Aula IV – As Influências Filosóficas da Escola Austríaca

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Ao adentrarmos na questão epistemológica da Escola Austríaca, é importante que se tenha uma noção básica sobre suas raízes filosóficas, que se encontram no que há de mais excelente no pensamento ocidental.

Carl Menger, o fundador da Escola Austríaca, e Ludwig von Mises, o sistematizador do seu método, não apareceram com as ideias prontas em suas cabeças, mas se sustentaram sobre os ombros de outros gigantes que os precederam.

Segundo David Gordon, pode-se remeter a influência filosófica de Menger a Aristóteles, através de Franz Brentano.[1] Franz Brentano foi um professor da Universidade de Viena durante o fim do século XIX e era um colega e amigo de Carl Menger. Ele sustentou a importância da intencionalidade nas ações, a qual seria uma espécie de ato mental. Teria sido sob influência dessa ideia que Menger desenvolveu a sua teoria do valor subjetivo.

O segundo grande expoente da Escola Austríaca, que foi Eugen von Böhm-Bawerk, também foi indiretamente influenciado por Aristóteles, mas por intermédio do filósofo medieval William de Occam.[2] Ele teria tirado desse autor a ideia de que um conceito, para ter significado, deve poder ser remetido às suas origens na percepção. Isto é, se um conceito não faz referência a algo que eu possa experimentar diretamente na realidade, ele não possui significado. Assim, para deixar claro, segundo William de Occam, o conceito deve se referir a algo diretamente perceptível pelos sentidos ou deve ser derivado de um conceito que faça tal referência direta.

Já Mises foi sobretudo influenciado por Immanuel Kant, o que se observa pela adoção da ideia de que existem categorias mentais que precedem e tornam possível toda experiência. Para Mises, só é possível reconhecer o que é uma ação na realidade porque já temos a categoria “ação humana” a priori em nossa mente. Sem isso, observaríamos apenas movimentos corporais, e não ações com sentido e finalidade.

A partir deste ponto, é importante esclarecer algo sobre a natureza das proposições da praxeologia e sua relação com a filosofia kantiana.

Segundo Kant, existem dois tipos de proposições: as analíticas e as sintéticas. As analíticas dizem algo que já estava implícito no conceito do objeto; por exemplo: o quadrado possui quatro lados. As sintéticas dizem algo que não estava implícito no conceito do objeto; por exemplo: o quadrado é azul. Estas se dividiriam, por sua vez, em dois outros tipos: as a priori e as a posteriori. As proposições sintéticas a priori seriam aquelas que dizem algo novo sobre o objeto sem recorrer à experiência; por exemplo: a menor distância entre dois pontos é uma linha reta. E as a posteriori diriam algo novo sobre o objeto a partir da experiência; por exemplo: a fruta está madura.

Hans-Hermann Hoppe, o último grande intelectual da Escola Austríaca até o presente momento, de cuja contribuição para a teoria da justiça falaremos mais à frente no curso, afirma que as proposições da praxeologia são sintéticas a priori.[3] Contudo, é preciso ter em mente que, segundo Mises, a praxeologia estuda as implicações do conceito de ação, donde suas conclusões são derivadas. Assim ele diz: “Todos os conceitos e teoremas da praxeologia estão implícitos na categoria ação humana. A tarefa fundamental consiste em extraí-los e deduzi-los, em explicar suas implicações e definir as condições universais da ação em si.”[4] Desse modo, pode-se concluir, acompanhando o pensamento de Daniel Sanchez, que as proposições da praxeologia não são sintéticas a priori, mas analíticas,[5] uma vez que extraem do conceito de ação aquilo que já fazia parte dele, aquilo que já estava contido dentro dele, analogamente a um arquivo WinRar sendo descompactado.

Isso não quer dizer que a praxeologia não forneça conhecimento novo. Ela fornece conhecimento novo no sentido de que ela lança luz sobre o que estava oculto e ordena o que estava disperso. As conclusões da trigonometria já estão todas contidas na definição de triângulo, e nem por isso se diz que essa ciência é puramente tautológica.

Ao contrário de Hoppe e Mises, que seguem uma linha kantiana, Rothbard se identifica mais com a tradição aristotélico-tomista, o que fica bastante claro nas primeiras páginas do seu livro A Ética da Liberdade, em que assume uma posição alinhada com o jusnaturalismo.[6]

Uma implicação da posição tomista de Rothbard é ele considerar que o pensamento se adéqua à realidade, ao passo que a posição kantiana de Mises diria o contrário: que é a realidade que se conforma ao pensamento.[7] Isso enquadraria Rothbard como um realista ontológico tradicional, e Mises como um realista empírico. O realismo empírico (mais conhecido como idealismo transcendental) é uma posição ontológica proposta por Kant segundo a qual nós só temos acesso aos fenômenos enquanto percebidos por nossas categorias, e não às coisas em si mesmas. “As categorias”, diz Immanuel Kant, “são conceitos que prescrevem leis a priori aos fenômenos”.[8] Ou seja, eu não vejo os fenômenos como as coisas em si, mas tais como são percebidos segundo a estrutura a priori da mente humana.

Assim Kant elucida na Crítica da Razão Pura: “Nós procuramos dizer, pois, que toda a nossa intuição não é senão a representação dos fenômenos; que as coisas que intuímos não são em si mesmas tal como as intuímos, nem as suas relações constituídas em si mesmas tal como nos aparecem; e que, se suprimíssemos o nosso sujeito, ou simplesmente a constituição subjetiva dos sentidos em geral, toda a constituição, todas as relações dos objetos no espaço e no tempo desapareceriam, não podendo, como fenômenos, existir em si mesmos, mas apenas em nós”.[9]

Observe que Kant diz “em nós”, e não “em mim”, indicando que a realidade que experimentamos é coletivamente objetiva. Existe um equívoco generalizado sobre a interpretação do idealismo transcendental kantiano. Muitos acreditam que esse idealismo significa que o ser humano não tem acesso à realidade, mas apenas a “fantasmagorias” que aparecem à sua volta, não existindo uma realidade objetiva. De acordo com Hoppe[10], porém, Kant deve ser interpretado como um realista, embora não do mesmo tipo que Aristóteles. Na verdade, não é que não tenhamos acesso à realidade; acontece que só temos acesso a ela através das categorias a priori da sensibilidade e do entendimento, as quais vêm incrustadas na nossa mente e sem as quais não seríamos capazes de ter nenhuma experiência. Dado isso, e uma vez que as categorias são iguais para todo mundo, tem-se que a realidade é objetiva.

Assim, apesar dessa divergência ontológica, tanto Rothbard quanto Mises e Hoppe admitem que existe uma realidade objetiva que serve como pano de fundo de todas as relações (humanas e físicas). Essas divergências filosóficas não foram empecilho para que existisse entre eles unanimidade sobre o caráter apriorístico da ciência econômica.

Em síntese, portanto, podemos dizer que a Escola Austríaca encontra suas raízes filosóficas em Kant, Tomás de Aquino e principalmente Aristóteles.

 

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Notas

[1] David Gordon, “As origens filosóficas da Economia Austríaca”. Disponível em: < https://rothbardbrasil.com/as-origens-filosoficas-da-economia-austriaca/>.

[2] Idem.

[3] Hans-Hermann Hoppe, A Ciência Econômica e o Método Austríaco, p. 20.

[4] Mises, Ação Humana, p. 94.

[5] Daniel Sanchez, “Mises sobre a mente e o método”. Disponível em: < https://rothbardbrasil.com/mises-sobre-a-mente-e-o-metodo/>.

[6] Rothbard, A Ética da Liberdade.

[7] Rothbard, “Em defesa do apriorismo extremo”. Disponível em: < https://rothbardbrasil.com/em-defesa-do-apriorismo-extremo/>.

[8] Immanuel Kant, Crítica da Razão Pura, 4. ed., Editora Vozes, p. 147.

[9] Idem, pp. 86-87.

[10] Hoppe, A Ciência Econômica e o Método Austríaco, p. 18.

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