O artigo a seguir foi extraído do um boletim informativo mensal escrito para a empresa VOGA.
“A mão invisível do mercado está dando lugar à mão visível e frequentemente autoritária do capitalismo de estado”, escreveu a The Economist em janeiro deste ano em uma oportuna reportagem especial sobre a ascensão do capitalismo de estado nos países emergentes.
A Rússia, com seus oligarcas com estreitas relações com o governo, e a China, com suas centenas de empresas estatais, já são conhecidas por esta versão de capitalismo. O mesmo é válido para os xarifados ricos em petróleo e gás do Oriente Médio.
Mas o Brasil, uma democracia com 200 milhões de habitantes, faz pensar se o país de fato merece fazer parte deste seleto time de capitalistas estatais. E o fato é que, como corretamente apontado pela revista britânica, o governo brasileiro também sucumbe às tentações da mão visível do estado.
Seja adquirindo ações minoritárias em várias empresas privadas por meio do BNDESPar (a subsidiária do BNDES que investe diretamente em empresas privadas), seja concedendo empréstimos subsidiados para empresas com boas conexões políticas (também por meio do BNDES), ou exercendo forte influência sobre grandes corporações como a Vale (por meio dos poderosos fundos de pensões de estatais que detêm significativas parcelas de ações da empresa), o Leviatã brasileiro está longe de estar adormecido.
Toda esta introdução serve para nos trazer ao assunto deste artigo, qual seja, a evolução do crédito no Brasil, e, como sugere o título, como o estado não está deixando exclusivamente para o mercado a tarefa de decidir a alocação dos fundos. Porém, antes de prosseguirmos, vale a pena relembrar a recente história das instituições financeiras estatais no Brasil.
Bancos estatais e bancos controlados pelos estados
Não mais do que 15 anos atrás, 23 dos 25 estados do Brasil possuíam seu próprio banco. Fundados após a Primeira Guerra Mundial e ao longo de todo o século XX, sob o pretexto de fornecer financiamentos de longo prazo sempre que os bancos privados se recusassem a emprestar (ou fossem incapazes de conceder crédito em decorrência da alta inflação de preços ou do excessivo volume de crédito tomado pelos governos), estes bancos acabaram gerando severas atribulações fiscais e monetárias para o país.
O Banespa, no estado de São Paulo; o BANERJ, no estado do Rio de Janeiro; o Baneb, na Bahia; o Credireal, em Minas Gerais; e o Banestado, no Paraná, são apenas uma amostra destas instituições financeiras estatais. Os mais velhos certamente se lembram bem destes nomes infames.
Na teoria, todos estes bancos tinham o objetivo de gerar desenvolvimento para suas respectivas regiões. Na prática, a realidade foi totalmente diferente. Quantidades infinitas de empréstimos eram feitas para seus acionistas controladores — os próprios governos estaduais — sempre que as receitas de impostos se mostravam insuficientes para cobrir os gastos públicos. As várias empresas estaduais nos setores de telefonia, água e esgoto, rodoviário e de transporte também eram agraciadas com crédito destes bancos estaduais. Como era de se esperar, estes empréstimos frequentemente não eram quitados. Porém, o “risco de crédito” dos governos estaduais permanecia inalterado. Empréstimos adicionais iam sendo concedidos à medida que os antigos eram ou renegociados ou simplesmente cancelados.
Ao fim e ao cabo, a maioria destes bancos estaduais estava em um estado de completa insolvência. O Banco Central constantemente tinha de intervir e socorrer estas instituições, pois muitas eram consideradas “grandes demais para quebrar”. O ápice do caos ocorreu durante a década de 1980 e início da de 1990, sendo este arranjo um dos principais fatores que contribuíram para a hiperinflação que o país vivenciou naquela época.
Mas, e quanto ao crédito? O que dizer sobre o crédito de longo prazo? Será que os bancos estaduais de fato contribuíram para o desenvolvimento de suas respectivas regiões, objetivo este que era o principal pretexto de sua existência? É muito difícil responder positivamente a esta última pergunta.
Com relação ao crédito em si, pode-se afirmar com toda a certeza que os bancos estaduais cumpriram sua missão de fornecer financiamento. Crédito de longo prazo. Crédito de curto prazo. Crédito de qualquer prazo. Volumes pequenos e enormes. Absurdos e bizarros. Para seu próprio acionista. Para as empresas de seu acionista. Para tomadores de empréstimo de bom histórico e de péssimo histórico, igualmente. Tudo isto foi o inevitável resultado de um sistema bancário estatal operando sob difusos e predominantes conflitos de interesse, pessimamente gerenciado, guiado não pela busca pelo lucro mas sim por objetivos políticos.
De 1988 até a introdução do real em julho de 1994, o crédito concedido por instituições financeiras estatais, não surpreendentemente, representou 64% do crédito total concedido. Afinal, era impossível um banco privado superar competitivamente um banco público que concedia crédito temerariamente.
O país logo percebeu que o crédito não podia ser criado do nada, sem que houvesse uma poupança anteriormente formada para sustentar sua criação. Tomadores de empréstimos com histórico ruim são considerados “ruins” por um motivo: sua incapacidade financeira de quitar uma dívida.
Com a transição para a nova moeda, o real, rapidamente surgiu a necessidade de se reestruturar completamente os bancos estaduais. Uma legislação aprovada em 1996 deu início a este processo, no qual o Ministério da Fazenda instituiu o PROES (Programa de Incentivo à Redução do Setor Público Estadual na Atividade Bancária). Seu objetivo era liquidar, trazer solvência ou privatizar os bancos estaduais.
Ao final do programa, em 2002, após nove privatizações bancárias e várias liquidações, a participação do crédito do setor financeiro estatal não representava mais do que 38% do crédito total concedido. E por que tal participação não era ainda menor? Porque alguns importantes bancos estaduais continuaram operando, como o Banrisul e o BRB (Banco de Brasília).
Embora práticas de mercado houvessem sido adotadas (o Banrisul até mesmo abriu seu capital na Bovespa), tais bancos ainda são controlados por seus respectivos governos estaduais; logo, são gerenciados de acordo com conveniências políticas. E o mesmo é válido para os bancos federais — Banco do Brasil e Caixa Econômica Federal — e para o banco nacional de desenvolvimento, o BNDES. Estas gigantescas instituições financeiras ainda moldam uma considerável fatia da economia brasileira atualmente.
O que nos leva para a próxima seção, na qual faremos algumas constatações sobre a evolução do crédito.
Crédito “público” ganhando ímpeto
Analisando o gráfico 1 abaixo, é possível ver claramente o comportamento oposto entre o crescimento do crédito privado e o crescimento do crédito “público” nos últimos anos — especialmente desde 2008, quando houve um virtual “sufocamento do crédito” oriundo dos bancos privados, e o estado entrou vigorosamente em cena despejando dinheiro de estímulo (leia-se BNDES) de modo a mais do que compensar a tendência de queda do crédito privado.
Crédito dos bancos públicos em vermelho e crédito dos bancos privados em cinza
Figura 1: Crescimento anual do crédito total — Fontes: BACEN e VOGA
No ano seguinte, 2009, os bancos privados mantiveram sua postura cautelosa. Somente em 2010 é que vimos a retomada do crescimento do crédito privado na economia.
A alta expansão monetária de 2010, que levou a um crescimento recorde do PIB de 7,5%, culminou em uma inflação de preços acima da meta em 2011, bem como em um aumento da taxa de inadimplência ao longo daquele ano. Adicionalmente, a Europa e as tribulações de sua dívida soberana contribuíram para boa parte da turbulência nos mercados. Os eventos de 2011 renovaram as preocupações com relação ao estado da economia mundial.
Sob este cenário, os bancos privados no Brasil, sempre sujeitos ao implacável teste dos lucros e prejuízos (na realidade, nem tão implacável assim quando se leva em consideração o papel do BACEN como emprestador de última instância), não tiveram opção a não ser moderar o ritmo do crescimento do crédito em decorrência do superaquecimento da economia nacional e do trôpego estado das nações desenvolvidas.
Porém, os planejadores centrais em Brasília não suportam a ideia de deixar o mercado se reajustar sozinho. Eles têm de intervir sempre, fornecendo crédito farto e barato. E foi exatamente isso o que testemunhamos nos últimos meses de 2011. O crédito público ganhou impulso, ao passo que as instituições financeiras privadas se abstiveram de conceder ainda mais empréstimos para uma economia já bem alavancada.
Embora o BNDES seja o notório financiador das grandes empresas, os bancos federais também possuem sua fatia. Mas por que o estado deve interferir nos mercados de crédito? Oficialmente, por causa da incapacidade ou da relutância dos bancos privados em fornecer financiamento de longo prazo para a economia.
O problema com este raciocínio é que ele é bem aceito pela maioria dos empresários e empreendedores, que gostam de crédito farto e barato. O governo, consequentemente, passa a ser considerado o redentor do crescimento econômico, e não seu empecilho.
Independentemente de inclinações políticas, não podemos nos abster da enfatizar o seguinte ponto: o senso comum alega que o livre mercado é incapaz de (ou não quer) fornecer financiamentos de longo prazo, de modo que o estado deve intervir para corrigir esta “falha de mercado”. Aos adeptos desta crença, vale relembrá-los que o atual sistema financeiro é completamente controlado e organizado pelo estado e por seu banco central. Sendo assim, se tal sistema é incapaz de fornecer financiamentos de longo prazo, temos então um bom exemplo de fracasso da intervenção estatal — e a culpa deve ser debitada completamente nele, e não no livre mercado.
Portanto, embora seja conceitualmente errado, o crédito estatal é justificado como sendo uma maneira de corrigir uma suposta falha de mercado. Mas, como acabamos de argumentar, tal justificativa é, no mínimo, altamente contestável. Por outro lado, uma questão que já não mais tem como ser contestada é o fato de que a concessão de crédito pelo governo representa mais uma poderosa maneira de ele exercer seu poder sobre a economia. Citando novamente a The Economist, trata-se da “mão visível do estado”.
Uma tendência preocupante
E não dá para negar que esta mão está ficando cada vez mais visível, como claramente mostra a figura 2.
A área cinza mostra o total de crédito concedido; a linha vermelha mostra qual a porcentagem deste volume de crédito é composta por crédito estatal.
Figura 2: Quem está emprestando? — Fontes: BACEN e VOGA
A fatia dos bancos públicos no crédito total está em níveis não vistos desde 2000, antes do final do PROES. O objetivo deste programa era especificamente o de reduzir a presença do estado no setor bancário. “Privatizar” o sistema bancário e, consequentemente, o crédito. O que estamos vendo agora é exatamente o oposto daquela tendência. De certa forma, trata-se da reestatização do crédito.
Não obstante, existem diferenças óbvias entre o financiamento dos bancos estatais na década de 1990 e os atuais. Naquela época, o crédito era concedido majoritariamente para os governos estaduais e para as empresas estatais. A lógica econômica por trás daqueles empréstimos era totalmente nula. Adicionalmente, tudo funcionava como uma assistência fiscal direta aos estados. Os incentivos econômicos eram extremamente perversos. Um banco estatal emprestando para uma empresa estatal é a combinação perfeita para o desperdício. Aquele não se importa muito se a dívida será quitada ou não; este possui poucos incentivos para investir sensatamente. Ambos usufruem a sempre implícita garantia do socorro estatal.
No presente, estamos lidando com uma parte destes problemas. Os recebedores do crédito estatal agora são empresas privadas, de grandes a pequenas, e cidadãos brasileiros. Contrariamente às empresas estatais, empresas privadas não podem se entregar gostosamente à gastança desmesurada. Por outro lado, bancos estatais certamente podem se dar ao luxo de emprestar com pouca prudência.
O principal problema com o crédito fornecido por instituições financeiras estatais é que ele pode gerar investimentos insustentáveis em determinados setores, com o risco de causar um ciclo econômico de máxima intensidade caso a expansão creditícia seja mais acentuada.
Em vez de simplesmente destruir capital, como ocorria na década de 1990, o risco da atual expansão creditícia é alterar e distorcer a alocação de capital na economia, fazendo com que ela seja ineficiente e insustentável. Sendo assim, os desequilíbrios podem até demorar um pouco mais para serem formados, mas, no devido tempo, os problemas surgirão. Esta é a inevitável consequência de quando a política pública determina onde os fundos devem ser investidos: alocação errônea e insustentável do capital.
Talvez o mais incisivo e recente exemplo de uma maciça alocação errônea e insustentável de capital seja a bolha imobiliária americana que estourou em 2006/2007. Não coincidentemente, a política do governo americano foi o principal fato gerador do desastre imobiliário. Por meio das agências Fannie Mae e Freddie Mac — duas enormes empresas apadrinhadas pelo governo (empresas privadas que contavam com implícitas garantias de socorro por parte do governo) e responsáveis por fornecer financiamentos imobiliários baratos —, da política declarada do ex-presidente George W. Bush de aumentar o número de proprietários de imóveis, e das baixas taxas de juros estipuladas pelo Federal Reserve, uma enorme bolha foi formada. Seus efeitos ainda são sentidos até hoje na economia americana.
No Brasil, a Caixa Econômica Federal, um banco estatal, é a principal fonte do financiamento imobiliário, responsável por praticamente 75% de todo o crédito imobiliário pendente. Porém, em comparação com outros mercados desenvolvidos, ainda há um longo caminho para que a alavancagem se torne uma questão problemática. O crédito total em relação ao PIB ainda está abaixo dos 50%, ao passo que o crédito imobiliário constitui não mais do que 5%. No entanto, o sistema se alavancou de maneira bastante veloz nos últimos anos. E não há nada melhor para ilustrar este ponto do que o comportamento das famílias brasileiras, que estão se alavancando aceleradamente. Ao olhar a figura 3, vemos que a tendência de crescimento do endividamento das famílias em relação à renda acumulada nos últimos 12 meses não mostra nenhum sinal de arrefecimento.
Figura 3: Famílias brasileiras se alavancando — Fontes: BACEN e VOGA
É necessário enfatizar que o ponto de partida foi substancialmente baixo, especialmente quando comparado às nações desenvolvidas. Não mais do que seis anos atrás, as famílias brasileiras alocavam menos de 20% de sua renda para endividamento. Em novembro de 2011, este valor já havia chegado a 42,5%. Talvez ainda não seja motivo de grandes preocupações no momento, mas certamente se trata de um índice que deve ser monitorado de perto.
Outro nocivo subproduto desta preocupante tendência é o efeito colateral que ela pode gerar no campo fiscal. A implícita garantia de socorro pode certamente gerar fardos orçamentários no futuro, exatamente o que ocorreu na década de 1990. Injeções de capital pelo estado podem se revelar necessárias a fim de se evitar a insolvência dos bancos públicos. No extremo, dependendo da intensidade do ciclo do crédito, mesmo empresas e bancos privados podem vir a ser socorridos pelo governo, exatamente como foi feito nos EUA, na Espanha, na Irlanda e no Reino Unido (um dos principais culpados pela crise da dívida soberana de 2011 foi a maciça assunção de dívida privada pelos governos centrais). No entanto, no caso do Brasil, este cenário parece estar ainda alguns anos mais distante.
Conclusão
O Brasil está na contramão dos eventos. Enquanto ainda estamos nos alavancando, as nações desenvolvidas já estão se desalavancando. O ciclo do crédito no país está apenas no início. O principal ponto aqui desenvolvido é que, infelizmente, uma enorme fatia deste crédito está sendo conduzido pelo setor financeiro estatal. Mais ainda, a fatia do crédito estatal no crédito total vem apresentando, como mostra a figura 2, um acentuado crescimento.
Como tudo isso irá se desenrolar no futuro é algo que não podemos prever, pois vai depender da política, e não da economia.
Será que os padrões de concessão de crédito serão afrouxados para acomodar mais empréstimos ao mercado imobiliário? Talvez os pagamentos de entrada passem a ser considerados desnecessários, exatamente como fizeram os concessores de empréstimos durante a bolha imobiliária americana. Podemos apenas especular.
Contudo, a política jamais poderá invalidar e abolir as leis econômicas. Não importa quanto crédito seja criado pelo sistema: sem que haja uma poupança prévia, os investimentos não poderão ser consumados. Sem produção e, consequentemente, sem renda, o déficit imobiliário não poderá ser reduzido pela mera criação artificial de crédito.
Muito tem se falado sobre este suposto déficit imobiliário e a consequente demanda por imóveis. Mas uma demanda real só pode ser criada por uma renda real. E uma renda real só aumenta se houver um aumento da produtividade, que, por sua vez, é uma consequência de maiores investimentos. E, para investir, é preciso poupar. Todo o processo começa pela poupança. Inverter a ordem natural das coisas é uma receita certa para o desarranjo econômico.
Ludwig von Mises certa vez escreveu que “a história econômica é um longo registro de políticas governamentais que fracassaram porque foram concebidas com uma impertinente desconsideração pelas leis da economia”. Bancos estatais, por definição, operam desconsiderando as leis econômicas. A história econômica do Brasil é repleta de episódios de má gestão de bancos estatais. É desanimador constatar que estamos embarcando novamente nesta jornada.