A pobreza e a desigualdade, ou: os pobres também gostam de propriedade!

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HeliópolisA noção de propriedade é tão natural, tão simples e tão intrínseca ao ser humano, que qualquer criança com menos de dois anos já a absorveu por completo sem que tenha tido qualquer doutrinação a respeito.  Se você tomar o brinquedo de uma criança, ela certamente vai lhe fuzilar com o olhar e gritar “É meu!”.  Ela só não vai reagir com mais afinco simplesmente por uma questão de incapacidade física.  Entretanto, se uma criança roubar o doce de outra criança da mesma idade, as chances de ambas saírem no braço são consideráveis.  Mesmo o mais inocente dos seres humanos sabe que, quando se é o dono de um bem, quando esse bem é sua propriedade, você é quem controla a disposição e o arranjo dele.  Você é quem decide o que fazer com ele.  Trata-se de um direito seu.

Vou mais além: a noção de propriedade é tão natural, que ela é compreendida até mesmo no Reino Animal.  Tente tirar uma bola de borracha da boca de um cachorro e observe se ele vai oferecer alguma resistência.  Muito certamente, no mínimo um rosnado ameaçador ele vai soltar.  Da mesma forma, experimente adentrar um covil de lobos, raposas, ou até mesmo galinheiros e canis, e as chances de você ser visto indiferentemente pelos residentes locais será nula.

Entendido isso, conclui-se que é preciso ser um jornalista da grande mídia, com o cérebro completamente infectado pelas bazófias marxistas abundantemente propaladas nas universidades (públicas e privadas), para achar que os pobres são diferentes das crianças, dos animais, da classe média e dos ricos.

Os trechos a seguir, de uma reportagem publicada na Folha de S. Paulo, são típicos dessa mentalidade.

Antes, uma contextualização.  Moradores da favela de Heliópolis, a maior de São Paulo, foram contemplados por um projeto de urbanização feito pela prefeitura.  A ideia era transformar essas favelas em bairros por meio de obras como a canalização de córregos, abertura de ruas e de acesso ao transporte público, além de novos pontos de iluminação.  Já que o estado detém o monopólio destes serviços, não permitindo qualquer concorrência e cobrando impostos para tal, ele nada mais fez do que sua obrigação.

O problema é que houve uma pequena revolução.  Tão logo os pobres que habitavam esses locais viram suas vidas melhorarem — com a construção de 296 unidades habitacionais, algumas famílias, de favelas, passaram a morar em apartamentos —, os insensíveis rapidamente adotaram um modo de vida “elitista”, tratando rapidamente de adotar medidas de proteção à sua propriedade.  E a mídia, obviamente, não perdoou essa traição de ideais — afinal, pobre bom é pobre que mora em barracão de lona, totalmente desapegado a qualquer bem material.

Observe o tom inadvertidamente cômico da reportagem, com aquela afetação de superioridade típica dos que acham que os pobres, justamente por serem pobres, têm a obrigação de serem orgulhosamente diferenciados de todas as outras classes sociais, mantendo-se impolutos e incontaminados pela praga do egoísmo que atinge apenas a classe média e os ricos.  Em suma, os pobres não podem demonstrar o odioso vício de demonstrar apego à propriedade.  Para esses intelectuais, a pobreza é criadora de uma moralidade própria, indelevelmente superior a qualquer outra moralidade ostentada pelas classes mais altas.

É como se o tamanho da conta bancária fosse inversamente proporcional à probidade e à honestidade; é como se ela fosse uma garantia de desapego aos efêmeros bens materiais.  Os pobres são, ao contrário de todo o resto da humanidade mesquinha, seres proibidos de mostrar qualquer afeição à propriedade simplesmente porque sempre foram vistos, em última instância, como instrumentos essenciais de uma revolução que nunca veio — mas que, se viesse, teria justamente a propriedade como seu grande alvo.

Veja os trechos mais interessantes.  Eles vão de vermelho, eu vou de preto:

Primeiro foram muros.  Depois grades, cadeados e a fechadura. Na entrada do prédio, um aviso aos moradores: “Mantenham o portão fechado para nossa segurança”.

A cena, comum em condomínios de classes média e alta, surge agora em Heliópolis, maior favela paulistana, e em outras regiões periféricas.

Uma vez incluídos no sistema habitacional formal, os moradores também acabam optando pela segregação.  O fenômeno já levou a prefeitura a reavaliar os projetos de intervenção em favelas.

Como ousam esses pobres!  Muros, grades, cadeados e fechaduras!  Recusando-se a deixarem os portões de seus prédios abertos, criando segregação!

Um comportamento típico das classes média e alta foi ávida e inesperadamente (ao menos na concepção da mídia) incorporado pela classe baixa, até então a última esperança da eternamente vindoura revolução socialista que iria abolir a propriedade privada (“a propriedade é um roubo”).

É claro que tal comportamento da parte dos mais pobres precisa de uma urgente intervenção estatal.  Ou eles passam a dormir de porta aberta, para evitar a segregação, ou o estado terá de reavaliar a situação, tomando tudo e restabelecendo desta forma a ordem natural das coisas.

De acordo com a reportagem, uma representante da Prefeitura de São Paulo — Elisabete França, superintendente de habitação popular — também é crítica do que está acontecendo.  Dispara a benfazeja:

“As pessoas repetem o modelo que conhecem.  Muro não é seguro, não é solução. É uma coisa cultural brasileira”.

Muro é coisa cultural brasileira… Por que será?  Será que é porque os brasileiros têm essa estranha predileção cultural por viver dentro de gaiolas?  Ou será talvez porque o estado não cumpre bem aquela função precípua da qual se arroga o monopólio, a saber, a segurança?  A superintendente da prefeitura deixa clara sua lição de humanidade: derrubem os muros.  Não apenas tudo será mais seguro, como também toda a criminalidade deixará de existir.  Afinal, muros não seguram ninguém.  O que realmente barra as pretensões violentas do seres humanos são portões abertos e ausência de qualquer delimitação de propriedade.

Ruy Ohtake, arquiteto criador de um desses projetos em Heliópolis, diz que concebeu tudo “sem muros, cercas ou grades”.  De acordo com a reportagem, ele não gostou nada do que viu:

“Há um espelhamento na classe média, que, de 20 anos para cá, ficou cercada.  A comunidade tem de entender a urbanização.  É preciso conversar com esses moradores para retirar esses fechos”.

Malditos pobres!  Tão mesquinhos…  Adquirem propriedade e já saem tratando de protegê-la!  E fazendo o que há de pior, o que há de mais moralmente baixo na escala dos valores humanos: copiar a classe média!  Tão logo receberam as propriedades “sem muros, cercas ou grades”, já correram para colocar tudo isso que faltava — apenas com a intenção de macaquear a classe média, é óbvio.

Por que eles não deixam seu egoísmo de lado e vão tratar de “entender a urbanização”, essa coisa de espírito aparentemente transcendental?  Por que eles não compreendem de uma vez por todas que basta retirarem os fechos de suas portas para poderem dormir tranquilos?

A maioria dos conjuntos entregues agora, como os da Nova Jaguaré, zona oeste, são cercados.  Em Itaquera, do outro lado da cidade, além de muros, os moradores instalaram portões com controle remoto para os carros.

Essa agora!  Já pensaram numa coisa dessas?  Portões com controle remoto, porca miséria!  Por que esses pobres não tratam de fazer algo realmente decente, como descer de seus carros, na chuva, para abrir manualmente seus portões?  Que negócio é esse de fazer uso de tecnologias modernas típicas da burguesia, e que nunca fizeram falta ao mundo civilizado dos de baixa renda?  Por que eles simplesmente não aceitam sua condição de pobreza perene e renunciam a esse conforto, como, a julgar pela lógica da denúncia, seria o correto a ser feito por qualquer cidadão de bem?

É muita folga desses emergentes!

“Era uma favela, transformada num conjunto habitacional de 296 apartamentos, ainda rodeado de pobreza.”

Tradução: os novos moradores desses apartamentos deveriam ter “consciência social” e entender o básico: todo mundo tem de ser igual.  Nada de uns terem mais que outros.  Nada de alguns poucos abastados rodeados de pobreza.  Como não dá pra todo mundo ser igualmente rico (afinal, vivemos em um mundo de escassez), que todos sejam igualmente pobres, então.

O susto e a exasperação contidos nessa reportagem são típicos de uma mentalidade que não entende o mais básico conceito de uma economia baseada na propriedade privada: dê liberdade a um grupo de pessoas vivendo dentro de uma área com direitos de propriedade estabelecidos, e elas rapidamente vão se organizar por conta própria, criando suas próprias regras dentro do espaço onde vivem.  É aquilo que Hayek chamou de ordem espontânea.  O arranjo daí emergente será o mais vantajoso possível para todos os envolvidos, dado que as regras foram adotadas voluntariamente.

E é justamente a ausência de uma coerção externa — ou o excesso de liberdade individual concedido — que deixou a mídia irritada.  Pobres não têm o direito de proteger aquilo que é seu.  Sua obrigação moral é a de mostrar desapego a tudo que possuem, pois afeto à propriedade seria um vício burguês.

Essa postura ostensivamente anti-pobres tem suas raízes mais explícitas ainda nas décadas de 1960 e 70, que foi quando os atuais professores universitários — esses que envenenam os graduandos com suas teses revolucionárias — eram ainda estudantes que romantizavam aquela Cuba igualitária, bem como a “qualidade de vida” da URSS e o “Grande Salto para Frente” (e seus 170 milhões de mortos) empreendido por Mao na China.

Naquele tempo, a ordem revolucionária era a de não ajudar os pobres, não dar esmolas — uma “alienação burguesa” — e tratá-los o mais humilhantemente possível.  A elite intelectual dizia que uma empregada doméstica, por exemplo, deveria ser confinada em um quarto minúsculo e, se possível, sob condições degradantes.  Somente sob essas condições é que os pobres iriam se organizar e criar um levante, levando a cabo a revolução redentora, finamente desapropriando a burguesia de todos os seus bens.

Passaram-se cinquenta anos e a revolução não veio (nos países em que veio, os pobres ficaram ainda mais pobres).  E, em nome desse ideal maior, três gerações de necessitados continuaram sendo mantidos na mais absoluta penúria, proibidos de receberam qualquer tipo de ajuda voluntária, tudo em prol da prioridade da revolução.

Agora que os pobres finalmente estão tendo a chance de ascender a um padrão de vida mais alto, os nostálgicos daquela época não se conformam.  Se os pobres adquirirem amor à propriedade, a chance de uma luta de classes nos velhos moldes estará praticamente extinta.

Pobreza e desigualdade

Entretanto, há uma outra abordagem possível.  Além da questão da propriedade, a inquietação demonstrada na reportagem está calcada na eterna dicotomia pobreza e desigualdade, os “grandes males” do país.  É curioso notar como os intelectuais sempre têm fórmulas simplistas para solucionar uma questão que é, no mínimo, milenar.   Pobreza e desigualdade sempre foram a norma em toda a história do mundo.  Porém, segundo os personagens citados pela reportagem, uma solução localizada seria apenas retirar os muros e as trancas, o que acabaria com a “segregação” e, por conseguinte, com a desigualdade.

É claro que se trata de uma visão absolutamente tacanha não só de economia, mas também principalmente de história.  Embora não seja minha intenção sair dando lições a essas pessoas citadas pela reportagem, um fato incontornável é que elas aparentam não ter o mínimo conhecimento da história daquilo que se propõem a combater.  Quando deixamos as paixões ideológicas de lado e nos colocamos a analisar friamente essa questão da pobreza e da desigualdade, vemos que ela é um pouco mais complexa do que nos fazem supor tais concepções de mundo ultrapassadas.  Acompanhe-me, por gentileza.

1) Até onde sabemos da história da humanidade, a desigualdade e a pobreza são as condições mais gerais e constantes por que passaram os seres humanos na terra.  Não são, de modo algum, anomalias temporais que aparecem, de vez em quando, em certos lugares que até então eram prósperos e igualitários. Tampouco são mutações que surgem após um período de riqueza geral e de justa distribuição de renda.

2) Antes da Revolução Francesa, no século XVIII, em nenhum lugar do mundo observou-se uma revolta geral e crescente contra qualquer tipo e forma de desigualdade social.  Tal revolta, a qual foi iniciada justamente na França, veio junto com a crença na possibilidade de existir uma sociedade totalmente planejada por uma elite de revolucionários clarividentes e sábios — o resultado, todos sabem, foram as diversas experiências socialistas, cujos níveis de miséria e desigualdade social foram ainda maiores que os vivenciados pelas gerações anteriores.

3) A promessa de eliminação da pobreza tendo o estado como agente solucionador é apenas um discurso puramente ideológico: não há nenhum mecanismo prático para lograr esse feito, a não ser a utilização daqueles meios que já foram criados pela própria expansão do capitalismo.  Ou seja: a ação direta do governo servirá apenas para acrescentar mais um elemento parasitário ao arranjo econômico, aumentando os custos de uma burocracia cada vez mais paralisante, intrusa e contraproducente.

4) No Brasil, a luta contra a pobreza e a desigualdade gerou um círculo vicioso extremamente danoso ao país, mas que poucos percebem: de um lado, a insatisfação radical contra esses males milenares se incorporou de tal modo à mentalidade coletiva, que acabou por gerar uma expectativa insana de soluções nacionais a prazos relativamente curtos; de outro lado, essa mesma expectativa serve para alimentar o crescimento de uma burocracia que suga para si própria grande parte dos frutos da renda nacional, retardando a distribuição dos seus benefícios justamente para aqueles que mais precisam.  Afinal, a pobreza é uma indústria e, em uma democracia, é sempre possível lucrar politicamente em cima dela.  Todo e qualquer ministério, programa ou secretaria criada pelo governo tem, em última instância, o objetivo de reduzir a pobreza e a desigualdade.

5) A prosperidade é o resultado da ambição de cada um, da inteligência, da energia, da disciplina, do talento, da responsabilidade, da habilidade e do conhecimento.  Quanto mais os indivíduos tiverem essas qualidades, mais irão progredir.  Quanto mais progredirem, maiores serão as desigualdades.  Consequentemente, lutar pelo fim das desigualdades não só é inútil, como também é contraproducente para o próprio desenvolvimento do país.

6) Aqueles que querem a igualdade material pensam que cabe ao estado instaurá-la.  Como dizia Roberto Campos, é fácil observar que os intelectuais de “esquerda” dividem a humanidade em três grupos: os desalmados, os desvalidos e os iluminados.  Os segundos, os pobres, são maltratados pelos primeiros, os ricos. E cabe aos terceiros — os próprios intelectuais de “esquerda” — intervir usando os poderes coercivos estatais para defender os bons dos maus e implantar a “justiça social” na Terra.  A contradição desse discurso igualitário é que sua implementação exige que um determinado grupo de iluminados seja incumbido da tarefa de igualar os outros grupos, detendo para tanto poderes exclusivos.  E isso, por si só, já inviabilizaria qualquer ideia de igualdade.

7) Em uma economia de mercado, na qual os melhores e mais capazes prosperam, acabar com a desigualdade é impossível.  Por outro lado, acabar com a pobreza é algo quase que inevitável.  Bastaria que o governo — não tributando, não gastando, não incorrendo em déficits e não regulamentando — permitisse a progressiva acumulação de capital por parte dos empreendedores capitalistas.  O resultado seria de tal grandeza que até o trabalho mais mal remunerado geraria renda mais do que suficiente para a subsistência.

Conclusão

Por mais escandaloso que seja, os pobres reconhecem que a propriedade é algo benéfico que deve ser protegido e muito bem cuidado.  Semelhantemente, as origens milenares da pobreza e da desigualdade não estão na existência da propriedade.  Muito pelo contrário: foi a definição dos direitos de propriedade que permitiu ao mundo sair do seu constante estado de penúria e escassez.

São dois os principais fatores que estimulam o desenvolvimento econômico: a razão e o reconhecimento de que o mundo opera de acordo com o princípio da causa e efeito

Sem esse último, a ciência e a tecnologia, por exemplo, jamais poderiam ser aprimoradas.  Já a influência da razão é o que torna um indivíduo uma pessoa dotada de responsabilidade própria, tornando-o um agente causal com o poder de melhorar a própria vida.  É essa combinação de ideias que produz nas pessoas a compreensão de que elas devem ser as responsáveis pelo próprio futuro.

Mais ainda: foi essa mesma combinação de ideias que forneceu as bases intelectuais para o estabelecimento e a ampliação dos direitos de propriedade.  Os direitos de propriedade baseiam-se no reconhecimento do mais básico princípio da causalidade: aqueles que produzem algo devem ter a motivação de poder se beneficiar dos efeitos daquilo que criam.  Ou seja: os direitos de propriedade se baseiam no reconhecimento de que um indivíduo tem o direito de se preocupar com seu progresso material.

E disso os pobres sabem melhor do que ninguém.

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