Capitulo VI. A incerteza
1. Incerteza e ação
A incerteza do futuro está implícita na própria noção de ação. Que o homem aja e que o futuro seja incerto não constituem, de forma alguma, realidades independentes. São apenas duas diferentes maneiras de enunciar a mesma coisa.
Podemos supor que o resultado de todos os eventos e mudanças é determinado unicamente por leis eternas e imutáveis que regulam a evolução e o desenvolvimento do universo. Podemos considerar a interconexão e interdependência de todos os fenômenos, isto é, sua concatenação causal, como uma realidade fundamental e suprema. Podemos rejeitar completamente a noção de acaso. Mas, por mais que assim seja, ou pareça ser para uma mente dotada de uma inteligência perfeita, permanece indubitável que para o agente homem o futuro é desconhecido. Se o homem pudesse conhecer o futuro, não teria que escolher e, portanto, não agiria. Seria um autômato, reagindo aos estímulos, sem vontade própria.
Alguns filósofos procuram desacreditar a noção de vontade humana, considerando-a uma ilusão, ou autoilusão, porque o homem tem fatalmente que obedecer às inevitáveis leis da causalidade. Podem ou não ter razão, se está referindo-se a uma força motriz fundamental ou a sua causa. Entretanto, no que diz respeito ao homem, a ação é algo definitivo. Não estamos afirmando que o homem seja “livre” para escolher e agir. Simplesmente estamos enunciando o fato de que o homem escolhe e age, e de que os métodos das ciências naturais para explicar por que ele age de uma maneira e não de outra não são aplicáveis.
As ciências naturais não podem prever o futuro. Podem prever os resultados a serem obtidos com determinadas ações. Não obstante, dois tipos de situação permanecem imprevisíveis: aquele em que os fenômenos naturais não são suficientemente conhecidos, e aquele decorrente de atos de escolha humana. Nossa ignorância em relação a essas duas situações cobre de incerteza todas as ações humanas. Certeza apodítica só existe na órbita do sistema dedutivo da teoria apriorística. Quando lidamos com a realidade, a certeza limita-se a uma probabilidade.
Não é tarefa da praxeologia investigar se devem ou não ser tidos como certos alguns dos teoremas das ciências naturais empíricas. Esta questão não tem importância prática para as considerações praxeológicas. De qualquer maneira, os teoremas da física e da química têm um grau tão elevado de probabilidade que podemos considerá-los certos para aplicações práticas. Podemos prever, na prática, o funcionamento de uma máquina construída de acordo com uma determinada tecnologia. Mas a construção de uma máquina é apenas uma etapa de um programa mais amplo, qual seja o de fornecer ao consumidor o que a máquina produz. Se este produto atenderá ou não convenientemente ao consumidor, é problema que depende de condições futuras imprevisíveis no momento em que construímos a máquina. Portanto, qualquer que seja o grau de certeza no que diz respeito à previsibilidade do que a máquina produzirá não pode eliminar a incerteza inerente à ação como um todo. Futuras necessidades ou valorações, a reação dos homens às novas condições, novos conhecimentos tecnológicos e científicos, novas ideologias ou políticas, não podem ser antecipadas a não ser com maior ou menor probabilidade. Toda ação refere-se a um futuro desconhecido.
Os problemas relativos à verdade e à certeza são do interesse de uma teoria geral do conhecimento humano. O problema da probabilidade, por outro lado, interessa principalmente à praxeologia.
2. O significado da probabilidade
Os matemáticos têm provocado confusão em torno do estudo da probabilidade. Desde que esse tema começou a ser estudado, foi tratado com ambiguidade. Quando o Chevalier de Méré consultou Pascal sobre problemas relativos ao jogo de dados, o grande matemático devia ter usado de franqueza e dito ao seu amigo que a matemática não tem como ajudar um jogador em jogos de pura sorte. Em vez disso, formulou sua resposta empregando a linguagem simbólica da matemática. O que poderia ter sido facilmente explicado em linguagem coloquial foi enunciado numa terminologia pouco familiar à imensa maioria, e por isso mesmo recebido com um respeito reverencial. As pessoas imaginavam que aquelas fórmulas enigmáticas continham alguma revelação importante que só os iniciados poderiam perceber; ficaram com a impressão de que existia um método científico de jogar e de que os ensinamentos esotéricos da matemática continham uma maneira de ganhar sempre. Assim, o místico Pascal tornou-se, sem pretendê-lo, o padroeiro dos jogadores. Os livros teóricos sobre o cálculo de probabilidade fazem propaganda gratuita para os cassinos, exatamente porque são incompreensíveis para os leigos.
Não foram menores os danos provocados pelos equívocos do cálculo de probabilidades no campo da pesquisa científica. A história de todos os ramos do conhecimento registra exemplos de má aplicação do cálculo de probabilidades, tornando-o, como observara John Stuart Mill, “o verdadeiro opróbrio da matemática”.[1]
O problema decorrente de inferências feitas a partir de uma probabilidade é muito mais complexo do que os problemas específicos tratados pelo cálculo de probabilidades. Somente um enfoque matemático obsessivo poderia resultar no preconceito segundo o qual probabilidade significa sempre frequência.
Outro erro foi aplicar ao problema da probabilidade o raciocínio indutivo usado nas ciências naturais. A tentativa de substituir a categoria de causalidade por uma teoria universal de probabilidade foi a característica principal de um fracassado sistema filosófico que alguns anos atrás estava muito em moda.
Uma afirmação se diz provável quando o nosso conhecimento sobre seu conteúdo é insuficiente; quando não sabemos tudo o que é necessário para precisar e separar o verdadeiro do falso. Mas, por outro lado, embora insuficiente, possuímos algum conhecimento e podemos dizer algo mais do que non liquet[2] ou ignoramus.[3]
Existem dois tipos de probabilidades. Podemos chamá-los de probabilidade de classe (ou probabilidade de frequência) e probabilidade de caso (relativa às ciências da ação humana). O campo de aplicação da primeira é o das ciências naturais, regido inteiramente pela causalidade; o campo de aplicação da segunda é o das ciências da ação humana, regido inteiramente pela teleologia.
3. Probabilidade de classe
Probabilidade de classe significa o seguinte: sabemos ou presumimos saber tudo sobre o comportamento de uma classe de eventos ou fenômenos; mas, quanto a específicos eventos singulares, não sabemos nada, a não ser que são elementos dessa classe.
Sabemos, por exemplo, que existem noventa bilhetes numa loteria, dos quais cinco serão sorteados. Portanto, sabemos tudo sobre o comportamento de toda a classe de bilhetes. Mas, em relação aos bilhetes que serão premiados, só sabemos que integram a classe de bilhetes.
Suponhamos uma estatística sobre mortalidade registrada em uma determinada área, num certo período de tempo. Se considerarmos que não haverá variação em relação à mortalidade, podemos dizer que sabemos tudo em relação à mortalidade da população em questão. Mas, quanto à expectativa de vida de um determinado indivíduo, nada podemos afirmar, a não ser que este indivíduo faz parte daquele grupo de pessoas.
Os símbolos matemáticos do cálculo de probabilidade refletem essa deficiência de conhecimento. Não aumentam, não aprofundam, nem complementam o nosso conhecimento.
Apenas expressam-no em linguagem matemática; exprime em fórmulas algébricas o que já sabíamos de antemão. Não acrescentam nada ao nosso conhecimento acerca de eventos singulares. Tampouco, evidentemente, acrescentam algo ao nosso conhecimento em relação ao comportamento da classe, uma vez que este conhecimento já era total — ou era assim considerado — no início de nossas considerações sobre o assunto.
É um erro grave pensar que o cálculo de probabilidade fornece ao jogador informações que possam eliminar ou diminuir seus riscos. Ao contrário do que popularmente se acredita, o cálculo de probabilidade é inútil ao jogador, tanto quanto qualquer outro tipo de raciocínio lógico ou matemático. A característica essencial do jogo é a de lidar com a sorte, com o desconhecido. As esperanças de sucesso do jogador não se baseiam em considerações sólidas. O jogador não supersticioso pensa da seguinte maneira: “tenho uma pequena chance, (ou melhor: não é impossível) de ganhar, estou disposto a fazer a aposta. Sei que, apostando, estou me comportando como um tolo. Mas os maiores tolos são os que têm mais sorte. Seja o que Deus quiser!”
O raciocínio frio deve mostrar ao jogador que suas chances não aumentam ao comprar dois bilhetes em vez de um, numa loteria na qual o total de prêmios é menor do que o valor dos bilhetes. Se comprasse todos os bilhetes, certamente perderia uma parte de seu desembolso. Não obstante, todo jogador de loteria prefere comprar mais de um bilhete. Os frequentadores de cassinos e de máquinas caça-níqueis não conseguem parar de jogar. Não chegam a pensar no fato de que, se as regras do jogo favorecem o banqueiro, quanto mais jogarem, mais perderão. A tentação do jogo consiste exatamente na sua imprevisibilidade e na chance de ganhar.
Imaginemos que uma caixa contenha bilhetes com o nome de dez pessoas e que o nome sorteado teria de pagar cem dólares. Quem contratasse um seguro com todos os participantes, mediante um prêmio de dez dólares cada, poderia garantir ao perdedor uma indenização integral, uma vez que haveria arrecadado cem dólares e pagaria esta importância a um deles. Mas, se segurasse apenas um deles pelo mesmo prêmio de dez dólares, não estaria fazendo uma operação de seguro e, sim, jogando. Estaria substituindo-se ao segurado. Receberia dez dólares e teria a chance ou de ganhá-los ou de perdê-los junto com outros noventa dólares.
Se alguém promete pagar uma determinada importância, em caso de morte de uma terceira pessoa, e cobra por essa promessa uma quantia adequadamente calculada de acordo com a expectativa de vida, não estará procedendo como um segurador, mas como um jogador. Uma operação de seguro implica necessariamente segurar uma classe inteira ou aquilo que possa razoavelmente ser considerado como tal. O conceito básico da operação de seguros é formar um pool e distribuir os riscos e não o cálculo de probabilidade. O cálculo matemático necessário pode ser feito com as quatro operações elementares da aritmética. O cálculo de probabilidade é inteiramente desnecessário.
Isto fica claramente evidenciado quando percebemos que a eliminação de riscos pela formação de um poolpode ser efetuada sem que se recorra a métodos atuariais. É conduta habitual na vida cotidiana. Qualquer comerciante inclui no seu custo uma parcela para compensar perdas que regularmente ocorrem no seu negócio. “Regularmente”, neste contexto, significa: o montante dessas perdas é conhecido em relação ao conjunto de artigos em questão. O vendedor de frutas sabe, por exemplo, que uma em cada cinquenta maçãs apodrecerá antes de ser vendida, sem poder precisar qual delas. Desta forma, acrescenta aos seus custos o montante necessário para cobrir a perda.
A definição, como apresentada acima, do que seja a característica fundamental da probabilidade de classe, é a única satisfatória do ponto de vista lógico. Evita o círculo vicioso implícito nas definições que se referem à idêntica probabilidade de ocorrência dos eventos.
Ao proclamar nossa ignorância sobre eventos singulares — sabemos apenas que são elementos de uma classe cujo comportamento é bem conhecido — desfaz-se o círculo vicioso. Além disso, torna-se desnecessário fazer referência à ausência de regularidade numa sequencia de eventos singulares.
O aspecto característico de uma operação de seguro consiste em lidar com toda a classe de eventos. Supondo que conhecemos tudo sobre o comportamento de todos os elementos da classe, deixa de haver risco comercial numa operação de seguro.
Tampouco existe o risco na operação de um cassino ou de uma loteria. No caso da loteria, o resultado é previsível, se todos os bilhetes foram vendidos. Se algum bilhete não foi vendido, o empresário da loteria está, em relação a esse bilhete, na mesma situação que um comprador qualquer de bilhetes.
4. Probabilidade de caso
Probabilidade de caso significa: conhecemos alguns dos fatores que determinam o resultado de um evento; mas existem outros fatores que também podem influenciar o resultado e sobre os quais nada sabemos.
A probabilidade de caso só tem em comum, com a probabilidade de classe, a deficiência de nosso conhecimento. Em todos os outros aspectos, estas duas formas de probabilidade são completamente diferentes.
Frequentemente queremos prever um evento futuro com base no nosso conhecimento sobre o comportamento da classe a que esse evento pertence. Um médico pode estimar a chance de cura de um paciente, se ele sabe que 70% das vítimas da mesma doença se recuperam. Se expressar corretamente este conhecimento, dirá apenas que a probabilidade de cura é de 0.7, isto é, de cada dez pacientes, em média, morrem três. Todas as previsões sobre eventos externos, isto é, eventos no campo das ciências naturais, são deste tipo. Não são previsões sobre o resultado de casos futuros, mas informações sobre a frequência dos possíveis resultados. São baseadas ou em informações estatísticas ou simplesmente numa estimativa aproximada e empírica.
Estes tipos de declaração sobre o que é mais provável não constituem probabilidade de caso. Na realidade, não sabemos nada acerca do caso em questão, a não ser que se enquadra numa classe, cujo comportamento conhecemos ou pensamos que conhecemos.
Imaginemos que um cirurgião diz a um paciente, a quem vai operar, que trinta em cada cem dos que se submetem a essa operação morrem. Se o paciente perguntar se o número de mortes já está completo, é porque não entendeu o sentido da afirmação do médico. Estará incorrendo no erro conhecido como “ilusão do jogador”, da mesma maneira que o jogador de roleta que confunde probabilidade de caso com probabilidade de classe ao supor que, após uma série de dez vermelhos sucessivos, a possibilidade de a próxima bola cair no preto é maior do que antes. Todos os prognósticos médicos, quando baseados em conhecimento fisiológico, lidam com probabilidade de classe. Um médico a quem se perguntam quais as chances de cura de uma determinada doença poderá responder que são de sete para três. Se, entretanto, o médico examinar o paciente, poderá ter uma opinião diferente. Se o paciente é jovem e vigoroso, e tinha boa saúde antes de contrair a doença, o médico pode achar que as chances de cura são maiores: em vez de 7:3, são, digamos, 9:1. O enfoque lógico continua o mesmo, embora possa não estar baseado em dados estatísticos, mas num resumo aproximado da própria experiência anterior do médico com casos semelhantes. O que o médico sabe é apenas o comportamento de uma classe. No exemplo acima, é a classe dos jovens e vigorosos atacados pela doença em questão.
A probabilidade de caso é uma característica específica do nosso enfoque em relação aos problemas que ocorrem no campo da ação humana, onde qualquer referência à frequência é inadequada, uma vez que lidamos com eventos que, por serem únicos, não pertencem a nenhuma classe. Podemos conceber a classe “eleições presidenciais americanas”. Este conceito de classe pode ser útil ou até mesmo necessário para vários tipos de considerações, como, por exemplo, para tratar do assunto sob o ângulo da lei eleitoral. Mas, se estamos lidando com a eleição de 1944 — seja antes dela, para avaliar seu futuro resultado, seja depois, analisando os fatores que o determinaram -, estamos tratando de um caso individual, único e que não se repetirá. Cada caso se caracteriza por suas circunstâncias únicas; é em si mesmo uma classe. Todas as características que permitiriam enquadrá-lo em alguma classe são irrelevantes para o problema em questão.
Suponhamos que dois times de futebol, os Azuis e os Amarelos, vão jogar amanhã. Os Azuis, até agora, sempre ganharam dos Amarelos. Este conhecimento não é conhecimento sobre uma classe de eventos. Se fosse, teríamos de concluir que os Azuis são sempre vitoriosos e que os Amarelos são sempre derrotados. Não teríamos dúvida quanto ao resultado do jogo; teríamos certeza de que os Azuis ganhariam mais uma vez. O simples fato de considerarmos o resultado do jogo de amanhã como apenas provável mostra que o consideramos como um evento único e não como uma classe de eventos.
Por outro lado, em relação à previsão do resultado do jogo de amanhã, consideramos relevante o fato de os Azuis terem sido sempre vitoriosos. Nosso prognóstico seria favorável a uma nova vitória dos Azuis. Se fôssemos argumentar com base no raciocínio apropriado à probabilidade de classe, não atribuiríamos importância àquele fato. Se, ao contrário, incidíssemos na “ilusão do jogador”, sustentaríamos que o jogo de amanhã seria ganho pelos Amarelos.
Se arriscássemos alguma quantia na chance de vitória de um dos dois times, isto seria qualificado como uma aposta. Seria considerado jogo, se tratasse de probabilidade de classe.
Fora do campo da probabilidade de classe, tudo aquilo compreendido comumente pelo termo probabilidade refere-se ao modo especial de raciocinar empregado no exame de eventos históricos singulares e individualizado, ou seja, refere-se à compreensão de eventos históricos, que é matéria específica das ciências históricas.
A compreensão se baseia, sempre, em conhecimento incompleto. Podemos pensar que conhecemos os motivos que impelem os homens a agir, os fins que pretendem alcançar e os meios que pretendem empregar para a consecução desses fins. Podemos ter uma opinião precisa em relação aos efeitos a serem esperados da operação desses fatores. Não obstante, esse conhecimento é insuficiente. Não podemos deixar de considerar a possibilidade de termos avaliado mal a sua influência ou de não termos considerado alguns fatores cuja interferência não preveria ou, pelo menos, não preveríamos na medida certa.
O jogo, a engenharia e a especulação são três maneiras diferentes de lidar com o futuro. O jogador não sabe nada sobre o evento do qual depende o resultado de seu jogo. Tudo o que sabe é a frequência do resultado favorável de uma série desses eventos, conhecimento esse que é inútil para sua aposta. Confia na sorte, que é sua única forma de planejamento.
A vida em si está exposta a muitos riscos. A qualquer momento sofre a ameaça de acidentes fatídicos que não podem ser controlados ou, pelo menos, não na medida necessária. Todo homem confia na sorte; depende da sorte para não ser atingido por um raio ou mordido por uma cobra. Há, na vida humana, um componente de risco de jogo. O homem pode atenuar algumas das consequências desses desastres e acidentes sobre o seu patrimônio, subscrevendo apólices de seguro. Ao fazê-lo, está como que apostando na chance contrária. Da parte do segurado, o seguro é um jogo. Os prêmios pagos são gastos em vão, se não ocorre o sinistro.[4]
Em relação a eventos naturais incontroláveis, o homem está sempre na posição do jogador.
O engenheiro, por outro lado, sabe tudo o que precisa para uma solução tecnicamente satisfatória de seu problema, por exemplo, a construção de uma máquina. Na medida em que tenha alguma incerteza decorrente de algum conhecimento imperfeito, procura eliminá-la adotando margens de segurança. O engenheiro sabe apenas resolver problemas solúveis ou, então, sabe que existem problemas que não podem ser resolvidos no atual estágio de conhecimento. Às vezes, descobre pela experiência adversa que o seu conhecimento era menos completo do que imaginava e que, portanto, deixou de perceber a indeterminação de algumas questões que supunha poder controlar. Tentará então tornar seu conhecimento mais completo. Naturalmente, nunca poderá eliminar completamente o elemento de risco presente na vida humana. Mas, em princípio, opera sempre numa órbita de certeza. Seu objetivo é ter completo controle dos elementos com que lida.
É costume, hoje em dia, falar de “engenharia social”. Este termo é, da mesma forma que planejamento, sinônimo de ditadura e de tirania totalitária. A ideia implícita nesse conceito é a de que se podem tratar seres humanos da mesma maneira que o engenheiro manipula os elementos com os quais constrói pontes, estradas e máquinas. Na construção de sua utopia, o engenheiro social substitui a vontade das pessoas pela sua própria vontade. A humanidade se dividiria em duas classes: de um lado, o ditador todo-poderoso e, do outro, os tutelados, que ficam reduzidos à condição de mero peão de um plano ou engrenagens de uma máquina. Se isto fosse possível, o engenheiro social não precisaria preocupar-se em compreender as ações das demais pessoas. Teria ampla liberdade para lidar com elas, como a tecnologia lida com madeira e ferro.
No mundo real, o agente homem defronta-se com o fato de que seu semelhante age por conta própria. A necessidade de ajustar suas ações às dos outros faz dele um especulador, para quem sucesso e fracasso dependem de sua maior ou menor habilidade em compreender o futuro. Toda ação é uma especulação. No curso da vida humana não há estabilidade e, consequentemente, não há segurança.
5. Avaliação numérica da probabilidade de caso
A probabilidade de caso não é passível de avaliação numérica. O que é comumente considerado como tal, quando examinado mais detidamente, mostra ter uma característica diferente.
Na véspera da eleição presidencial de 1944, alguém poderia dizer:
a) Estou disposto a apostar três dólares contra um que Roosevelt será eleito.
b) Acho que, do total de eleitores, 45 milhões exercerão o seu direito de votar, dos quais, 25 milhões votarão por Roosevelt.
c) Estimo as chances de Roosevelt em 9 por 1.
d) Tenho certeza de que Roosevelt será eleito.
A afirmativa (d), obviamente, é arbitrária. Esse alguém perguntado, como testemunha juramentada, se tem tanta certeza da futura vitória de Roosevelt quanto do derretimento de um bloco de gelo exposto a uma temperatura de 150 graus, certamente responderá não. Retificaria sua afirmativa e diria: “Estou pessoalmente convencido de que Roosevelt ganhará a eleição. Esta é a minha opinião. Mas, é claro, não posso ter certeza; apenas posso expressar a minha compreensão das condições existentes”.
O caso da afirmativa (a) é semelhante. Quem a afirma acredita que tem grandes chances de ganhar a aposta. A relação 3:1 resulta da interação de dois fatores: a opinião de que Roosevelt será eleito e a propensão para apostar.
A afirmativa (b) é uma avaliação do resultado da próxima eleição. Sua estimativa numérica refere-se não a um maior ou menor grau de probabilidade, mas ao resultado esperado da votação. Tal afirmativa pode ser baseada numa pesquisa sistemática do tipo Gallup ou simplesmente em estimativas.
A afirmativa (c) é diferente. É uma proposição acerca do resultado esperado, expresso em termos aritméticos. Certamente não significa que, em dez casos semelhantes, nove sejam favoráveis a Roosevelt e um desfavorável. Não tem nada a ver com probabilidade de classe. Então, qual é o seu significado?
É uma expressão metafórica. As metáforas são usadas na linguagem comum geralmente para identificar, imaginariamente, um objeto abstrato com outro que pode ser percebido pelos sentidos. Entretanto, esta não é uma característica necessária da linguagem metafórica, mas simplesmente uma consequência do fato de que o concreto, normalmente, nos é mais familiar do que o abstrato. As metáforas, por pretenderem explicar algo que é menos conhecido pela comparação com algo mais conhecido, consistem, na maior parte das vezes, em identificar algo abstrato com algo concreto, mais conhecido. No nosso caso específico, pretende-se tornar mais compreensível uma situação complexa, recorrendo a uma analogia com um ramo da matemática, o cálculo de probabilidade. Certamente, este cálculo matemático é mais popular do que a análise da natureza epistemológica da compreensão.
De nada adianta usar a lógica para uma crítica da linguagem metafórica. Analogias e metáforas são sempre imperfeitas e insatisfatórias do ponto de vista da lógica. É comum procurar-se um tertium comparationis.[5]Nem mesmo a isso se pode recorrer no caso da nossa metáfora, porque a comparação seria baseada num conceito que é, em si mesmo, falso no próprio campo do cálculo de probabilidades, qual seja, a “ilusão do jogador”. Ao afirmar que as chances de Roosevelt são de 9:1, a ideia é a de que Roosevelt está, em relação à próxima eleição, na posição de alguém que tenha 90% de todos os bilhetes de uma loteria. Está implícito que esta proporção 9:1 nos diz algo real acerca do resultado do caso específico que estamos tratando. Não é necessário evidenciar de novo o erro contido nessa ideia.
Não menos inadmissível é recorrer ao cálculo de probabilidade ao lidar com hipóteses no campo das ciências naturais. As hipóteses são explicações provisórias, conscientemente baseadas em argumentos logicamente insuficientes. Sobre uma hipótese, tudo o que se pode perguntar é se contradiz, ou não, tanto o princípio lógico como fatos testados experimentalmente e considerados verdadeiros. Contradiz-se, terá que ser rejeitada; se não, poderá ser considerada possível — para o atual estágio de conhecimento. (A intensidade da convicção pessoal é puramente subjetiva). No exame de uma hipótese, não são consideradas nem a frequência provável nem a compreensão histórica.
O termo “hipótese” é uma denominação errônea, quando aplicado a determinados modos de interpretar eventos históricos. Se um historiador afirma que, para a queda da dinastia Romanoff, teve especial importância o fato de que a família real era de origem alemã, não está formulando uma hipótese. Os fatos em que se baseia são fora de dúvida. Havia, na Rússia, uma animosidade geral contra os alemães e, como os Romanoff, por duzentos anos, vinham casando-se com descendentes de famílias alemãs, eram tidos por muitos russos como uma família germanófila, mesmo por aqueles que acreditavam que o tzar Paulo não era filho de Pedro III. Não obstante, permanece a questão sobre que relevância teriam tido esses fatos na série de eventos que culminaram com a queda dessa dinastia. Não há nenhuma outra forma de elucidar tais problemas, a não ser pela compreensão histórica.
6. Apostas, jogos de azar e jogos recreativos
Aposta é um comprometimento com outra pessoa, através do qual arriscamos dinheiro ou outros bens, antecipando o resultado de um determinado evento. Sobre esse resultado, não sabemos mais do que se pode saber pela compreensão. Assim sendo, podemos apostar no resultado de uma próxima eleição ou de um jogo de tênis. Também podemos apostar, em relação a uma afirmativa factual, qual a opinião certa e qual a errada.
Jogo de azar é um comprometimento com outra pessoa, através do qual arriscamos dinheiro ou outros bens no resultado de um evento. Tudo o que se conhece é o comportamento da classe a que pertence o evento.
Às vezes, a aposta e o jogo de azar associam-se na mesma operação. O resultado de uma corrida de cavalos depende tanto da ação humana — da parte do proprietário, do tratador e do jóquei — como de fatores não humanos — as qualidades do cavalo. A maior parte dos que arriscam dinheiro no turfe é, simplesmente, de jogadores. Mas, por conhecer as pessoas envolvidas, os aficionados do turfe acreditam saber algo mais; na medida em que este fator influencia sua decisão, são apostadores. Além disso, supõem conhecer os cavalos; fazem um prognóstico com base no seu conhecimento acerca do comportamento das diversas classes de cavalos. Nesta medida, são jogadores.
Em outros capítulos trataremos dos métodos que os homens de negócio aplicam ao lidar com o problema da incerteza do futuro. Por ora, faremos apenas mais uma observação.
Participar de jogos recreativos pode ser tanto um fim como um meio. É um fim para aqueles que anseiam pela estimulação e excitação que as vicissitudes do jogo recreativo lhes proporcionam, ou para aqueles cuja vaidade é favorecida pela demonstração de habilidade e superioridade, frutos de sua maior destreza e perícia. É um meio para os profissionais que, vencendo, ganham dinheiro.
Participar de um jogo recreativo pode ser considerado uma ação. Mas não se deve inverter esta afirmação e considerar qualquer ação um jogo, ou lidar com as ações como se fosse uma mera recreação. O objetivo imediato, ao participar de um jogo recreativo, é o de derrotar o parceiro, respeitando as regras estabelecidas. É um caso especial e peculiar de ação; a maior parte das ações não tem por objetivo derrotar alguém. Aspiram a uma melhoria das condições de vida. Pode ocorrer que esta melhoria seja obtida à custa de alguém, mas, certamente, não é sempre assim. Certamente não é assim, para não dizer menos, no funcionamento normal de uma sociedade operando segundo princípios da divisão do trabalho.
Numa sociedade regida pelos princípios do mercado livre, não há a menor analogia entre a participação em jogos e a condução de negócios. O jogador de cartas ganha dinheiro de seu antagonista servindo-se de habilidades e astúcias. O empresário ganha dinheiro fornecendo aos consumidores os bens que desejam adquirir. Pode haver uma analogia entre o jogador de cartas e o blefista. Não há necessidade de aprofundamento neste assunto. Quem considerar a condução de negócios como trapaça está na pista errada.
O aspecto característico dos jogos é o antagonismo de dois ou mais jogadores ou grupo de jogadores.[6] O aspecto característico dos negócios numa sociedade, isto é, numa ordem baseada na divisão do trabalho, é a harmonia dos esforços de seus membros. Quando começam a se antagonizar, caminham para a desintegração social.
Numa economia de mercado, competição não significa antagonismo, no sentido com que este termo é aplicado para exprimir a confrontação de interesses incompatíveis. É verdade que a competição pode, às vezes, ou mesmo frequentemente, evocar nos competidores aqueles sentimentos de ódio e malícia que com frequência acompanham o desejo de prejudicar outras pessoas. Por isso, os psicólogos são propensos a confundir combate e competição. A praxeologia deve resguardar-se dessas ambiguidades artificiais enganosas. Do ponto de vista praxeológico, existe uma diferença fundamental entre competição cataláctica e combate. Os competidores aspiram à excelência e proeminência de suas realizações dentro de uma ordem de cooperação mútua. A função da competição é a de atribuir a cada membro de um sistema social aquela posição na qual pode melhor servir à sociedade como um todo. É uma maneira de selecionar o mais apto para cada tarefa. Onde existir cooperação social, alguma forma de seleção terá que ser aplicada. Somente quando a atribuição das várias tarefas aos vários indivíduos é feita por decisão de um ditador, sem que os indivíduos em questão possam fazer valer suas virtudes e habilidades, é que não há competição.
Mais adiante, teremos de lidar com a função da competição.[7] Por ora, devemos apenas enfatizar que é errado aplicar a terminologia de extermínio mútuo a problemas de cooperação mútua como existente numa sociedade. As expressões militares são inadequadas para descrever operações comerciais. Não é mais do que uma pobre metáfora falar da conquista de um mercado. Não há conquista quando uma firma oferece produtos melhores e mais baratos. Somente num sentido metafórico pode-se falar de estratégia em operações comerciais.
7. A predição praxeológica
O conhecimento praxeológico permite predizer com certeza apodítica as consequências de vários modos de agir. Mas, é claro, tal predição nunca pode implicar em aspectos quantitativos. Os problemas quantitativos, no campo da ação humana, só podem ser abordados pela compreensão.
Podemos predizer como veremos mais tarde, que — mantidas constantes as demais condições — uma queda na demanda de a resultará numa queda de preço de a. Mas não podemos prever a extensão dessa queda. Esta questão só pode ser resolvida pela compreensão.
A deficiência fundamental implícita em todo enfoque quantitativo dos problemas econômicos consiste em negligenciar o fato de que não existem relações constantes entre as chamadas dimensões econômicas. Tampouco existe constância ou continuidade nas valorações e na formação das relações de troca dos diversos bens. Cada dado novo provoca um remanejamento de toda a estrutura de preços. A compreensão, ao tentar perceber o que ocorre na mente das pessoas, pode abordar o problema de prognosticar situações futuras. Podemos considerar esse método insatisfatório e os positivistas podem, arrogantemente, desprezá-lo. Mas tais julgamentos arbitrários não devem e não podem obscurecer o fato de que a compreensão é o único método apropriado para lidar com a incerteza de situações futuras.
[1] John Stuart Mill, A System of Logic Ratiocinative and Inductive, p.353, nova impressão, Londres, 1936.
[2] Em linguagem jurídica: o que não está claro ou provado. (N.T.)
[3] O que não sabemos do ponto de vista legal. (N.T.)
[4] No seguro de vida, o gasto em vão do segurado consiste apenas na diferença entre a quantia recebida do segurador e a que teria acumulado pela poupança.
[5] Base de comparação. (N.T.)
[6] O jogo de “paciência” ou “solitário” não é um jogo de uma só pessoa; é apenas um passatempo, um meio de escapar do tédio. Certamente não representa um padrão do que acontece numa sociedade comunista, como supõem John von Neumann e Oscar Morgenstern. Theory of Games and Economic Behavior, p.86, Princeton, 1944.
[7] Ver adiante p. ………