Ao contrário do que diz a imprensa, o Banco Central americano não tem como “elevar os juros”

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FILE - In this Dec. 17, 2014 file photo, Federal Reserve Chair Janet Yellen speaks with reporters at the Federal Reserve in Washington. The Federal Reserve ended 2014 with a pledge to be ìpatientî in raising interest rates from record lows. The way things are going, its patience may endure for a long while. (AP Photo/Cliff Owen, File) ORG XMIT: NYBZ134
FILE – In this Dec. 17, 2014 file photo, Federal Reserve Chair Janet Yellen speaks with reporters at the Federal Reserve in Washington. The Federal Reserve ended 2014 with a pledge to be ìpatientî in raising interest rates from record lows. The way things are going, its patience may endure for a long while. (AP Photo/Cliff Owen, File) ORG XMIT: NYBZ134

O assunto simplesmente não sai da mídia.  O novo “terror” do momento é a suposta iminência de um aumento da taxa básica de juros nos Estados Unidos, pelo Banco Central americano, já agora em dezembro.

Há apenas um problema: ninguém ainda explicou exatamente como isso seria possível.

O que o Fed controla

Comecemos pelo básico: o Fed — o Banco Central americano — não controla todas as taxas de juros da economia americana.  Ele não controla as taxas de juros sobre os títulos públicos de 6 meses, 5 anos, 10 anos ou 30 anos.  Essas taxas são livremente determinadas pelo mercado.  Logo, ele não pode elevar os juros desses papeis.  Ele não tem nenhum poder sobre estes juros.  (O mesmo, aliás, é válido para todos os outros Bancos Centrais do mundo).

O Fed controla uma única taxa de juros, a qual, nos EUA é chamada de “Federal Funds Rate”.  Essa taxa (idêntica à SELIC brasileira) representa a taxa de juros que os bancos cobram entre si no mercado interbancário para emprestar (ou tomar emprestado) dinheiro que possuem em suas reservas, por um dia de duração.

Os bancos recorrem a essas operações interbancárias diariamente porque, ao final de cada dia, precisam manter um determinado volume de dinheiro em suas reservas.  (Esse volume de reservas é o equivalente a uma determinada porcentagem do total de seus depósitos, e é determinado pelo Banco Central; chama-se compulsório).

O Banco Central, por meio de suas injeções monetárias neste mercado interbancário — ele cria dinheiro para comprar títulos públicos em posse dos bancos e destrói dinheiro ao vender títulos públicos para os bancos —, afeta a taxa de juros do mercado interbancário e, com isso, é capaz de determinar a taxa básica de juros da economia.

Esta é a única taxa que ele de fato pode controlar.

O gráfico abaixo mostra a evolução de três taxas de juros da economia americana.

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A linha inteiriça laranja representa a “Federal Funds Rate” (a nossa SELIC), que é a única taxa que o Fed controla.  A linha laranja pontilhada representa a taxa de juros paga por título públicos com prazo de vencimento de 2 anos. Já linha cinza representa a taxa de juros paga por títulos públicos com prazo de vencimento de 10 anos.

A única taxa que o Fed controla diretamente é aquela que está totalmente horizontal.

O problema

Só que há um enorme problema: a demanda dos bancos por empréstimos no mercado interbancário está praticamente nula.  Os bancos não estão demandando empréstimos um dos outros neste mercado.  E isso nunca havia acontecido antes.

Por quê?

Porque o Fed, em resposta à crise financeira de 2008, tomou duas atitudes: a primeira, típica de países latino-americanos da década de 1980; a segunda, completamente inédita nos anais da teoria macroeconômica e jamais discutida nem sequer como hipótese em nenhum livro-texto de economia.

A primeira medida foi imprimir dinheiro a rodo e entregar esse dinheiro aos bancos em troca de título podres que estes carregavam.  Tratou-se de uma medida que, na prática, tinha a intenção de limpar os balancetes dos bancos.

O gráfico a seguir mostra o que ocorreu com a base monetária americana em decorrência desta medida:

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Tamanha injeção de dinheiro no sistema bancário iria, segunda a teoria macroeconômica, degenerar em hiperinflação caso os bancos decidissem emprestar todo esse dinheiro para pessoas e empresas.

Vale enfatizar que, no atual arranjo financeiro, o Fed (bem como o Banco Central brasileiro) não injeta dinheiro diretamente na economia; ele injeta dinheiro apenas nos bancos, e os bancos é que decidem se irão despejar este dinheiro na economia (por meio da criação de crédito. Se os bancos não quiserem despejar este dinheiro na economia, não há nenhum risco de inflação de preços.

E foi aí que o Fed teve então a sua segunda ideia, completamente inédita na história dos Bancos Centrais: para impedir que toda esta dinheirama fosse emprestada pelos bancos, ele simplesmente decidiu pagar aos bancos juros anuais de 0,25% sobre todo e qualquer dinheiro que os bancos voluntariamente deixassem parado no Fed.

Normalmente, um Banco Central paga juros aos bancos apenas sobre o valor do compulsório.  Nos EUA, no entanto, o Fed criou a política de pagar juros para todo e qualquer montante que os bancos voluntariamente deixem parados no Fed.

Ou seja, de um lado, o Fed imprimiu (eletronicamente) trilhões de dólares e entregou esse valor aos bancos em troca de títulos podres que estavam em posse destes bancos; de outro, ele começou a pagar, para os bancos, juros de 0,25% sobre todo este dinheiro.

Tão logo o Fed adotou essa prática, a taxa de juros do mercado interbancário caiu para quase zero. E esta taxa de 0,25% acabou se tornando a taxa básica de juros da economia americana.

A consequência disso é que os bancos americanos estão hoje com US$ 2,6 trilhões de “reservas em excesso” voluntariamente estacionadas no cofre eletrônico do Fed.

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Consequentemente, com todo este excesso de reservas, nenhum banco tem de ir ao mercado interbancário pedir dinheiro emprestado para outro banco com o intuito de manter um determinado volume de dinheiro em suas reservas.  O sistema bancário americano está hoje inundado de dinheiro na forma de reservas em excesso.  Nenhum banco precisa mais se preocupar com a hipótese de não ter reservas suficientes.  Nenhum banco precisa se preocupar em recorrer ao mercado interbancário para pedir dinheiro emprestado.

Sendo assim, para o Fed elevar a taxa básica de juros — que é a taxa de juros do mercado interbancário —, ele teria de enxugar uma boa parte desses trilhões de dólares que estão nas reservas em excesso.  Isso exigiria uma venda maciça, pelo Fed, de títulos públicos para esses bancos.

Na prática, o Fed teria de fazer uma liquidação maciça de títulos públicos de 3 meses, 6 meses, 2 anos, 5 anos, 10 anos, 30 anos, títulos de Fannie Mae e Freddie Mac, títulos lastreados em hipotecas, títulos lastreados em empréstimos estudantis, títulos lastreados em crediário para automóveis etc.  Em suma, ele teria de pegar seu portfólio e, em cada categoria de ativo, teria de vender esses ativos no mercado.

Obviamente, se ele fizer essa liquidação, os preços desses ativos iriam desabar, o que significa que as taxas de juros desses ativos iriam disparar. Com a disparada das taxas de juros de todos esses papeis, os juros para todos os empréstimos iriam subir concomitantemente.

E o governo, obviamente, não quer isso.

O que o Fed realmente pode fazer

A única política monetária que o Fed realmente pode fazer é elevar a taxa de juros que ele paga sobre todas essas reservas em excesso que os bancos mantêm depositadas junto ao Fed.

Se atualmente ele paga uma taxa de 0,25% ao ano, ele pode elevá-la para, por exemplo, 0,5%;

Isso ele pode fazer quando quiser.

Mas isso gera alguns problemas.

Ao contrário de todas as outras operações de política monetária, esse dinheiro com o qual o Fed paga juros de 0,25% aos bancos não é criado eletronicamente por ele.  Esse dinheiro advém dos lucros operacionais do Fed.

Em termos puramente contábeis, esse dinheiro é retirado do patrimônio líquido do Fed e colocado em seu passivo (as reservas bancárias representam contabilmente um passivo para o Fed).

Sendo assim, se o Fed elevar os juros de 0,25% para, digamos, 0,5% ou até mesmo 1%, não apenas os lucros operacionais do Fed serão brutalmente reduzidos, como também será reduzido o montante que o Fed repassa anualmente ao Tesouro.

Legalmente, o Fed é obrigado a repassar o Tesouro americano todo o dinheiro que ele obteve de lucro menos o necessário para cobrir suas operações.

Se o Fed elevar os juros que paga sobre as reservas em excesso, o orçamento do governo federal americano sofrerá um baque.  Cada centavo que o Fed paga sobre as reservas em excesso é um centavo a menos que não pode ser dado ao Tesouro americano ao final de cada ano fiscal.  Consequentemente, se o Fed elevar os juros, o déficit orçamentário do governo federal americano irá aumentar.

Por último, se os bancos estão dispostos a manter US$ 2,6 trilhões de dólares estacionados no Fed em troca de 0,25% ao ano, quanto mais eles estariam dispostos a manter estacionado no Fed em troca de, digamos, 1% ao ano?  Certamente, muito mais.

Logo, o Fed irá gastar ainda mais com juros.  E, consequentemente, o Tesouro receberá ainda menos repasses.

Não obstante esses problemas, essa é a única taxa de juros que o Fed realmente pode elevar.

Portanto, quando se fala que “o Fed irá aumentar os juros em dezembro”, a pergunta a ser feita é: qual taxa de juros exatamente o Fed irá elevar?  Como ele irá fazer isso?

Até hoje, nunca foi publicado na mídia especializada um único artigo explicando exatamente como o Fed irá “elevar os juros”.

Desde meados de 2013 há essa “ameaça” de aumento dos juros.  E ela nunca se concretiza.  Há várias razões econômicas e contábeis para isso.

Conclusão

Quando o Fed, em outubro de 2008, adotou a política de pagar juros sobre toda e qualquer reserva em excesso voluntariamente mantida pelos bancos no Banco Central, ele revolucionou completamente as práticas dos Bancos Centrais.  Nenhum livro-texto, nem mesmo os próprios livros publicados pelo Fed, jamais discutiu essa hipótese.

Tal política, com efeito, colocou uma rolha no mecanismo de transmissão entre a expansão da base monetária e o aumento da quantidade de dinheiro na economia.  Esse mecanismo de transmissão foi rompido.  A relação entre aumento da base monetária e aumento de M1, M2, M3 e M4 foi quebrada.  Não há manual de macroeconomia que discuta essa possibilidade.

Consequentemente, há uma nova era na economia americana no que diz respeito a práticas de Banco Centrais. Qualquer economista que queira apresentar uma teoria sobre hiperinflação nos EUA em decorrência da volumosa expansão da base monetária terá de explicar como essa hiperinflação poderá ocorrer agora que o Fed descobriu essa prática de pagar juros sobre todo e qualquer dinheiro que os bancos voluntariamente depositem no Fed.

Com essa medida de pagar juros sobre todo e qualquer depósito voluntário que os bancos depositarem no Fed, a possibilidade de hiperinflação é praticamente nula.

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Leia também:

Qual é a estratégia de saída do Fed? 

O que o Fed poderá fazer 

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Autores:

Gary North, ex-membro adjunto do Mises Institute, é o autor de vários livros sobre economia, ética e história.

Leandro Roque, editor e tradutor do site do Instituto Ludwig von Mises Brasil.

 

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