A cada quatro anos, em cada eleição presidencial, eu tenho o mesmo sonho: eu não sei ou não me importo em saber quem será o presidente. Mais importante: eu não preciso saber, nem me preocupar com isso. Eu não tenho que votar ou prestar atenção em debates. Eu posso ignorar todas as propagandas políticas. Não existem riscos em jogo, seja para o meu país ou para minha família. Minha liberdade e minha propriedade estão tão asseguradas que, francamente, não faz diferença quem vença. Eu nem preciso saber seu nome.
Nesse meu devaneio, o presidente é apenas uma figura representativa, sem autoridade real; um símbolo, que é quase invisível para mim e para minha comunidade. Ele não tem a riqueza pública à sua disposição. Ele não administra ministérios e nem agências reguladoras. Ele não pode nos tributar, nem dar subsídios aos ricos ou aos pobres, nem indicar juízes que irão retirar nosso direito à autonomia, nem controlar um banco central que inflaciona a oferta monetária e provoca os ciclos econômicos, e nem mudar as leis autoritariamente — seja para agradar aos interesses especiais daqueles de quem ele gosta, seja para punir aqueles que o desagradam.
A função do presidente
Sua função é simplesmente supervisionar um governo minúsculo, virtualmente sem poder, exceto para arbitrar disputas entre estados, que são as principais unidades governamentais. Ele é o líder do estado, mas nunca o líder do governo. Sua posição, na verdade, é de constante subordinação aos funcionários ao redor dele e aos milhares de políticos em nível estadual e municipal. Ele adere às rigorosas regras da lei e está sempre ciente de que, no momento em que ele cometer uma transgressão e tentar expandir seu poder, será impedido e deposto como um criminoso.
Mas um impeachment não é algo provável, pois a sua simples ameaça basta para lembrar o presidente de qual é o seu lugar. Esse presidente é também um homem de caráter excepcional, bem respeitado pelas elites naturais da sociedade, uma pessoa cuja integridade é inquestionável e confiada por todos que o conhecem, uma pessoa que representa o melhor daquilo que o país é.
O presidente pode ser um herdeiro rico, um empresário de sucesso, um intelectual altamente preparado, ou um fazendeiro proeminente. Independentemente disso, seus poderes são mínimos. A sua equipe é minúscula, e está quase sempre ocupada com assuntos cerimoniais, como a assinatura de proclamações e o agendamento de encontros com outros chefes de estado.
A presidência não é uma posição a ser avidamente perseguida, mas, sim, concedida como honorária e temporária. Para garantir que isso ocorra, a pessoa escolhida para vice-presidente é o principal adversário político do presidente. O vice-presidente, portanto, serve como uma lembrança constante de que o presidente é eminentemente substituível. Dessa maneira, o cargo de vice-presidente é muito poderoso — não em relação ao povo, mas para manter o executivo sob estrita vigilância.
Mas para pessoas como eu, que têm outras preocupações que não políticas, pouco importa quem seja o presidente. Ele e toda a sua equipe não afetam minha vida de maneira alguma. Sua autoridade é principalmente social, e deriva da respeitabilidade que ele tem perante as elites naturais da sociedade. Essa autoridade se perde tão facilmente quanto se ganha, portanto é improvável que ela seja abusada.
Esse homem é eleito indiretamente, sendo os membros dos colégios eleitorais escolhidos de acordo com critérios estaduais, com uma única ressalva: nenhum desses membros pode ser funcionário público federal. Nos estados que escolhem seus membros através do voto majoritário, não são todos os cidadão ou residentes que podem participar. Os que podem realmente votar, uma pequena porcentagem da população, são aqueles que verdadeiramente têm em mente os melhores interesses da sociedade. Esses indivíduos são aqueles que são donos de propriedades, chefes de famílias, e os realmente instruídos. Eles escolherão um homem cuja função é pensar somente na segurança, na estabilidade e na liberdade desse país.
O governo invisível
Aqueles que não votam e não ligam para política têm sua liberdade garantida. Eles não têm direitos especiais, contudo seus direitos à individualidade, à propriedade e à autonomia nunca são postos em dúvida. Por essa razão, e por todos os propósitos práticos, eles podem se esquecer do presidente e, consequentemente, do resto do governo federal. Não faz diferença se ele existe ou não. As pessoas não pagam impostos diretamente a ele. Ele não diz às pessoas como elas devem conduzir suas vidas. Ele não as manda para guerras, não controla suas escolas, não paga suas aposentadorias, e muito menos as emprega para espionar e extorquir seus concidadãos. O governo é praticamente invisível.
As controvérsias políticas que me envolvem tendem a ser em nível comunitário, municipal ou, no máximo, estadual. E isso ocorre para todos os assuntos, incluindo impostos, educação, crime, assistencialismo, e até imigração. A única exceção é a defesa geral da nação, embora o exército de prontidão seja bem pequeno e com várias milícias baseadas nos estados, em caso de necessidade. O presidente é o comandante-em-chefe das forças armadas federais, mas essa é uma posição secundária a menos que o congresso declare guerra. Essa função requer não mais do que garantir a impenetrabilidade das fronteiras por agressores estrangeiros, uma tarefa relativamente fácil considerando a nossa geografia e o oceano que nos separa daquele mundo velho e em incessante animosidade.
No meu sonho, há dois tipos de representantes públicos: membros da Câmara dos Deputados e um Senado eleito por legislaturas estaduais. A Câmara trabalha para manter o Senado federal sob controle, e o Senado trabalha para manter o executivo sob controle.
O poder legislativo sobre o público praticamente não existe. Os congressistas têm poucos incentivos para aumentar seu poder porque eles próprios são cidadãos reais. Meu deputado mora a menos de um quilômetro da minha casa. Ele é meu vizinho e meu amigo. Eu não conheço meu senador federal, e não preciso conhecer, porque ele se reporta aos legisladores estaduais que eu conheço.
Assim, no meu sonho, não há praticamente nada em jogo na próxima eleição presidencial. Não importa qual seja o resultado, eu mantenho minha liberdade e minha propriedade.
Extrema descentralização
A política desse país é extremamente descentralizada, mas a população é unida por uma economia que é perfeitamente livre e por um sistema de comércio que permite às pessoas se associarem voluntariamente, inovarem, pouparem, e trabalharem baseando-se em benefícios mútuos. A economia não é controlada, estorvada ou mesmo influenciada por qualquer comando central.
As pessoas podem ficar com aquilo que ganham. A moeda que elas usam para comerciar é sólida, estável, e lastreada em ouro. Capitalistas podem abrir e fechar seus negócios à vontade. Trabalhadores são livres para aceitar qualquer trabalho que quiserem, sob qualquer salário e na idade que quiserem. Os negócios têm apenas dois objetivos: servir o consumidor e obter lucros.
Não existem controles trabalhistas, benefícios compulsórios, impostos sobre folhas de pagamento, ou outras regulamentações. Por essa razão, cada um se especializa naquilo em que é melhor, e as trocas pacíficas entre os empreendimentos voluntários causam crescentes ondas de prosperidade por todo o país.
O formato que a economia vai tomar — seja agrícola, industrial, ou de alta tecnologia — não interessa ao governo federal. Permite-se que o comércio aconteça livre e naturalmente, e todos compreendem que ele deve ser gerenciado por proprietários, não por funcionários públicos. O governo federal não poderia criar impostos quando quisesse, muito menos taxar a renda, e o comércio com nações estrangeiras seria competitivo e livre.
Se por algum motivo esse sistema de liberdade começar a se decompor, a minha própria comunidade — o estado no qual eu moro — tem uma opção: se separar do governo federal, formar um novo governo, e se juntar a outros estados nesse esforço. A secessão é sempre permitida. Essa foi parte da garantia requerida para tornar possível que o país fosse uma federação. E, de tempos em tempos, os estados ameaçam uma secessão, apenas como forma de mostrar ao governo federal quem está no comando.
Esse sistema reforça o fato de que o presidente não é o presidente do povo, muito menos seu comandante-em-chefe, mas meramente o presidente do país. Ele serve apenas com sua permissão e somente como líder simbólico dessa união voluntária de comunidades políticas mais importantes. Esse presidente jamais poderia fazer pouco caso dos direitos dos estados, muito menos violá-los na prática, porque assim ele estaria traindo seu juramento e arriscando ser expelido do cargo.
Nessa sociedade sem administração central, uma vasta rede de associações privadas serve como a autoridade social dominante. Comunidades religiosas exercem vasta influência sobre a vida pública e privada, assim como o fazem também entidades civis e líderes comunitários de todos os tipos. Eles criam uma enorme miscelânea de associações e uma verdadeira diversidade na qual cada indivíduo e grupo encontra um lugar.
Essa combinação de descentralização política, liberdade econômica, livre comércio, e autonomia seria capaz de criar a mais próspera, diversa, pacífica e justa sociedade que o mundo jamais conheceu.
Sem utopia
Seria isso uma utopia? Na verdade, nada mais é do que o resultado da minha premissa inicial: que o presidente é tão restringido que não é nem importante saber quem ele é. Isso significa uma sociedade livre que não é controlada por ninguém, exceto por seus membros em suas qualidades de cidadãos, pais, trabalhadores e empreendedores.
Esse seria um país onde as pessoas deveriam governar a si mesmas e planejar sua própria economia, e não tê-la planejada por burocratas em uma capital distante. O presidente nunca se interessaria pelo bem-estar do povo porque o governo federal não teria voz nesse assunto. Isso seria deixado para as próprias comunidades decidirem.
Essa filosofia é chamada de liberalismo clássico.
Liberalismo
Nos séculos XVIII e XIX, o termo liberalismo geralmente se referia a uma filosofia de vida pública que afirmava o seguinte princípio: sociedades e todas as suas partes não necessitam de um controle central administrador porque as sociedades normalmente se administram por meio da interação voluntária de seus membros para seus benefícios mútuos.
Liberalismo clássico significa uma sociedade na qual meu sonho é uma realidade. Não precisamos saber o nome do presidente. O resultado das eleições é altamente irrelevante porque a sociedade é regida por leis e não por homens. Não tememos o governo porque ele não nos tira nada, não nos dá nada, e nos deixa em paz para moldarmos nossas vidas, comunidades e futuros.
Essa visão do governo e da vida pública foi destruída em nosso século e em quase todos os países do mundo. Atualmente, em todos os países, o presidente (ou primeiro-ministro) é extremamente poderoso e controlador, especialmente se levarmos em conta todas as agências executivas que ele controla. Seu poder só é rivalizado por aquele indivíduo que comanda as impressoras monetárias, o presidente do Banco Central.
Anti-governo?
Claro, meus comentários podem ser denunciados como antigoverno. Dizem-nos diariamente que as pessoas que são antigoverno são uma ameaça pública. Mas, como Thomas Jefferson escreveu, um governo livre é fundamentado na desconfiança, e não na confiança. James Madison também havia alertado: “Desconfie sempre de todos os homens que têm poder “.
Podemos acrescentar dizendo que qualquer governo que empregue milhões de pessoas, a maioria delas armadas até os dentes, deve ser digno de enorme desconfiança. Essa é uma atitude cultivada pela mente liberal-clássica, que premia e incentiva a liberdade dos indivíduos e das comunidades para controlarem suas próprias vidas.
O recém-findado século XX foi o século de Rousseau. E com a ajuda das doutrinas estatistas de Marx e Keynes, este foi também o mais sanguinário dos séculos da história humana. A ideia de governo que esses autores tinham era exatamente oposta à do pensamento liberal-clássico. Eles alegavam que a sociedade não pode governar a si mesma; em vez da vontade geral, os interesses do proletariado ou os planos econômicos das pessoas precisam ser organizados e incorporados na nação e naqueles que a controlam.
E hoje, de fato, com a glorificação da democracia, o indivíduo, a família, e a comunidade — as unidades essenciais de uma sociedade livre — não só foram reduzidos a servos federais, tendo apenas a liberdade que o governo os permite ter, como também foram obrigados a agir como parte de uma ordem nacional coletivista que está por toda parte. Nenhuma grande figura política nacional propõe mudar isso.
Esse fato suscita uma compreensão central da tradição intelectual liberal-clássica. O governo não tem nenhum poder ou recurso que antes não tenha tomado das pessoas. Ao contrário das empresas privadas, ele não pode produzir nada. O que quer que ele tenha, ele deve extrair da iniciativa privada. Embora isso tenha sido bem compreendido no século XVIII, bem como em grande parte do século XIX, tudo foi quase que totalmente esquecido no século do socialismo e do estatismo, do Nazismo, do Comunismo, do New Deal, do assistencialismo, e das guerras.
Restauração
O liberalismo clássico funcionaria nos dias de hoje? Pense nas questões litigiosas da sociedade atual. Cada uma certamente envolve uma área que está relacionada com alguma forma de intervenção governamental. Os conflitos atuais giram em torno do desejo de apoderar-se da propriedade de terceiros usando para esse fim o aparato político de coerção que é o estado. A nossa sociedade seria mais pacífica e próspera se tivesse seguido o programa liberal? A pergunta carrega sua própria resposta.
Agora, de volta ao meu devaneio. Eu não conheço e nem me preocupo em conhecer as políticas presidenciais porque elas não importam de maneira alguma. Minha liberdade e propriedade estão tão asseguradas que, francamente, não faz diferença quem vença as eleições. Mas, para atingir esse objetivo, nenhum de nós pode abster-se das batalhas políticas e intelectuais de nossa época.
O Prometeus, de Goethe, brada:
Por acaso imaginaste, num delírio,
que eu iria odiar a vida e retirar-me para o ermo
por alguns dos meus sonhos se haverem
frustrado?
E Fausto responde com sua “última palavra de sabedoria”:
Só merece a liberdade e a vida
aquele que tem de conquistá-las todos os dias.