Situações de crise costumam suscitar o debate sobre a idoneidade de governos compostos por especialistas ou técnicos. Em cenários deste tipo, diz-se que é desejável um governo “forte” com unidade de comando que dirija e coordene de forma centralizada os esforços da sociedade para a superação do problema ou problemas. A legitimação epistêmica do Estado seria que é formado por pessoas que têm um conhecimento mais profundo dos problemas sociais e, consequentemente, devem ser capazes de enfrentá-los de forma mais precisa e, portanto, alcançar resultados mais eficazes do que se fossem abordados por diletantes. Mesmo autores que se definem como libertários, como Jason Brennan em seu livro Contra a Democracia, parecem justificar teses análogas, no sentido de que argumentam que aqueles com as melhores credenciais acadêmicas são os únicos que têm a capacidade de votar, e que a ponderação do voto destes é superior, de modo que que seus votos valem mais do que os supostamente ignorantes.
Em ambos os casos, tanto a direção política do país quanto sua legitimidade devem ser confiadas apenas àqueles com comprovada capacidade técnica. A ideia é que assim o Estado se despolitizasse e se reduzisse à mera administração e gestão de serviços mínimos vitais. Tecnocratas americanos da década de 1920, como King Gillette, famoso fabricante de utensílios de barbear e um dos líderes do movimento, sonhavam com uma espécie de governança corporativa, em que empresas dirigidas por gestores inspirados nos princípios da a administração científica tayloriana estaria encarregada de dirigir a sociedade. Certamente, essas empresas também monopolizariam a violência, a justiça, as obras públicas e outras funções consideradas essenciais de um Estado moderno. Simplesmente se pararia de discutir questões “políticas” e o governo se concentraria em administrar as coisas. Seria um governo de gerentes e especialistas.
O problema seria determinar quais seriam os propósitos aos quais os especialistas devotariam sua atividade, ou seja, quais seriam os objetivos finais de tal atividade despolitizada. Aqui já encontramos alguns problemas. Os fins geralmente são o desenvolvimento econômico, seja o que for que isso signifique, ou a modernização social ou política, outro significante vazio, como diriam os camaradas do Partido Socialista. São objetivos ambíguos que historicamente consistiram, pelo menos em nosso país, em industrializar o país, aumentar o PIB e imitar na esfera política o comportamento das chamadas democracias avançadas. Hoje, consiste mais ou menos em executar as diretrizes e modelos de ajuste traçados pelas grandes instituições econômicas internacionais. O problema é que os próprios objetivos do especialista tendem a ser políticos também. Desenvolvimento ou progresso a qualquer custo são valores ideológicos, como bem demonstrou o antigo conservador-libertário Robert Nisbet em seu brilhante Social Change and History, no qual estuda as origens ideológicas do desejo ocidental de progresso.
Tão legítimo quanto o progresso é preservar o que existe ou mesmo buscar modelos no passado, como afirmam os reacionários. E assim como o progresso e o desenvolvimento podem ser bons e desejáveis para alguns, podem não ser para outros e, portanto, não é legítimo obrigá-los a se submeter a esses princípios, muito menos obrigá-los a financiá-los. No caso de pandemias, os especialistas parecem se concentrar em objetivos análogos, como achatar a curva de infecção (de modo essencialmente igual ao achatamento de curvas que os especialistas estatistas em economia defendem), sem considerar as consequências dessas decisões que recaem sobre muitas pessoas reais e sem discriminar situações específicas. A política é desumanizada e as decisões levam em consideração apenas dados abstratos que podem ser manipulados para atingir o fim. O ser humano é assim despersonalizado e torna-se apenas um dado que, somado a algumas estatísticas, indicará se os fins desejados foram alcançados ou não.
Outro problema para os especialistas é determinar quem é ou não um especialista e segundo quais critérios. Qualquer pessoa que conviva em universidades ou instituições científicas sabe como isso é difícil. Alguém pode saber muito sobre algo errado. Para um ateu, um especialista em teologia erudita não teria valor como tal, uma vez que o que ele sabe não tem valor para ele. Para um austríaco, um marxista, mesmo reconhecendo sua erudição sobre o assunto, dificilmente pode ser um guia para sair de uma crise, e suponho que vice-versa, já que parte de um preconceito sobre a natureza do conhecimento do outro. Conheço o mundo das ciências naturais superficialmente, mas quando ouço meus colegas das faculdades de ciências, observo que há divergências entre eles por motivos que me escapam (assim como eles estranham nossas discussões e posições sobre a reserva fracionária) e muitos não consideram que o conhecimento do outro seja elevado. Não há, portanto, uma forma objetiva de estabelecer quem seria o especialista; e o que há é uma mistura de um mínimo de reputação, pelo menos dentro do próprio grupo, e de designação estatal entre aqueles que atendem ao requisito anterior. Mas o simples fato de ser escolhido pelo Poder Público tende a reforçar a reputação de perito do designado.
Quem conhece a universidade ou o mundo dos cientistas sabe que a influência externa é um dos fatores determinantes de influência dentro da própria instituição. E mais ainda se o especialista designado tiver recursos financeiros ou simbólicos para distribuir, já que o especialista designado é também aquele que pode ter a capacidade de determinar quais áreas de pesquisa devem ser as principais e quais são os requisitos de qualidade necessários para acessar esses recursos. O especialista passa a fazer parte do aparato político e ganha muita ascendência entre os seus, além de presença na mídia e capacidade de organizar conferências ou qualquer tipo de encontro de pesquisadores.
Vemos então que a própria decisão política, provavelmente influenciada por interesses políticos, é uma parte fundamental para determinar quem é ou não um especialista. A escolha do painel de especialistas não tem de ser necessariamente por motivos ideológicos ou partidários, mas porque as teorias defendidas pelo especialista coincidem com as ideias sobre políticas públicas defendidas pelo governo. Se um governo, por exemplo, se interessa pelo combate às mudanças climáticas, é normal que ele escolha entre os cientistas que defendem posições a favor desse combate e os encaminhe a instituições internacionais ou os coloque na diretoria de institutos de pesquisa. E se não se interessa por isso, fará o mesmo escolhendo seus opositores. Isso não implica necessariamente em corrupção por parte do especialista. Antes de ser escolhido, quase sempre defendia essas posições, só que agora o faz com mais meios e com uma marca de oficialidade.
Outro problema que um governo de especialistas pode enfrentar é o de selecionar as áreas em que sua assistência é necessária. Qualquer situação problemática ou qualquer decisão política pode requerer o auxílio de especialistas, mas além de selecionar quem também é muito importante determinar em quê. Muitas áreas podem ser relevantes na gestão de uma pandemia, por exemplo, mas quais devem ser as áreas prioritárias é menos claro. Na pandemia, precisamos de virologistas, microbiologistas, especialistas em saúde pública, médicos especialistas e especialistas em economia, logística e gestão de crises políticas, entre outros especialistas. Cada um verá o problema do seu ponto de vista e priorizará as medidas de política que melhor conhece e que favorecem a sua perspectiva sobre o assunto. Assim, podemos ver como alguns desejam derrotar o vírus clinicamente ou medicamente a todo custo, enquanto outros estarão mais preocupados com o prejuízo econômico.
Como pesar os dois pontos de vista? Não é possível. Numa sociedade sem Estado, tal escolha não seria necessária, pois muito provavelmente cada comunidade já tomou essa decisão no passado e quem se estabelece em cada uma delas já conhece as condições em que um ou outro valor será protegido e será escolhido, portanto, os especialistas adequados às suas preferências. Em uma sociedade estatista, quem detém o poder decidirá, de acordo com suas preferências, as prioridades a serem atendidas e, em seguida, os especialistas da área selecionada, que irão orientar ou aconselhar as políticas. Mas em nenhuma circunstância pode-se dizer que há um critério de seleção “científico” ou “técnico” além do critério de poder político. Mesmo em sistemas burocráticos como o nosso, em que certos cargos especializados são escolhidos por meio de concurso ou exame, permanece a questão de quem perfila o cargo (ou seja, quem determina quais áreas são ou não relevantes) e quem determina o tribunais de seleção e com que critérios. Ou seja, um governo de pressupostos técnicos acabaria por ser apenas uma máscara que esconde o poder de outros grupos ou o reflexo das relações de poder dentro do grupo de técnicos, caso se tornem um grupo dominante dentro do aparato estatal, como é o caso em muitos estados modernos (isso exigiria um desenvolvimento mais detalhado, que faremos em um artigo posterior).
Pois bem, a questão que se pode colocar é que, se não são os tecnocratas quem acaba por tomar as decisões, qual seria a lógica de lhes atribuir um papel tão importante no processo de formulação das políticas públicas? A resposta parece ser clara, porque evita responsabilidades e porque dá legitimidade às decisões que os políticos já adotaram anteriormente. Um livro maquiavélico, pouco divulgado entre nós, The Blame Game de Christopher Hood, explica que o projeto das administrações públicas é amplamente pensado para evitar a culpa e a responsabilidade. O papel dos especialistas na disputa política parece atender bem a esses princípios. Em caso de fiasco ou fracasso, o político que souber usar como escudo o papel de seus próprios especialistas, ou de especialistas em geral (conhecido como “ciência”) tem pouco a perder, assim como o especialista que, na pior das hipóteses, retornará ao seu local de origem sem maiores consequências, pois não terá que se submeter a nenhum tipo de responsabilidade. Em segundo lugar, o conselho do especialista fornece peso argumentativo ao justificar uma determinada decisão. Não esqueçamos que as decisões políticas devem ser justificadas de alguma forma, e que no mundo das políticas públicas, na maioria dos casos, a decisão é primeiro decidida e depois a decisão é justificada com argumentos técnicos. Nessa competição por justificativa, a qualidade do especialista é mais um trunfo no jogo político (G. Majone, Evidência, argumentação e persuasão na formulação de políticas) e não um dos menos.
Não é surpreendente, então, que o papel dos especialistas, embora eu entenda que eles não sejam dominantes, tenha se fortalecido muito em tempos de crise. E não seria surpreendente se no futuro fosse ainda mais.
Artigo original aqui.