A vidraça quebrada

0

[Extraído do primeiro capítulo do livro Frédéric Bastiat, do ensaio O que se vê e o que não se vê]

Será que alguém presenciou o ataque de raiva que acometeu o bom burguês Jacques Bonhomme[1], quando seu terrível filho quebrou uma vidraça?  Quem assistiu a esse espetáculo seguramente constatou que todos os presentes, e eram para mais de trinta, foram unânimes em prestar solidariedade ao infeliz proprietário da vidraça quebrada: “Há males que vêm para o bem.  São acidentes desse tipo que ajudam a indústria a progredir.  É preciso que todos possam ganhar a vida.  O que seria dos vidraceiros, se os vidros nunca se quebrassem?”

Ora, há nessas fórmulas de condolência toda uma teoria que é importante captar-se flagrante delito, pois é exatamente igual àquela teoria que, infelizmente, rege a maior parte de nossas instituições econômicas.

Supondo-se que seja necessário gastar seis francos para reparar os danos feitos, pode-se dizer, com toda justeza, e estou de acordo com isso, que o incidente faz chegar seis francos à indústria de vidros, ocasionando o seu desenvolvimento na proporção de seis francos.  O vidraceiro virá, fará o seu serviço, ganhará seis francos, esfregará as mãos de contente e abençoará no fundo de seu coração o garotão levado que quebrou a vidraça.  Éo que se vê. 

Mas se, por dedução, chegamos à conclusão, como pode acontecer, de que é bom que se quebrem vidraças, de que isto faz o dinheiro circular, de que daí resulta um efeito propulsor do desenvolvimento da indústria em geral, então eu serei obrigado a exclamar: Alto lá!  Essa teoria pára naquilo que se vê, mas não leva em consideração aquilo que não se vê. 

Não se vê que, se o nosso burguês gastou seis francos numa determinada coisa, não vai poder gastá-los noutra! Não se vê que, se ele não tivesse nenhuma vidraça para substituir, ele teria trocado, por exemplo, seus sapatos velhos ou posto um livro a mais em sua biblioteca.  Enfim, ele teria aplicado seus seis francos em alguma outra coisa que, agora, não poderá mais comprar.

Façamos, pois, as contas da indústria em geral. 

Tendo sido quebrada a vidraça, a fabricação de vidros foi estimulada em seis francos; é o que se vê. 

Se a vidraça não tivesse sido quebrada, a fabricação de sapatos (ou de qualquer outra coisa) teria sido estimulada na proporção de seis francos; é o que não se vê. 

E se levássemos em consideração o que não se vê por ser um fato negativo, como também o que se vê, por ser um fato positivo, compreenderíamos que não há nenhum interesse para a indústria em geral, ou para o conjunto do trabalho nacional, o fato de vidraças serem quebradas ou não.

Façamos agora as contas de Jacques Bonhomme

Na primeira hipótese, a da vidraça quebrada, ele gasta seis francos e tem, nada mais nada menos que antes o prazer de possuir uma vidraça.

Na segunda hipótese, aquela na qual o incidente não ocorreu, ele teria gastado seis francos em sapatos e teria tido ao mesmo tempo o prazer de possuir um par de sapatos e também uma vidraça.

Ora, como Jacques Bonhomme faz parte da sociedade, deve-se concluir que, considerada no seu conjunto, e fazendo-se o balanço de seus trabalhos e de seus prazeres, a sociedade perdeu o valor relativo à vidraça quebrada.

Daí, generalizando-se, chega-se a esta conclusão inesperada: “A sociedade perde o valor dos objetos inutilmente destruídos” — e se chega também a este aforismo que vai arrepiar os cabelos dos protecionistas: “Quebrar, estragar, dissipar não é estimular o trabalho nacional”, ou mais sucintamente: “Destruição não é lucro”.

Que dirão vocês, pessoal do Moniteur Industrieisl?[2]  E vocês, adeptos deste bom Senhor Saint-Chamans[3], que calculou com tanta precisão o que a indústria ganharia com o incêndio de Paris, levando em conta as casas que seria necessário reconstruir?

Lamento ter que desmoralizar esses cálculos engenhosos, tanto mais porque estão influenciando o espírito de nossos legisladores.  E insisto para que tais cálculos sejam considerados levando-se em conta o que não se vê e o que se vê. 

É preciso que o leitor aprenda a constatar que não há somente dois, mas três personagens no pequeno drama que acabei de apresentar.  Um deles, Jacques Bonhomme, representa o consumidor reduzido a ter, por causa da destruição, um só prazer em vez de dois.  O outro, sob a figura do vidraceiro, nos mostra o produtor para quem o incidente estimula a indústria.  O terceiro é o sapateiro (ou outro industrial qualquer) cujo trabalho é desestimulado também pelas mesmas razões.  É esse terceiro personagem que sempre se mantém na penumbra e que, personificando aquilo que não se vê, é peça fundamental do problema.  É ele que nos faz compreender o quanto é absurdo afirmar-se que existe lucro na destruição.  É ele que logo nos ensinará que não é menos absurdo procurar-se lucro numa restrição, já que esta é também, no final das contas, uma destruição parcial.

Por isso, indo-se à raiz de todos esses argumentos favoráveis às medidas restricionistas, não se encontrará outra coisa senão a paráfrase deste velho dito popular: “O que seria dos vidraceiros, se os vidros nunca se quebrassem?” .

 


[1] N. do T.- Jacques Bonhomme, em francês, nome usado como “João da Silva” em português, representa o homem comum do povo, probo, responsável.

[2] N. do T.- Jornal da Comissão de Defesa da Indústria Doméstica, organização protecionista da época.

[3] N. do T.- Auguste, visconde de Saint – Chamans (1777-1861), deputado e conselheiro de estado na época da Restauração, protecionista e partidário da balança comercial.  O fato citado por Bastiat tem origem no conto publicado por Saint-Chamans intitulado “Novo tratado sobre a riqueza das nações”, de 1824.  Este trabalho foi posteriormente incorporado (1852) ao seu Tratado de economia política.

DEIXE UMA RESPOSTA

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui