade.
Para substituir os vários costumes e tradições já estabelecidos em uma França que tinha mais de um milênio de história, os revolucionários radicais introduziram uma alternativa “racional” inteiramente criada por suas próprias cabeças, e com um entusiasmo digno de um hospício.
Ruas com nomes de santos receberam novos nomes, e as estátuas de santos foram guilhotinadas (as pessoas que guilhotinavam estátuas eram as racionais). O próprio calendário francês, repleto de festas religiosas, foi substituído por um calendário mais “racional”, com 30 dias por mês divididos em três semanas de 10 dias, desta maneira abolindo o domingo. Os cinco dias restantes do ano eram dedicados a práticas seculares: celebrações do trabalho, da opinião, do talento, da virtude e da recompensa.
As punições ministradas a quaisquer desvios dessa nova revelação já eram tão severas quanto as que viriam a se tornar praxe na esquerda de hoje. Pessoas eram sentenciadas à morte por terem um rosário, por darem abrigos a padres, ou mesmo por se recusarem a abdicar do sacerdócio.
Já estamos bastante familiarizados com a guilhotina, mas os revolucionários inventaram outras formas de execução, como os Afogamentos em Nantes, criados para humilhar e aterrorizar suas vítimas.
Dado que a esquerda sempre quer a completa transformação da sociedade, e dado que essa mudança total tende a enfrentar a resistência dos cidadãos comuns que simplesmente não querem ter suas rotinas e suas vidas radicalmente transformadas, não é de se surpreender que o recurso do terror em massa seja a arma escolhida. O povo tem de ser aterrorizado até sua completa submissão, e tem de ficar tão indefeso, quebrado e desmoralizado, que qualquer ato de resistência irá se tornar impossível.
Da mesma forma, não é de se surpreender que a esquerda defenda um estado gigante. Em lugar de agrupamentos e fidelidades que ocorrem naturalmente, a esquerda exige sua substituição por criações artificiais. Em lugar do concreto e do específico — dos “pequenos pelotões” que surgem organicamente, como dizia Edmund Burke —, a esquerda impõe substitutos remotos e artificiais que surgem da cabeça dos intelectuais.
A esquerda prefere que o comando total seja entregue a um distante governo central em detrimento dos indivíduos e suas vizinhanças locais; às escolas e aos sindicatos dos professores em detrimento do chefe da família.
Por isso, durante a Revolução Francesa, a criação dos departamentos, totalmente subordinados a Paris, foi uma clássica manobra esquerdista — assim como foram os megaestados totalitários do século XX, os quais exigiam que a fidelidade do povo fosse transferida das pequenas associações que até então definiam suas vidas para uma nova autoridade central que havia sido criada do nada.
Enquanto isso, a direita (corretamente entendida), de acordo com o grande liberal clássico Erik von Kuehnelt-Leddihn, “defende formas de vida livres e surgidas organicamente”.
A direita defende a liberdade e uma maneira de pensar livre e sem preconceitos; uma prontidão em preservar os valores tradicionais (desde que eles sejam valores verdadeiros); uma visão equilibrada da natureza do homem, que o vê nem como uma besta nem como um anjo, insistindo na singularidade dos seres humanos, os quais não podem ser transformados em, e nem tratados como, meros números ou cifras.
Já a esquerda é a defensora dos princípios opostos; ela é a inimiga da diversidade e a fanática defensora da identidade. A uniformidade é enfatizada em todas as utopias esquerdistas, paraísos nos quais todos são os mesmos, a inveja está morta, e o inimigo ou já foi aniquilado, ou vive fora dos portões, ou já foi completamente humilhado. O esquerdismo abomina as diferenças, as divergências e as estratificações. […] A palavra “única” é o seu símbolo: uma única linguagem, uma única raça, uma única classe, uma única ideologia, um único ritual, um único tipo de escola, uma única lei para todos, uma única bandeira, um único brasão, um único estado mundial centralizado.
Estaria essa descrição de Kuehnelt-Leddihn parcialmente datada? Afinal, ninguém apregoa sua devoção à “diversidade” com mais intensidade do que a esquerda. No entanto, a versão esquerdista de ‘diversidade’ se resume a um tipo especialmente pérfido de uniformidade. Para a esquerda, ninguém pode ter uma visão discordante a respeito da necessidade de se impor essa “diversidade”; na academia, “diversos” professores universitários são escolhidos não por sua diversidade de pontos de vista, mas precisamente por sua sombria uniformidade: progressistas de esquerda de todos os tipos e formas. Alunos e professores com visões genuinamente diversas são marginalizados, perseguidos e intimidados. Adicionalmente, ao exigir “diversidade” e representação proporcional em várias instituições, a esquerda tem o objetivo contrário: fazer com que todo o país seja exatamente igual.
A esquerda sempre esteve engajada em criar ciladas. Primeiro, ela afirma que não quer nada mais do que a liberdade para todos. O progressismo supostamente seria neutro em relação a visões de mundo rivais, defendendo apenas um mercado de idéias aberto, em que pessoas racionais pudessem discutir questões importantes. Ele não imporia qualquer visão específica.
Essa alegação, no entanto, rapidamente se comprovou uma farsa quando a importância, para a esquerda, de se ter uma educação controlada centralmente pelo estado se tornou óbvia. Em particular, a educação progressista sempre visou a “libertar” as crianças das superstições dos poderes concorrentes ao estado (pais, família, igreja, vizinhança) e transferir sua lealdade ao governo central.
Como Kuehnelt-Leddihn disse:
As razões são várias. Não apenas há o regozijo do estatismo, como tambem há a ideia de uniformidade e igualdade: a ideia de que as diferenças sociais na educação devem ser eliminadas e todos os alunos devem adquirir exatamente o mesmo conhecimento, o mesmo tipo de informação, da mesma forma e no mesmo grau, sem espaço para o contraditório ou para outras visões. Isso deverá fazer com que eles pensem da maneira idêntica — ou, no mínimo, similar.
À medida que o tempo passou, os esquerdistas foram ficando cada vez menos preocupados em manter uma aparência de neutralidade em relação a visões sociais distintas. É por isso que aqueles conservadores que acusam a esquerda de relativismo moral estão errados: longe de ser relativista, a esquerda é absolutista em sua exigência para que todos se conformem aos seus códigos morais peculiares.
Por exemplo, quando a esquerda declara que pessoas “transgênero” são a nova classe oprimida, ela espera que todos fiquem de pé e batam continência. A esquerda progressista não argumenta que apoiar pessoas transgênero pode ser uma boa ideia para alguns e uma má ideia para outros; é isso o que ela diria caso fosse moralmente relativista. Mas como ela não é, não é isso o que ela diz.
E não é apenas que a discordância não seja tolerada. A discordância também não pode ser reconhecida. Não é que o “infrator” (aquele que não concorda com as idéias progressistas) seja chamado para um debate até que uma solução satisfatória seja alcançada. Ele é simplesmente expulso da “sociedade culta e iluminada” sem qualquer cerimônia. Não pode haver qualquer opinião diferente daquela que a esquerda estipulou ser a aceitável.
Incidentalmente, qual foi o último palestrante esquerdista que foi calado no grito por libertários em uma universidade? Resposta: isso nunca ocorreu. E, se houvesse ocorrido, pode ter certeza de que ouviríamos lamúrias da esquerda sobre isso até o fim dos tempos.
Por outro lado, esquerdistas que aterrorizam seus oponentes ideológicos estão simplesmente sendo fieis às ordens de Herbert Marcuse, o esquerdista da Escola de Frankfurt que, na década de 1960, argumentou que a liberdade de expressão tinha de ser restringida para os movimentos anti-progressistas. Diz ele:
Dada essa situação, eu sugeri em “Tolerância Repressiva” a prática da tolerância diferenciada em uma direção inversa, como um meio de deslocar o equilíbrio entre a Direita e a Esquerda por meio da contenção da liberdade da Direita, dessa maneira contrariando a desigualdade penetrante da liberdade (oportunidade desigual de acesso aos meios de persuasão democrática) e fortalecendo o oprimido contra o opressor.
A tolerância seria restrita com relação a movimentos de um caráter demonstravelmente agressivo ou destrutivo. […] Tal discriminação também seria aplicada a movimentos que se opõem à extensão da legislação social para os pobres, os fracos, os inválidos.
Em relação às virulentas acusações de que uma política assim anularia o sagrado princípio progressista de igualdade para “o outro lado”, afirmo que há questões em que o “outro lado” ou nada mais é do que uma mera formalidade ou é demonstravelmente “regressivo” e impede a possível melhoria da condição humana. Tolerar a propaganda para a desumanidade vicia não só as metas do progressismo, mas de toda a filosofia política progressiva.
Mesmo boa parte do que se passa por conservadorismo hoje é afetado pelo esquerdismo. Esse é exatamente o caso do neoconservadorismo. Você consegue imaginar Edmund Burke, a fonte do conservadorismo moderno, defendendo a ideia de intervenções militares ao redor do mundo para espalhar a ideia de direitos humanos e democracia? Converse com neoconservadores sobre descentralização e secessão, e você receberá exatamente as mesmas respostas esquerdistas que vê nos veículos da mídia progressista.
No entanto, já até consigo imaginar a seguinte objeção: não obstante qualquer coisa que possa ser dita sobre os crimes e horrores da esquerda, não podemos ignorar o totalitarismo da direita, manifestado mais abertamente na Alemanha nazista.
O problema é que, com efeito, os nazistas era um partido de esquerda. Na plataforma do Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães encontramos os seguintes itens:
O Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães não é um partido trabalhista no sentido clássico do termo: ele representa os interesses de todo o trabalho honestamente criativo. Trata-se de um partido que ama a liberdade e é estritamente nacionalista e que, portanto, luta contra todas as tendências reacionárias, contra os privilégios capitalistas, eclesiásticos e aristocráticos, e contra toda a influência estrangeira, mas acima de tudo contra a opressora influência da mentalidade comercial judaica sobre todos os domínios da vida pública….
O partido exige a unificação de todas as regiões da Europa habitadas por alemães, transformando-as em um Reich alemão democrático e com consciência social….
O partido exige plebiscitos para todos as principais leis do Reich, dos estados e das províncias….
O partido exige a eliminação do domínio dos banqueiros judeus sobre o comércio e os negócios, e exige a criação de bancos nacionais do povo, com uma administração democrática.
Este programa, escreveu Kuehnelt-Leddihn, “exalava todo o espírito da igualdade esquerdista: era democrático, era contra os Habsburgos (exigia a destruição da monarquia em prol de um programa pan-germânico), e era contra todas as minorias impopulares, atitude essa que é o magnetismo de todas as ideologias esquerdistas”.
A obsessão esquerdista com “igualdade” significa que o estado deve se intrometer em todas as áreas da economia e da vida em sociedade, deve regular o emprego, as finanças, a educação e até mesmo abolir a liberdade de associação em clubes privados — ou seja, o estado deve se fazer presente em praticamente todos os buracos e fendas da sociedade civil. Em nome da diversidade, cada instituição deve ser forçada a ser igual a todas as outras.
A esquerda jamais irá se considerar satisfeita porque seu lema é o da permanente revolução a serviço de objetivos inalcançáveis, como a “igualdade”. Só que, no mundo real, as pessoas são intrinsecamente distintas uma das outras. Algumas pessoas são naturalmente mais inteligentes que outras. Algumas têm mais destrezas do que outras. Algumas têm mais aptidões físicas do que outras. Pessoas de diferentes capacidades, intelectos e dotes auferirão rendas distintas. Isso, consequentemente, significa que o estado, guiado pela esquerda, terá de estar continuamente intervindo na sociedade civil. No entanto, a igualdade imposta desaparecerá no exato momento em que pessoas voltarem a trocar dinheiro pelos bens que desejam. Ato contínuo, o estado terá de intervir novamente para igualar tudo. E assim será o tempo todo, para todo o sempre.
Adicionalmente, cada nova geração de progressistas destrói e ridiculariza tudo aquilo que a geração anterior ainda aceitava como algo natural. Com isso, a revolução vai só se aprofundando.
O esquerdismo, em suma, é a receita para uma permanente revolução, e de um tipo distintivamente anti-libertário. E não só anti-libertário. É também anti-humano.
E, ainda assim, todo o ódio ainda é direcionado para a direita.
Só para esclarecer, libertários não se sentem em casa nem na esquerda e nem na direita. Porém, a ideia de que ambos os lados são igualmente terríveis, ou representam ameaças idênticas à liberdade, é uma insensatez imprudente e destrutiva.
Ótimo texto! Define claramente a esquerda: só não vê quem não quer.