Nota do IMB
Escândalos como o da Construtora Delta, da Camargo Corrêa, da Gautama, da Siemens, além de obras públicas malfeitas — como as do metrô de São Paulo, que desabaram no início de 2007 —, são meros sintomas de um arranjo político-econômico que premia aquelas empresas que têm fortes conexões com o estado.
Tal arranjo político-econômico, conhecido tecnicamente como parcerias público-privadas, nada mais é do que um arranjo corporativista no qual estado e grandes empresas se aliam para, sob o manto de estarem fazendo obras, extorquir os cidadãos e dividir entre si o butim, dando em troca algo que lembra um pouco, com muita boa vontade, um serviço de infraestrutura.
Este arranjo é excelente para ambos os lados: os políticos ganham o crédito pela obra, recebem “agrados” das empresas que ganharam a licitação e, como consequência, garantem uma reeleição; e as empreiteiras contratadas ganham obras que serão pagas com o dinheiro do contribuinte — logo, sem qualquer zelo e critério, pois ninguém gasta o dinheiro dos outros com parcimônia —, o que faz com que os lucros sejam garantidos, a necessidade de qualidade, nula, e as chances de superfaturamento, uma certeza.
Na outra ponta do arranjo está o cidadão desamparado, obrigado a sustentar a farra e sem qualquer voz ativa neste arranjo que está sendo financiado com o seu suado dinheiro.
Por não estarem sujeitas a um ambiente concorrencial, empresas e empresários não precisam se preocupar em mostrar resultados. Vale mais fazer lobby e subornar políticos para ganhar licitações do que prestar um bom serviço no mercado. E é justamente por não estarem sujeitas à disciplina do livre mercado que os problemas surgem — e são muito sérios.
São dois os principais problema de uma parceria público-privada: o monopólio garantido pelo estado e a ausência de propriedade privada. Para começar, as empreiteiras estão ali apenas para receber o dinheiro subsidiado pelos pagadores de impostos e entregar a obra dentro do prazo especificado. Não há livre concorrência. Uma empresa não tem que mostrar um serviço melhor que o de uma concorrente para sobreviver. Adicionalmente, as empresas não irão gerir o empreendimento para sempre, pois se trata apenas de uma concessão, um aluguel. Uma vez findado o prazo de concessão, o empreendimento volta para as mãos do estado. Logo, as empresas não têm interesse em primar pela qualidade e eficiência de suas obras. Não haverá punição de mercado.
Como o dinheiro vem majoritariamente do BNDES — sempre que você vir a sigla BNDES, pense na sua carteira sendo surrupiada —, não há nenhuma preocupação com controle de custos. Dado que as empresas não trabalham com capital próprio, isso significa que as empreiteiras têm de satisfazer o estado e não o consumidor do seu produto final — que, em um genuíno livre mercado, é quem realmente manda. Não há mecanismos de mercado para alocar os recursos de modo eficiente. O governo decide quem vai fazer a obra, como ela será feita e em que prazo. O monopólio fica então estabelecido. Eventuais empresas que porventura quisessem concorrer naquele mesmo setor por conta própria, sem utilizar um único centavo público — e que, por isso, pudessem cobrar de tarifas e pedágios o valor que quisessem — estão rematadamente proibidas de incorrer em tal empreendimento. O estado não deixa.
Caso houvesse essa liberdade de empreendimento, a empresa que construísse a obra viária, ferroviária, portuária e aeroportuária seria também a dona dela. Neste cenário, não é desarrazoado imaginar que ela teria total interesse na qualidade e durabilidade do produto, pois este arranjo seria o que menos lhe traria custos de longo prazo — afinal, não seria inteligente utilizar materiais baratos, asfalto de baixa qualidade, linhas férreas pouco resistentes, cais de baixa capacidade de escoamento e instalações aeroportuárias fajutas, pois as despesas com reposição e indenização por acidente não compensariam a economia inicial de custos.
Utilizando a ciência econômica, é possível prever de antemão que o recém-anunciado pacote de concessão de obras de infraestrutura pelo governo federal, seguindo o modelo de parcerias público-privadas, não tem como gerar resultados satisfatórios. No final, a culpa será atribuída ao livre mercado, que nunca entrou na história.
Por último, um adendo técnico: embora o arranjo que preconize parcerias entre governo e iniciativa privada seja popularmente conhecido como fascismo, o atual modelo brasileiro não possui exatamente esta característica. Afinal, o fascismo ainda permite a propriedade privada. Já as PPPs brasileiras apenas fazem concessões a empresas privadas por um prazo de tempo específico. Findado este prazo, o governo toma a propriedade. Isto é socialismo. Veja mais aqui sobre as recentes estatizações de aeroportos no Brasil.
A seguir, um pouco mais sobre as PPPs.
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Quando a propriedade privada é mesclada com a pública em algum empreendimento, temos um arranjo socialista. Trata-se também de uma tática ardilosa empregada por aqueles em busca de poder, ainda que sob um nome mais sofisticado: Parceria Público-Privada.
As PPPs são essencialmente contratos entre uma agência pública e uma empresa privada. Nesse arranjo, ativos, riscos e remunerações são compartilhados no intuito de se fornecer um bem ou um serviço ao público. A justificativa para tal arranjo é que a iniciativa privada fornece maior eficiência e serviço de melhor qualidade, enquanto que a agência governamental é capaz de prover o capital adicional. Argumenta-se também que esse arranjo (potencialmente) leva a “empregados mais estimulados”, melhores oportunidades educacionais e uma melhor segurança pública. Outra vantagem alegada é que as agências governamentais conseguem economizar entre 20 e 50 por cento com o uso das PPPs.
A primeira PPP que se tem notícia ocorreu em 1652, quando a Water Works Company of Boston começou a fornecer água potável para os colonos de Massachusetts. Atualmente, as PPPs não são nenhuma novidade para a vasta maioria dos países do globo, uma vez que todos os governos e suas agências estão engajados nesse arranjo. As Parcerias Púbico-Privadas são normalmente utilizadas no setor de água/água residual, transporte, esgoto, desenvolvimento urbano, estradas e serviços sociais.
A economia neoclássica, ao classificar como “bens públicos” algumas áreas da economia, é parcialmente responsável pela justificativa de que o governo deve intervir justamente para fornecer esses bens e serviços. A maioria dos governos de hoje está centrada em levar as PPPs para muito além daquelas áreas que os economistas neoclássicos chamam de “bens públicos” (serviços de defesa, iluminação de ruas, etc.)
PPPs: uma análise econômica
Os governos utilizam as PPPs para justificar o envolvimento e a intervenção do estado, e tipicamente associam as PPPs à inovação, o que parece um paradoxo. Felizmente, os economistas austríacos podem mostrar as várias prováveis e inesperadas consequências da intervenção governamental na forma de PPPs, inclusive os (trágicos) efeitos sobre o empreendedorismo. Vamos discutir alguns desses, utilizando como guia o excelente e perspicaz livro de Mises, Bureaucracy. Dois tópicos frequentemente associados ao empreendedorismo — inovação e risco — talvez sejam os mais pertinentes à nossa discussão.
Inovação
Uma das razões que os governos mais gostam de utilizar como justificativa para essas parcerias é “estimular a inovação”. Há muitos motivos pelos quais tal objetivo é difícil, se não impossível. Empresas privadas que ganham um monopólio garantido pelo governo como consequência de uma PPP terão menos (ou nenhuma) concorrência, o que diminui qualquer incentivo para aumentar sua eficiência e ofertar serviços de melhor qualidade e produtos a preços mais baixos. Quando o governo garante sua receita — seja lhe concedendo um serviço monopolístico em que você pode livremente cobrar taxas pelos seus serviços, seja por meio de subsídios diretos —, haverá menos incentivo para se cortar custos.
A inovação também será menos provável caso a parceria especifique que as receitas serão obtidas em um arranjo do tipo “cost plus (custo mais)”, no qual a tarifa de um produto é fixada de acordo com o total dos custos mais o lucro do produtor. Nesse caso, as empresas terão garantida uma quantidade específica de lucro líquido, independente da receita ou do seu custo real. Quando o contrato da PPP garante um período de tempo (tipicamente em anos), as empresas podem não mais estar interessadas em aumentar seus lucros, uma vez que não há perigo em perder o monopólio dessa área de atuação durante o intervalo de tempo acordado. Assim, as PPPs não estão sujeitas ao severo teste de lucros e prejuízos que apenas o mercado oferece, dado que elas não têm como ter prejuízos.
Mises demonstrou o erro em tentar utilizar as PPPs como catalisadoras da inovação:
Dizer ao empreendedor dono de uma empresa com limitadas chances de lucro, “Comporte-se como um burocrata consciencioso”, é o equivalente a dizer a ele para evitar qualquer tipo de reforma. Ninguém pode ao mesmo tempo ser um burocrata correto e um inovador. O progresso ocorre exatamente quando as regras e regulações não o preveem; ele está necessariamente fora do campo das atividades burocráticas.
O progresso e a inovação são imobilizados por velhas regulamentações governamentais, velhos códigos e ideias estabelecidas. “Se não está quebrado, não conserte”, é o lema do burocrata estatal — e, como Mises demonstrou, estes são tipicamente homens de mentalidade estreita e com ideias já definidas sobre o que funciona e o que não funciona. Em contraste, a inovação é muito mais do que apenas se certificar de que um produto “não está quebrado”: trata-se de aperfeiçoar um produto que já funciona bem e que está em alta demanda (pense no iPhone para a tecnologia wireless ou no Google Chrome para navegadores da Web).
Contrariamente à iniciativa privada, empresas em parceria com o governo que desejem introduzir inovações serão obrigadas a passar por inúmeras formalidades e vários níveis de burocracia para conseguir a aprovação. Não fosse esse privilégio monopolístico garantido pelo governo, o tempo requerido para toda a aprovação burocrática iria eliminar qualquer vantagem adquirida pelo pioneiro de um determinado setor econômico.
Ademais, o capital utilizado no investimento não será necessariamente gerado pela poupança ou por operações de mercado, mas provavelmente por meio de um ‘orçamento compartilhado’ com o governo. Por fim, em vez de haver o incentivo de se obter o maior lucro possível, os governos frequentemente determinam um teto para o lucro total, e tributam ou confiscam completamente qualquer lucro acima da quantia arbitrariamente especificada, o que desestimula qualquer inovação.
Risco
O risco é outro aspecto que precisa ser analisado em relação às PPPs. Empresas que são privilegiadas com um contrato governamental podem, em algumas situações, ser mais avessas ao risco, já que o risco apenas perturba as circunstâncias prevalecentes, e aumenta a possibilidade de insucessos. Isso ocorre porque a empresa estará “segura” (isto é, sua receita está virtualmente garantida) caso não incorra em nenhum risco. Caso a empresa resolva se arriscar, quem sofrerá prejuízos será ela, e não o governo.
Empresas em parceria com o governo também perderão (em última instância) o controle sobre sua capacidade decisória. Por exemplo, o governo estará menos inclinado a permitir que uma empresa assuma riscos que possam afetar qualquer “receita” governamental que se origine dessa empresa. Manter o status quo é a regra do jogo. No final, as empresas terão de seguir os desejos e caprichos do governo – e não os de seus consumidores. A empresa verá riscos não no fato de o consumidor querer ou não comprar seus produtos e serviços, mas sim no fato de ela estar ou não em linha com os desígnios dos burocratas que a supervisionam. Assim, qualquer risco passa a ser centrado no agrado aos burocratas, em detrimento do agrado ao consumidor.
Por outro lado, riscos de falência são praticamente reduzidos a zero durante a extensão do contrato, uma vez que o governo tem a capacidade de subsidiar prejuízos por meio da tributação ou de outras medidas coercivas. Dado que é virtualmente impossível que pequenas empresas obtenham contratos governamentais, o que temos é a eliminação prematura de qualquer empresa incipiente e de qualquer investimento da pequena empresa naquele mercado específico. Assim, a concorrência e a ameaça de concorrência são quase nulas. Vemos que o governo é de fato o inimigo — e não o defensor, como errônea e comumente se imagina — do empreendedor incipiente, isto é, do “pequenininho”.
Em uma PPP, embora as receitas sejam garantidas pela duração do acordo, a estabilidade é limitada apenas à duração da atual administração, isto é, à confiança de que o governo manterá seus acordos e promessas. Ironicamente, exatamente pelo próprio ato de ter criado uma parceria público-privada em uma indústria, e por ter assim eliminado ou diminuído a concorrência, o governo acaba solapando qualquer confiança no mercado, uma vez que outras indústrias agora estarão em risco caso o governo venha a fazer mais acordos de parceria.
O que restou de capitalismo no mundo será extirpado e suplantado pelo corporativismo; qualquer reminiscência de livre mercado terá de se curvar às medidas coercivas do governo, o que resultará em monopólios e cartéis.
As PPPs como justificativa para o agigantamento do estado
Quando o governo está livre para se associar a qualquer empresa privada e garantir um acesso a terra, trabalho ou capital que não teria ocorrido na ausência dessa intervenção governamental, a propriedade de todos torna-se exposta ao risco de uma encampação governamental. Uma empresa privada normalmente não poderia construir uma rodovia que passasse pela propriedade privada de terceiros. Entretanto, o governo, por meio da desapropriação, pode se apossar da propriedade privada de indivíduos e construir praticamente o que desejar nelas. Em outras palavras, o governo pode não apenas extrair dinheiro de indivíduos (impostos), mas pode também tomar toda a sua propriedade privada (algo mais tangível).
Fora isso, parcerias público-privadas, por causa da palavra “privadas”, são normalmente vista como legítimas e, pior, como representantes de um genuíno capitalismo. Já a palavra “público” remete a governo, o que dá a impressão de legitimidade. Assim, as PPPs podem se expandir e se multiplicar sem justificativas reais e com pouca hostilidade. O (já errôneo e mal interpretado) significado de “bens públicos” é desta forma expandido para além da interpretação neoclássica inicial, passando a significar qualquer coisa que possa ser considerada boa para o público.
Murray Rothbard explica como que a violenta intervenção do governo em uma parte da economia resulta em um “caos calculacional”, o que inevitavelmente se propaga para outros setores da economia:
Cada empresa governamental introduz sua própria ilha de caos na economia; não há qualquer necessidade de esperar pelo socialismo genuíno para que o caos comece a operar. Nenhuma empresa governamental pode jamais determinar preços e custos, ou alocar fatores e fundos, de maneira racional e que maximize o bem-estar.
Rothbard em seguida declara que o governo não pode ser “gerido como uma empresa”:
Toda e qualquer operação governamental introduz um ponto de caos na economia. E, dado que todos os mercados de uma economia são interconectados, toda e qualquer atividade governamental irá distorcer e perturbar os preços, a alocação de fatores, a proporção entre consumo e investimento etc. Toda empresa governamental não apenas diminui o bem-estar social dos consumidores — por forçar a alocação de fundos para fins que não são aqueles desejados pelo público —, como também diminui o bem-estar de todos (incluindo, talvez, o bem-estar dos próprios funcionários do governo), pois distorce o mercado e espalha o caos calculacional. Quanto maior for a extensão das propriedades do governo, mais pronunciado será esse impacto, obviamente.
(Nesse artigo, Ludwig von Mises explica cristalinamente por que uma empresa governamental é incapaz de calcular preços em uma economia.)
Portanto, quanto maior o grau de envolvimento do governo em uma economia, maior o volume de caos calculacional, e mais perto estaremos do socialismo.
Conclusão: o poder das ideias
Em 1942, Joseph Schumpeter escreveu que os intelectuais ameaçariam e condenariam o capitalismo não pelos seus fracassos, mas pelos seus sucessos — e que o socialismo era inevitável. Parece que o povo deseja realmente ir em direção ao socialismo. Há cada vez mais clamores para que o governo intervenha em quase todos os aspectos das atividades cotidianas do cidadão — e como disse H.L. Mencken, “A democracia é a teoria de que as pessoas comuns sabem o que querem; e elas merecem receber o que desejam de modo severo e inflexível”. São necessárias inúmeras propagandas governamentais para que tal mensagem insensata seja promovida. Mises expressou acuradamente: “A verdade não precisa de qualquer propaganda; ela se sustenta a si mesma”.
O perigo das parcerias público-privadas e sua promoção tanto por burocratas do governo quanto por empresários foi talvez expresso da melhor forma por Rothbard:
Sempre que surgir um grande empresário abraçando com entusiasmo e júbilo a parceria entre governo e empresas, senhoras e senhores, é bom ficarem de olho em suas carteiras — vocês estarão prestes a ser espoliados. [No Brasil, tal empresário já é conhecido por todos, e sua estridência ao cantar as glórias do governo não possui rivais].
Entretanto, ainda há esperanças. Vivemos em um mundo de ideias, um mundo em que o teclado QWERTY é verdadeiramente mais poderoso do que o mais recente instrumento militar. A incompetência estatal, e a rapidez e magnitude dos fracassos governamentais estão por todos os lados. Quanto mais isto for exposto e puder ser substituído pela ideia de livre mercado — e com a maior tecnologia de comunicação da história, as ideias podem se espalhar mais rapidamente do que nunca —, mais rápida será a mudança em direção à genuíno liberdade da livre concorrência e, por conseguinte, a um nível de prosperidade jamais vivenciado. As parcerias público-privadas seriam extintas e desprezadas, sendo conhecidas apenas pelo que de fato são: um arranjo fascista que funciona como a porta de entrada para o socialismo; uma zombaria das genuínas parcerias e da genuína liberdade. Apenas neste ambiente, o empreendedorismo e a inovação estariam livres para prosperar.