Capítulo XI. Valoração em cálculo
TERCEIRA PARTE
CÁLCULO ECONÔMICO
XI. VALORAÇÃO SEM CÁLCULO
1. A gradação dos meios
O agente homem transfere, para os meios, a valoração dos fins que pretende atingir. Mantidas inalteradas as demais circunstâncias, atribui ao montante total dos vários meios o mesmo valor que atribui ao fim que aqueles meios têm condições de ocasionar. Por ora não precisamos considerar o tempo necessário à produção do fim desejado e a sua influência sobre a relação entre o valor dos fins e o dos meios.
A gradação dos meios, da mesma forma que a dos fins, é um processo de preferir a a b. Implica em preferir e rejeitar. É manifestação de um julgamento desejar a mais intensamente do que b. Possibilita a aplicação de números ordinais, mas não a de números cardinais, nem as operações aritméticas que neles se baseiam. Se alguém me oferece a possibilidade de escolher entre três bilhetes que dão direito de assistir às óperas Aída, Falstaff e La Traviata, e, só podendo pegar um, prefiro Aída, ou, podendo pagar mais um, prefiro em seguidaFalstaff, terei feito uma escolha. Isto significa: em determinadas condições, eu prefiro Aída e Falstaff a La Traviata; se só pudesse escolher uma delas, preferiria Aída e renunciaria a Falstaff. Chama-se o bilhete paraAída de a, o para Falstaff de b e o para La Traviata de c, posso dizer: eu prefiro a a b e b a c.
O objetivo imediato da ação é frequentemente a aquisição de um suprimento de coisas tangíveis, contáveis e mensuráveis. Assim sendo, o agente homem tem de escolher entre quantidades contáveis; prefere, por exemplo, 15r a 7p; mas se tivesse de escolher entre 15r e 8p, poderia preferir 8p. Podemos enunciar esta situação dizendo que o agente homem atribui a 15r um valor menor do que 8p e maior do que 7p. Isto equivale à constatação de que prefere a a b e b a c. A substituição de 8p por a, de 15r por b e de 7p por c não altera o significado da constatação feita nem o fato que ela descreve. Isto certamente não torna possível o cálculo com utilização de números cardinais. Não possibilita o cálculo econômico nem as operações mentais baseadas nele.
2. A ficção da troca na teoria elementar do valor e dos preços
A formulação da teoria econômica é tão intrinsecamente dependente dos processos lógicos de cálculo que os economistas não chegaram a perceber o problema fundamental implícito na questão cálculo econômico. Estavam propensos a considerá-lo como algo evidente em si mesmo; não percebiam que o cálculo econômico não é um dado irredutível, mas algo que pode ser reduzido a fenômenos mais elementares. Equivocaram-se em relação ao cálculo econômico. Tomaram-no como uma categoria de toda ação humana e ignoraram o fato de que é apenas uma categoria inerente à ação em circunstâncias especiais. Tinham plena consciência do fato de que a troca interpessoal e, consequentemente, a troca efetuada no mercado utilizando um meio comum — a moeda e, portanto, os preços — são características especiais de certo estágio da organização econômica da sociedade que não existia nas civilizações primitivas e que poderá desaparecer mais adiante no curso das transformações históricas.[1] Mas não chegavam a compreender que os preços expressos em moeda são o único veículo do cálculo econômico. Por isso, a maior parte de seus estudos tem pouca utilidade. Mesmo os escritos dos economistas mais eminentes são, numa certa medida, viciados pelas falácias implícitas nas suas ideias acerca do cálculo econômico.
A teoria moderna do valor e dos preços mostra como as escolhas dos indivíduos, sua preferência por certas coisas e rejeição por outras, resultam no campo da troca interpessoal, no surgimento dos preços de mercado.[2] Estas demonstrações magistrais são insatisfatórias em alguns pontos menores e desfiguradas por expressões inadequadas. Mas, na essência, são irrefutáveis. Na medida em que seja necessário emendá-las, isto deve ser feito através de uma elaboração consistente das ideias fundamentais de seus autores e não pela refutação de seu raciocínio.
Para poder rastrear os fenômenos de mercado até a categoria universal da preferência de a a b, a teoria elementar do valor e preços é obrigada a usar algumas construções imaginárias. O uso de construções imaginárias, às quais nada corresponde no mundo real, é uma ferramenta indispensável do pensamento. Nenhum outro método contribuiria para uma melhor compreensão da realidade. Não obstante, um dos maiores problemas da ciência consiste em evitar as falácias que o emprego inadequado dessas construções pode acarretar.
A teoria elementar do valor e dos preços, além de outras construções imaginárias de que trataremos mais tarde,[3] recorre à construção de um mercado no qual todas as transações são efetuadas por troca direta. Não há moeda; os bens e serviços são trocados diretamente por outros bens e serviços. Esta construção imaginária é necessária. Deixando de lado o papel intermediário representado pela moeda, podemos compreender melhor que, no fundo, o que é trocado são sempre bens de primeira ordem por outros bens da mesma ordem. A moeda não é mais do que um meio de troca interpessoal. Mas devemos prevenir-nos cautelosamente contra os erros a que esta construção de um mercado de troca direta pode facilmente conduzir.
Um erro crasso que deve sua origem e sua persistência a esta construção imaginária foi supor que o meio de troca é apenas um fator neutro. Segundo essa suposição, a única diferença entre troca direta e indireta consistia em que, nesta última, era usado um meio de troca. A introdução de moeda na transação, diziam, não afeta as características principais da operação. Não se ignorava o fato de que ao longo da história ocorreram enormes alterações no poder de compra da moeda e que tais alterações frequentemente convulsionavam todo o sistema de trocas. Mas acreditava-se que tais eventos eram excepcionais, causados por políticas inadequadas. Somente a “má” moeda, diziam, pode produzir tais perturbações. Ademais, as pessoas não compreendiam as relações de causa e efeito desses distúrbios. Admitiam tacitamente que as mudanças no poder de compra ocorriam em relação a todos os bens e serviços, ao mesmo tempo, e na mesma proporção. É isso, certamente, o que está implícito na fábula da neutralidade da moeda. Sustentava-se que toda a teoria cataláctica podia ser elaborada sobre a pressuposição de que só existe troca direta. Uma vez que fosse elaborada esta teoria, bastaria “simplesmente inserir” a moeda no conjunto de teoremas relativos à troca direta. Entretanto, esta complementação final do sistema cataláctico era considerada como sendo sem importância. Não se acreditava que pudesse alterar algo de essencial na estrutura do estudo de economia. A tarefa principal da economia era concebida como o estudo da troca direta. Além disso, o mais que poderia interessar era o exame dos problemas suscitados pela “má” moeda.
Conformados com esta tese, os economistas negligenciaram a importância do correto exame dos problemas da troca indireta. Seu exame dos problemas monetários era superficial; ligava-se apenas vagamente ao corpo principal dos seus estudos do funcionamento do mercado. Por volta do início do século XX, os problemas de troca indireta estavam relegados a um lugar secundário. Havia tratados de cataláxia que lidavam apenas incidental e sumariamente com assuntos monetários, e havia livros sobre moeda e sistema bancário que sequer tentavam integrar esse tema no conjunto do sistema cataláctico. Nas universidades dos países anglo-saxônicos, havia cadeiras separadas para economia e para moeda e sistema bancário; e na maior parte das universidades alemãs os problemas monetários eram quase que totalmente desprezados.[4] Só mais tarde os economistas perceberam que alguns dos mais importantes e mais complicados problemas catalácticos se situam no campo da troca indireta e que uma teoria econômica que não lhes dê a devida atenção é lamentavelmente incompleta.
O despertar do interesse pelas investigações concernentes à relação entre a “taxa natural de juro” e a “taxa monetária de juros”, a ascendência da teoria monetária do ciclo econômico, e a completa demolição da doutrina da simultaneidade e uniformidade das mudanças no poder aquisitivo da moeda foram os marcos do novo teor do pensamento econômico. É claro que estas novas ideias eram essencialmente a continuação do trabalho gloriosamente iniciado por David Hume, pela Escola Monetária Inglesa (British Currency School)[5], por John Stuart Mill e por Cairnes.
Ainda mais nocivo foi um segundo erro provocado pelo uso imprudente da construção imaginária de um mercado de troca direta. Segundo uma afirmativa falaciosa, os bens e serviços trocados teriam o mesmo valor.
O valor seria considerado como algo objetivo, como uma qualidade intrínseca, inerente às coisas, e não meramente como a expressão do desejo de várias pessoas em adquiri-las. Supunha-se que, primeiro, as pessoas atribuiriam um grau de valor aos bens e serviços, por meio de um ato de medição, para, em seguida, efetuar a troca por outros bens e serviços de igual valor. Esta falácia frustrou o pensamento econômico de Aristóteles e, por quase dois mil anos, o raciocínio de todos aqueles que tinham por definitivas as opiniões desse filósofo. Perturbou seriamente a maravilhosa contribuição dos economistas clássicos, e tornaram inteiramente fúteis os escritos de seus epígonos, especialmente os de Marx e os da escola marxista. A base da economia moderna é a noção de que é precisamente a disparidade de valor atribuída aos objetos trocados que resulta na sua troca. As pessoas compram e vendem unicamente porque atribui um maior valor àquilo que recebem do que àquilo que cedem. Assim sendo, a noção de uma medição de valor é inútil. Um ato de troca não é precedido nem acompanhado por qualquer processo que possa ser considerado como uma medição de valor.
Um indivíduo pode atribuir o mesmo valor a duas coisas; neste caso, nenhuma troca ocorrerá. Mas se há uma diferença de valor, tudo o que se pode afirmar é que a tem mais valor do que b. Valores e valorações são quantidades intensivas e não extensivas. Não são susceptíveis de serem compreendidos pela aplicação de números cardinais.
Entretanto, a ideia espúria de que valores são mensuráveis e são realmente medidos na condução de transações econômicas estava tão enraizada, que mesmo economistas eminentes foram vítimas dessa falácia. Até mesmo Friedrich von Wieser e Irving Fisher aceitavam como verdadeira a ideia de que deve haver alguma forma de medir o valor e de que a economia deve ser capaz de indicar e explicar o método pelo qual se poderá fazer esta medição.[6] Os economistas de menor envergadura simplesmente supõem que a moeda serve “de medida de valor”.
Ora, é preciso que se compreenda que valorar significa preferir a a b. Só existe — do ponto de vista do lógico, epistemológico e praxeológico — uma maneira de preferir. Não há diferença entre essa situação e o fato de um enamorado preferir uma mulher às demais; ou de um homem preferir um amigo a outras pessoas; ou de um colecionador preferir um quadro entre muitos; ou de um consumidor preferir um pão a um pedaço de bolo. Preferir significa sempre querer ou desejar a mais que b. Da mesma maneira como não existe padrão de medida para a atração sexual, ou para a amizade e simpatia, ou para o prazer estético, também não existe medida de valor das mercadorias. Se alguém troca um quilo de manteiga por uma camisa, o que podemos dizer desta transação é que — no instante da transação e nas circunstâncias específicas daquele instante — esse alguém prefere uma camisa a um quilo de manteiga. É claro que cada ato de escolha se caracteriza por certa intensidade psíquica de sentimentos. Existem gradações de intensidade no desejo de atingir um determinado objetivo e esta intensidade é que determina o ganho psíquico que a ação bem-sucedida traz no indivíduo que age. Mas as quantidades psíquicas só podem ser sentidas. São inteiramente pessoais, não sendo possível expressar sua intensidade por meios semânticos, nem transmitir informações a seu respeito a outras pessoas.
Não há nenhum método conhecido para calcular uma unidade de valor. Convém recordar que as duas unidades de um mesmo conjunto homogêneo de bens são valoradas diferentemente. O valor atribuído à enésima unidade é menor do que o atribuído à unidade (n – 1).
Na sociedade de mercado, existem preços expressos em moeda. O cálculo econômico se efetua com base nos preços monetários. As várias quantidades de bens e serviços entram neste cálculo considerando-se o montante em moeda pela qual são comprados ou vendidos no mercado ou pelo qual poderiam sê-lo. É uma ficção presumir que um indivíduo autossuficiente isolado ou o gerente geral de um sistema socialista, isto é, um sistema no qual não exista um mercado para os bens de produção, possa calcular. Não há nenhuma maneira que possa levar-nos do cálculo monetário de uma economia de mercado para qualquer tipo de cálculo num sistema onde não exista o mercado.
A teoria do valor e o socialismo
Os socialistas, os institucionalistas e os adeptos da Escola Historicista recriminam os economistas por recorrerem à construção imaginária do pensamento e ação de um indivíduo isolado. Esse imaginário Robinson Crusoé, afirmam eles, não serve para o estudo das condições da economia de mercado. Esta censura, até certo ponto, se justifica. Construções imaginárias de um indivíduo isolado e de uma economia planificada sem mercado só se tornam utilizáveis se adotamos a hipótese fictícia, autocontraditória no pensamento e contrária à realidade, de que o cálculo econômico é possível mesmo num sistema desprovido de mercado para os meios de produção.
Foi certamente um erro crasso, da parte dos economistas, não perceberem a diferença entre as condições de uma economia de mercado e as de uma economia sem mercado. Os socialistas, entretanto, são os que menos podem criticar este erro. Isto porque o que lhes permitiu imaginar possível a realização dos planos socialistas foi precisamente imaginar o fato de os economistas terem tacitamente admitido que uma organização socialista da sociedade pudesse recorrer ao cálculo econômico.
É claro que os economistas clássicos e seus epígonos não poderiam perceber os problemas implícitos na impossibilidade do cálculo econômico. Se fosse verdade que o valor das coisas fosse determinado pela quantidade de trabalho necessário à sua produção ou reprodução, não haveria nenhum outro problema para o cálculo econômico. Os adeptos da teoria do valor-trabalho não podem ser acusados de não terem compreendido corretamente os problemas do sistema socialista. Sua falha irremediável foi a de terem adotado uma doutrina de valor insustentável. Os que entre eles, estavam inclinados a considerar a construção imaginária de uma economia socialista, como um modelo viável de ampla reforma da organização social não estavam em contradição com o conteúdo essencial de sua própria teoria. Mas, no caso da cataláxia subjetiva, a situação é diferente; é imperdoável que os economistas modernos não tenham chegado a perceber a essência do problema.
Wieser tinha razão ao declarar que muitos economistas, por tratarem superficialmente a teoria comunista de valor, negligenciaram a elaboração de uma teoria compatível com a própria organização social vigente.[7] É incompreensível que ele mesmo não tenha conseguido evitar esta falha.
A ilusão de que seja possível uma direção racional da ordem econômica numa sociedade baseada na propriedade pública dos meios de produção deve sua origem à teoria do valor dos economistas clássicos, e deve sua persistência aos inúmeros economistas modernos que não foram capazes de levar às últimas conclusões o teorema fundamental da teoria subjetiva. Portanto, as utopias socialistas foram geradas e preservadas pelas deficiências daquelas escolas de pensamento que os marxistas rejeitam como “um disfarce ideológico dos interesses egoístas da burguesia exploradora”. Na verdade, foram os erros daquelas escolas que fizeram prosperar as ideias socialistas. Este fato demonstra claramente o vazio dos ensinamentos marxistas a respeito das “ideologias”, bem como o de seu descendente moderno, a sociologia do conhecimento.
3. O problema do cálculo econômico
O agente homem utiliza o conhecimento proporcionado pelas ciências naturais para elaborar a tecnologia, ou seja, a determinação da ação possível no campo dos eventos externos. A tecnologia nos informa o que poderia ser conseguido e como poderia ser conseguido, desde que estejamos dispostos a empregar os meios necessários. Com o progresso das ciências naturais, a tecnologia também progrediu; alguns preferem dizer que o desejo de aprimorar métodos tecnológicos acarretou o progresso das ciências naturais. A quantificação das ciências naturais acarretou a quantificação da tecnologia. A moderna tecnologia é essencialmente a arte aplicada da previsão quantitativa do resultado de uma ação possível. Calcula-se com um razoável grau de precisão o resultado de ações planejadas e isto se faz com o objetivo de orientar a ação de maneira a que um determinado resultado se produza.
Entretanto, a mera informação técnica fornecida pela tecnologia só seria suficiente, para efetuar o cálculo econômico se todos os meios de produção — tanto materiais como humanos — pudessem ser perfeitamente substituídos uns pelos outros segundo proporções determinadas, ou se fossem todos absolutamente específicos. No primeiro caso, todos os meios de produção permitiriam atingir todos os fins, quaisquer que estes fossem, embora segundo proporções diferentes; as coisas se passariam como se só existisse uma única classe de meios — uma única classe de bens econômicos de ordem mais elevada. No segundo caso, cada meio só poderia ser empregado para atingir um determinado fim; neste caso, seria atribuído ao conjunto de fatores complementares, necessários à produção de um bem de primeira ordem, o mesmo valor atribuído a este último. (Mais uma vez, provisoriamente, não estamos considerando as modificações que seriam produzidas pelo fator tempo). Nenhuma dessas duas condições está presente no universo em que o homem age. Os meios só podem ser substituídos uns pelos outros dentro de limites estreitos; são meios mais ou menos específicos para obtenção de vários fins. Mas, por outro lado, os meios, em sua maior parte, não são absolutamente específicos; podem ser empregados para diversas finalidades. O fato de existirem diferentes classes de meios, da maior parte dos meios ser mais adequada para realizar certos fins e menos adequada para atingir outros e absolutamente inútil à produção de outros mais, e que, portanto, os diversos meios possibilitam várias utilizações, coloca para o homem a tarefa de escolher como alocá-los de forma a que possam prestar o melhor serviço. Para esta escolha, de nada adianta recorrer à computação, como faz a tecnologia. A tecnologia opera com quantidades mensuráveis de coisas e efeitos externos; conhece relações causais entre eles, mas desconhece sua relevância em relação às necessidades e desejos humanos. Só se aplica a valor de uso objetivo. Julga todos os problemas segundo o desinteressado ponto de vista de um observador neutro contemplando eventos físicos, químicos e biológicos. No que se refere a valor de uso subjetivo, ao ponto de vista especificamente humano e aos dilemas do agente homem, a tecnologia não tem nada a ensinar. A tecnologia ignora o problema econômico: empregar os meios disponíveis de tal maneira que uma necessidade mais urgentemente sentida não deixe de ser atendida porque os meios apropriados à sua satisfação foram empregados — desperdiçados — para atingir uma necessidade menos urgentemente sentida. Para solucionar tais problemas, a tecnologia e seus métodos de medir e contar são inadequados. A tecnologia nos informa como um dado objetivo pode ser atingido pelo emprego de vários meios que podem ser usados segundo várias combinações, ou como vários meios disponíveis podem ser empregados para certos fins. Mas não consegue informar ao homem quais procedimentos escolher diante da infinita variedade de modos de produção possíveis e imaginários. O que o agente homem quer saber é como empregar os meios disponíveis para remover da melhor forma possível — a mais econômica — o seu desconforto.
A tecnologia não lhe fornece mais do que informações acerca das relações causais existentes entre os diversos fatores do mundo externo, como por exemplo: 7a + 3b + 5c +… x n são capazes de produzir 8P. Mas, embora conheça os valores atribuídos pelo agente homem aos vários bens de primeira ordem, não pode decidir se é esta fórmula ou qualquer outra, entre a infinita variedade de fórmulas semelhantemente construídas, a que melhor serve à realização dos objetivos perseguidos pelo agente homem. A arte da engenharia pode estabelecer como uma ponte deva ser construída para atravessar um rio, num determinado ponto e com uma determinada capacidade de carga; mas não é capaz de dizer se a construção da ponte em questão absorverá ou não mão de obra e fatores materiais de produção que poderiam ser usados para satisfazer uma necessidade mais urgente. Não pode dizer, sequer, se a ponte devia ser construída, onde devia ser construída e que capacidade de carga deveria ter, e qual deveria ser o sistema de construção escolhido, entre os diversos possíveis. A computação tecnológica pode estabelecer relações entre várias classes de meios apenas na medida em que tais meios possam ser substituídos uns pelos outros para atingir um determinado fim. Mas a ação humana é compelida a descobrir as relações entre todos os meios, por mais díspares que sejam, sem considerar se podem ou não substituir uns aos outros na prestação do mesmo serviço.
A tecnologia e as considerações que dela derivam seriam de pouca utilidade para o agente homem, se não fosse possível introduzir nos seus esquemas técnicos os preços em moeda dos bens e serviços. Os projetos e desenhos dos engenheiros seriam exercícios meramente acadêmicos, se não pudessem comparar custo e receita em relação a uma mesma base. Um pesquisador teórico, na solidão de seu laboratório, não se preocupa com essas questões triviais; só se preocupa com as relações causais entre os vários elementos do universo. Mas o homem prático, ávido em melhorar suas condições de vida, diminuindo o seu desconforto tanto quanto possível, deve saber se, nas condições existentes, o que planeja é o melhor método — ou mesmo se é um método — para tornar a vida menos desconfortável. Deve saber se o que pretende realizar será uma melhoria em relação à situação presente ou em relação às vantagens esperadas de outros projetos tecnicamente possíveis que não podem ser realizadas porque o seu projeto absorverá os meios disponíveis. Tais comparações só podem ser feitas recorrendo-se ao uso de preços monetários.
Assim sendo, a moeda se torna o veículo do cálculo econômico. Não estamos, desta forma, atribuindo outra função à moeda. A moeda é o meio de troca usado universalmente e nada mais. Precisamente porque a moeda é o meio de troca universal, porque a maior parte dos bens e serviços pode ser comprada e vendida no mercado pela utilização da moeda, e somente na medida em que assim seja, é que o homem pode utilizar os preços em moeda para efetuar os seus cálculos. As relações de troca entre moeda e os vários bens e serviços estabelecidos no mercado até ontem, e as que, segundo se espera, serão estabelecidas amanhã, são as ferramentas mentais do planejamento econômico. Onde não existirem preços em moeda, não existirão quantidades econômicas. Neste caso, existirão apenas várias relações quantitativas entre as várias relações de causa e efeito do mundo exterior; não haverá meio de o homem descobrir qual o tipo de ação melhor serviria aos seus esforços para diminuir, tanto quanto possível, o desconforto.
Não precisamos nos deter no exame das condições primitivas da economia doméstica de camponeses autossuficientes, que lidavam apenas com processos de produção extremamente simples. Neste caso, não havia necessidade de cálculo econômico, uma vez que se poderia comparar diretamente o custo e o benefício. Se quisessem camisas, cultivavam o cânhamo, desfiavam, teciam e cosiam. Podiam, sem recorrer a qualquer cálculo, decidir se o trabalho e o esforço despendido seriam compensados pelo produto. Mas para o homem civilizado, o retorno a este tipo de vida não é mais admissível.
4. O cálculo econômico e o mercado
O tratamento quantitativo dos problemas econômicos não deve ser confundido com os métodos quantitativos que são aplicados no lidar com os problemas dos eventos físicos ou químicos do mundo exterior. O traço característico do cálculo econômico é não ser ele baseado em algo que possa ser considerado como uma medição.
Uma medição consiste em estabelecer a relação numérica de um objeto em relação a outro objeto, que se toma como unidade de medida. A medição se baseia, inevitavelmente, em dimensões espaciais. Com a ajuda da unidade definida de modo espacial, podemos medir a energia e a potência, a capacidade que determinado fenômeno possui de produzir mudanças nas coisas e nas situações e, inclusive, de medir a passagem do tempo. O ponteiro de um mostrador indica diretamente uma relação espacial, e só indiretamente inferimos outras quantidades. A assunção subjacente à medição é a imutabilidade da unidade. A unidade de comprimento é, definitivamente, a base de toda medição. Assume-se que o homem não tem como não considerá-la imutável.
As últimas décadas testemunharam uma revolução no cenário epistemológico tradicional da física, da química e da matemática. Estamos no limiar de inovações cujo alcance é difícil de prever. Pode ser que as futuras gerações de físicos tenham de enfrentar problemas de certo modo semelhantes àqueles com os quais a praxeologia tem de lidar.
Talvez venham a ser forçados a abandonar a ideia de que exista algo que não seja afetado por mudanças cósmicas e que possa ser usado como um padrão de medida. Mas, ainda que assim seja a estrutura lógica da medição de entidades terrestres no campo da física macroscópica não se alterará. A medição, no que diz respeito à física microscópica, também é feita com escalas métricas, micrômetros, espectrógrafos — e, definitivamente, com os órgãos sensoriais do homem, o observador e o experimentador, que é evidentemente macroscópico.[8] Ela não pode se libertar da geometria euclidiana e da noção de um padrão invariável.
Existem unidades monetárias e existem unidades que permitem medir fisicamente os vários bens econômicos e muitos — mas não todos — serviços que são objeto de compra e venda. Mas as relações de troca com as quais lidamos estão sempre variando. Não têm nada de constante ou invariável. Desafiam qualquer tentativa de medição. Não são fatos no sentido com que a física emprega esse termo ao proclamar que o peso de uma quantidade de cobre é um fato. São eventos históricos que exprimem algo que aconteceu uma vez, num determinado instante, segundo circunstâncias específicas. A mesma expressão numérica de uma relação de troca pode surgir de novo, mas não se pode garantir que isso ocorrerá e, se ocorrer, não se pode assegurar que esse resultado idêntico terá sido consequência da preservação ou do retorno às mesmas circunstâncias, ou terá sido o resultado da interação de um conjunto de fatores bem diferentes. Os números aplicados pelo agente homem no cálculo econômico não se referem a quantidades medidas, mas a relações de troca que se espera — com base na compreensão — ocorrer no mercado, no futuro. Toda ação humana se orienta por essas relações de troca futuras e somente elas têm importância para o agente homem.
Não estamos lidando, a esta altura da nossa investigação, com o problema de uma “ciência econômica quantitativa”, mas apenas com a análise dos processos mentais adotados pelo agente homem que, ao planejar sua conduta, se utiliza de considerações de natureza quantitativa. Como a ação visa sempre a influenciar um futuro estado de coisas, o cálculo econômico está sempre lidando com o futuro. Na medida em que considera eventos passados ou relações de troca já ocorridas, só o faz para melhor orientar a sua ação futura.
A tarefa que o agente homem pretende realizar utilizando-se do cálculo econômico é a de estabelecer o resultado da ação pelo contraste de custos e benefícios. Pelo cálculo econômico, ou se estima qual será o resultado de uma futura ação ou se constata o resultado de uma ação passada. Neste segundo caso, a constatação não é feita apenas com propósitos didáticos e históricos. Seu significado prático é mostrar quanto cada um pode consumir sem prejudicar a futura capacidade de produzir. Foi tendo em vista esse problema que se desenvolveram as noções fundamentais do cálculo econômico — de capital e renda, lucro e prejuízo, consumo e poupança, custo e benefício. A utilização, na prática, dessas noções, e de todas as outras que delas derivam, está inseparavelmente ligada ao funcionamento de um mercado no qual bens e serviços de qualquer natureza sejam trocados mediante o uso de um meio de troca universalmente aceito, qual seja, a moeda. Seriam noções meramente acadêmicas, sem qualquer importância para a ação, num mundo em que a estrutura da ação fosse diferente do que realmente é.
[1] A Escola Historicista Alemã* reconhecia esta realidade ao afirmar que a propriedade privada dos meios de produção, o intercâmbio no mercado e a moeda são “categorias históricas”.
* Escola Historicista Alemã — German Historical School — É uma escola de pensamento surgida no século XIX na Alemanha, que sustentava que o estudo de história era a única fonte de conhecimento sobre a ação humana e sobre assuntos econômicos. Essa escola afirmava que os economistas poderiam desenvolver novas e melhores leis da sociedade no estudo das estatísticas e dados históricos. O domínio da Escola Historicista nas universidades alemãs fez com que a economia “liberal” fosse considerada como ridícula e deu ensejo a que promovesse o socialismo de estado e as ideias de planejamento central. Assim, a Escola Historicista forneceu a base ideológica para o surgimento do nazismo. Ver Mises Made Easier, Percy L. Greaves Jr, Free Market Books, Nova Iorque, 1974, (N.T.)
[2] Ver especialmente Eugen von Böhm-Bawerk, Kapital und Kapitalzins, parte 2, livro III.
[3] Ver adiante p. ……..
[4] O descuido com os problemas de troca indireta certamente foi influenciado por preconceitos políticos. Ninguém queria renunciar à tese segundo a qual as depressões econômicas seriam um mal inerente ao modo de produção capitalista e que não poderiam ser de forma alguma, causadas pela tentativa de diminuir a taxa de juros pela expansão de crédito. Os professores de economia mais em evidência consideravam “não científico” explicar as depressões como um fenômeno que se origina “apenas” nos eventos no campo da moeda e do crédito. Havia até estudos sobre a história dos ciclos que sequer aludiam às questões monetárias. Ver, p. ex., Eugen von Bergmann, Geschichte der nationalökonomischen Krisentheorien, Stuttgart, 1895.
[5] Escola Monetária Inglesa — British Currency School — Grupo que se originou dos escritores de David Ricardo (1772-1823) em oposição à Banking School. Em suma, se opunham à prática de emissão fiduciária de notas promissórias pelos bancos comerciais. Eram favoráveis à proibição legal de qualquer emissão de notas bancárias que não fosse 100% lastreada em reservas de ouro. Para maiores referências, ver adiante p. …… Ver Mises Made Easier. Percy L. Greaves Jr. op. cit. (N.T.)
[6] Para uma análise crítica e refutação do argumento de Fisher, ver Mises, The Theory of Money and Credit. Trad H. E. Batson, Londres, 1934, p. 42-44; o mesmo, em relação ao argumento de Wieser: Mises,Nationalökonomie, Genebra, 1940, p. 192-194.
[7] Ver Friedrich von Wieser, Der natürliche Wert, Viena, 1889, p. 60, nota 3.
[8] Ver A. Eddington, The Philosophy of Physical Science, p. 70-79, 168-169.