§1
Uma contribuição para a crítica ao conceito de “atividade econômica”
A ciência econômica se originou na discussão do preço monetário de bens e serviços. Seus primórdios são encontrados nas investigações sobre cunhagem, que se desenvolveu em investigações do movimento dos preços. Dinheiro, preços monetários, e tudo em relação com o cálculo em termos de dinheiro — esses formam os problemas da discussão da qual a ciência da economia surgiu. Essas tentativas de investigação econômica, que são discerníveis em trabalhos de gerenciamento doméstico e de organização da produção — especialmente agrícola — não foram além nessa direção. Elas se tornaram meramente o ponto de partida para vários departamentos de tecnologia e ciência natural. E não foi por acaso. Apenas por meio da racionalização inerente no cálculo econômico baseado no uso do dinheiro, a mente humana vem a entender e traçar as leis de sua ação. Os primeiros economistas não se perguntaram o que “econômico” e “atividade econômica” realmente eram. Eles eram próximos o suficiente das grandes tarefas apresentadas pelos problemas particulares os quais eles estavam preocupados no momento. Eles não estavam preocupados com metodologia. Demorou muito até começarem a abordar os métodos e os objetivos finais da economia, assim como seu lugar no sistema geral do conhecimento. E então, um obstáculo foi encontrado que parecia ser intransponível — o problema de definir o tema da atividade econômica. Todas as investigações teóricas — aquelas dos economistas clássicos, igualmente como aquelas dos modernos — começam do princípio econômico. Ainda, como foi fatalmente percebido, isso não dá nenhuma base para definir claramente o tema da economia. O princípio econômico é um princípio geral da ação racional, e não um princípio específico de tal ação que constitui o objeto de investigação econômica.[1] O princípio econômico dirige toda a ação racional, toda ação capaz de se tornar tema de uma ciência. Parecia absolutamente inútil para separar o “econômico” do “não econômico”, pelo menos no que dizia respeito aos problemas econômicos tradicionais.[2]
Mas, por outro lado, era igualmente impossível dividir as ações racionais de acordo com o fim imediato para qual elas eram direcionadas, considerar como tema da economia apenas aquelas ações que eram direcionadas a prover à humanidade as mercadorias do mundo externo. Contra tal procedimento, é uma objeção decisiva que, em última análise, a provisão de bens materiais serve não somente aqueles fins que são geralmente denominados econômicos, mas também muitos outros fins.
Tal divisão dos motivos da ação racional envolve um conceito dual de ação-ação por motivos econômicos de um lado, e de outro, ação por motivos não econômicos — o que é absolutamente irreconciliável com a unidade necessária da vontade e da ação. Uma teoria de ação racional deve conceber tal ação como unitária.
§2
Ação Racional
Ação é baseada na razão, a ação, portanto, que só é entendida pela razão, conhece apenas um fim, o prazer maior do indivíduo agente. A obtenção de prazer, a fuga da dor, essas são suas intenções. Por isso, é claro, nós não queremos dizer “prazer” e “dor” no mesmo sentido em que esses termos costumavam ser usados. Na terminologia do economista moderno, o prazer é entendido como o que abarca todas aquelas coisas que o homem considera desejáveis, tudo o que ele quer e pelo que ele luta. Portanto, não há mais um contraste entre a ética “nobre” do dever e a ética hedonista vulgar. O conceito moderno de prazer, felicidade, utilidade, satisfação e similares incluem todas as necessidades humanas, independentemente dos motivos da ação serem morais ou imorais, nobres ouvis, altruístas ou egoístas.[3]
De modo geral, os homens agem somente porque eles não estão completamente satisfeitos. Se eles pudessem sempre gozar de completa felicidade, eles seriam sem vontade, sem desejo, sem ação. Na terra dos lotófagos, não há ação. A ação surge apenas da necessidade, da insatisfação. É a luta propositada em relação a algo. Seu fim último é sempre se livrar da condição a qual é concebida como deficiente — para preencher uma necessidade, para atingir satisfação, para aumentar a felicidade. Se os homens tivessem todos os recursos externos da natureza tão abundantemente a sua disposição, eles seriam capazes de obter completa satisfação pela ação, então eles poderiam usá-los imprudentemente. Eles só teriam de considerar seus próprios poderes e o tempo limitado a sua disposição. Pois, comparado com a soma de suas necessidades, eles ainda teriam apenas uma força limitada e um tempo de vida limitado disponíveis. Eles ainda teriam de economizar tempo e trabalho. Mas para em relação à economia material, eles seriam indiferentes. Na verdade, contudo, os materiais também seriam limitados, tanto que eles também têm de ser usados de tal forma que as necessidades mais urgentes sejam satisfeitas primeiro, com a menor despesa possível de materiais para cada satisfação. As esferas da ação racional e da ação econômica são, portanto, coincidentes. Toda escolha racional é econômica. Toda atividade econômica é ação racional. Toda ação racional é, em primeiro lugar, ação individual. Apenas o indivíduo pensa. Apenas o indivíduo raciocina. Apenas o indivíduo age. Como a sociedade surge da ação dos indivíduos será mostrada numa parte posterior da nossa discussão.
§3
Cálculo Econômico
Toda ação humana, desde que seja racional, aparece como a troca de uma condição por outra. Os homens aplicam bens econômicos, tempo pessoal e trabalho na direção que, sob dadas circunstâncias, promete o maior grau de satisfação, e eles abandonam a satisfação de necessidades menores para satisfazer as necessidades mais urgentes. Essa é a essência da atividade econômica — a realização de atos de mudança.[4],[5]
Todo homem que, no curso da atividade econômica, escolhe entre a satisfação de duas necessidades, em que apenas uma delas pode ser satisfeita, faz julgamentos de valor. Tais julgamentos interessam primeiramente e diretamente às próprias satisfações; é apenas desses que eles são refletidos de volta aos bens. Via de regra, qualquer um em posse desses sentidos é capaz de imediatamente avaliar bens que estão prontos para o consumo. Sob condições bem simples, ele deve ter também pouca dificuldade em formar um julgamento sobre a significância relativa a ele dos fatores de produção. Quando, porém, as condições são complicadas, e a conexão entre as coisas é mais difícil de detectar, nós temos que realizar cálculos mais delicados para avaliar tais instrumentos. Homens isolados podem facilmente decidir se irão estender sua caça ou seu plantio. O processo de produção que ele tem que levar em consideração é relativamente curto. O gasto que eles demandam e o produto que eles proporcionam podem ser facilmente percebidos como um todo. Mas, escolher usar uma cachoeira para produzir eletricidade ou estender a mineração de carvão e utilizar melhor a energia contida no carvão é outra história. Aqui, os processos da operação são tantos e tão longos, as condições necessárias para o sucesso da operação são tão numerosas, que não podemos nunca nos contentar com ideias vagas. Para decidir se um empreendimento é sólido, nós temos que calcular cuidadosamente.
Mas, o cálculo demanda unidades. E não pode haver unidade do valor de uso subjetivo das mercadorias. A utilidade marginal não fornece unidade de valor. O valor de duas unidades de uma dada mercadoria não é duas vezes maior que uma — embora seja necessariamente maior ou menor que uma. Julgamentos de valor não mensuram: eles arranjam, graduam.[6] Ao depender somente da valoração subjetiva, até mesmo o homem isolado não pode chegar em uma decisão baseada em um cálculo mais ou menos exato em casos que a solução não é imediatamente evidente. Para ajudar em seus cálculos, ele deve assumir relações de substituição entre mercadorias. Via de regra, ele não será capaz de reduzir todas a uma unidade comum. Mas, ele pode ter sucesso ao reduzir todos os elementos no cálculo para tais mercadorias que ele possa avaliar imediatamente, ou seja, para bens prontos para o consumo e para a desutilidade do trabalho, então ele poderá basear suas decisões nessa evidência. É óbvio que isso só é possível em casos muito simples. Para processos de produção mais complicados e longos, isso estaria fora de questão.
Em uma economia de trocas, o valor objetivo de troca de mercadorias se torna a unidade de cálculo. Isso envolve uma vantagem tripla. Em primeiro lugar, nós somos capazes de tomar como base de cálculo a valoração de todos os indivíduos participantes da troca. A valoração de um indivíduo não é diretamente comparável com a valoração subjetiva dos outros. Ela só se torna como um valor de troca decorrente da interação das valorações subjetivas de todos que participam da compra e da venda. Segundo, os cálculos desse tipo fornecem um controle sobre o apropriado uso dos meios de produção. Eles permitem a aqueles que desejam calcular o custo de processos complicados de produção ver se eles estão funcionando tão economicamente quanto os outros. Se, sob os preços de mercado predominantes, eles não podem conduzir o processo com lucro, é uma prova clara que outros são mais capazes de lucrar com os bens instrumentais em questão. Finalmente, os cálculos baseados em valores de troca nos permitem reduzir valores a uma unidade comum. E já que as negociações no mercado estabelecem relações de substituição entre mercadorias, qualquer mercadoria desejada pode ser escolhida para esse propósito. Em uma economia monetária, a moeda é a mercadoria utilizada.
Os cálculos monetários têm seus limites. O dinheiro não é uma régua de valores nem de preços. O dinheiro não mensura valor. Nem os preços são medidos em dinheiro: eles são quantidades de dinheiro. E, embora aqueles que descrevem o dinheiro como um “padrão de pagamentos diferidos” o assumem ingenuamente, como uma mercadoria, ele não é estável em valor. A relação entre dinheiro e bens perpetuamente flutua não somente no “lado dos bens”, mas também no ‘lado do dinheiro’. Via de regra, é claro, essas flutuações não são tão violentas. Elas não prejudicam muito o cálculo econômico, pois sob um estado de mudança contínua de todas as condições econômicas, esse cálculo leva em conta somente períodos comparativamente curtos, em que um “dinheiro sólido” pelo menos não altera seu poder de compra em um grau tão elevado.
As deficiências dos cálculos monetários surgem, na maioria das vezes, não porque elas são feitas em termos de um meio geral de troca, o dinheiro, mas porque elas são baseadas em valores de troca em vez de valores de uso subjetivos. Por esse motivo, todos os elementos de valor que não são sujeitos de troca fogem de tais cálculos. Se, por exemplo, nós considerarmos se uma hidrelétrica seria lucrativa, nós não podemos incluir nos cálculos o dano que será causado à beleza das cachoeiras a não ser que a queda de valor devido à queda do tráfego de turistas seja levada em conta. Ainda assim, devemos certamente levar tais considerações ao decidir se o empreendimento deve ser realizado.
Considerações como essas são geralmente denominadas ‘não econômicas’. E nós podemos permitir o uso dessas expressões em disputas em que ganhos na terminologia levem a nada. Mas, nem todas essas considerações devem ser chamadas de irracionais. A beleza de um lugar ou um edifício, a saúde da espécie, a honra de indivíduos e nações, mesmo se (porque eles não são lidados no mercado) eles não entrarem nas relações de troca, eles são tão motivos de ação racional, desde que as pessoas os achem significantes, quanto aqueles normalmente chamados de econômicos. Que eles não possam entrar nos cálculos monetários surge da própria natureza desses cálculos. Mas, isso de forma alguma diminui o valor dos cálculos monetários em questões econômicas comuns. Pois todos os bens morais são bens de primeira ordem. Nós podemos valorizá-los diretamente; e, portanto, não temos dificuldade em levá-los em conta, mesmo que eles estejam fora da esfera do cálculo monetário. Que eles fujam de tais cálculos não os torna mais difíceis de tê-los em mente. Se sabemos precisamente quanto temos de pagar por beleza, saúde, honra, orgulho, e similares, nada precisa nos impedir de lhes darmos a devida consideração. Pessoas sensíveis podem ficar magoadas ao ter de escolher entre o ideal e o material. Mas, isso não é culpa da economia monetária. Está na natureza das coisas. Pois mesmo onde nós podemos fazer julgamentos de valor sem cálculos monetários, não podemos evitar essa escolha. Tanto o homem isolado quanto as comunidades socialistas teriam de fazer da mesma forma, e naturezas genuinamente sensíveis nunca achariam doloroso. Ao ter de escolher entre o pão e a honra, eles nunca ficarão sem saber como agir. Se a honra não puder ser comida, comer pode pelo menos substituir a honra. Somente aqueles que temem a agoniada escolha porque sabem secretamente que não podem renunciar ao material, considerarão a necessidade da escolha uma profanação.
Cálculos monetários só são significativos para propósitos de cálculo econômico. Aqui eles são usados para que as disposições de mercadorias possam se confirmar com o critério da economia. E tais cálculos levam em consideração as mercadorias somente nas proporções em que, sob determinadas condições, são trocadas por dinheiro. Toda extensão da esfera do cálculo monetário é enganosa. É enganosa quando, nas pesquisas históricas, é empregada uma mensuração do valor passado das mercadorias. É enganosa quando é empregada para estimar o capital nacional ou a renda nacional. É enganosa quando é empregada para estimar o valor de coisas que não são permutáveis, como, por exemplo, quando as pessoas tentam estimar a perda devido à imigração ou à guerra.[7] Todos esses são diletantismos -mesmo quando são realizados pelos economistas mais competentes.
Mas, dentro desses limites — se na vida prática eles não são ultrapassados — o cálculo monetário faz tudo o que temos direito de pedir. Ele fornece um guia em meio à multidão desconcertante de possibilidades econômicas. Ele nos permite estender os julgamentos de valor que se aplicam diretamente somente aos que se aplicam diretamente apenas aos bens de consumo ou, na melhor das hipóteses, aos bens de produção de ordem inferior — todos os bens de ordens superiores. Sem ele, toda a produção por meio de processos longos e indiretos seria um tiro no escuro.
Duas coisas são necessárias para que os cálculos do valor em termos de dinheiro ocorram. Em primeiro lugar, não apenas os bens prontos para consumo, mas também os de ordens superiores devem ser permutáveis. Se não fosse assim, um sistema de relações de troca não poderia emergir. É verdade que se um homem isolado está “trocando” trabalho e farinha por pão dentro de sua própria casa, as considerações que ele deve levar em conta não são diferentes daquelas que regeriam suas ações se ele trocasse pão por roupas no mercado. E é, portanto, bastante correto considerar toda atividade econômica, mesmo a atividade econômica do homem isolado, como troca. Mas, nenhum homem, seja ele o maior gênio da história, tem um intelecto capaz de decidir a importância relativa de cada um de um número infinito de bens de ordens superiores. Nenhum indivíduo poderia discriminar entre o número infinito de métodos alternativos de produção de tal maneira que pudesse fazer julgamentos diretos de seu valor relativo sem cálculos auxiliares. Em sociedades baseadas na divisão do trabalho, a distribuição dos direitos de propriedade afeta uma espécie de divisão mental do trabalho, sem a qual nem a economia nem a produção sistemática seriam possíveis.
Em segundo lugar, deve haver um meio geral de troca, um dinheiro, em uso. E isso deve servir como um intermediário na troca de bens de produção igualmente com o resto. Se não fosse assim, seria impossível reduzir todas as relações de troca a um denominador comum.
Somente em condições muito simplórias é possível dispensar os cálculos de dinheiro. No círculo estreito de uma casa fechada, onde o pai pode supervisionar tudo, ele pode ser capaz de avaliar as alterações nos métodos de produção sem recorrer ao cálculo monetário. Pois, em tais circunstâncias, a produção é realizada com relativamente pouco capital. Poucos métodos indiretos de produção são empregados. Via de regra, a produção preocupa-se com os bens de consumo, ou bens de ordens superiores não muito distantes dos bens de consumo. A divisão do trabalho ainda está em seus estágios iniciais. O trabalhador realiza a produção de uma mercadoria do início ao fim. Em uma sociedade avançada, tudo isso muda. É impossível argumentar com base na experiência das sociedades primitivas que, nas condições modernas, podemos dispensar o dinheiro.
Nas condições simples de um lar autossuficiente, é possível fazer um levantamento de todo o processo de produção do início ao fim. É possível julgar se um determinado processo fornece mais bens de consumo do que outro. Mas, nas condições incomparavelmente mais complicadas de nossos dias, isso não é mais possível. É verdade que uma sociedade socialista poderia enxergar que 1000 litros de vinho são melhores do que 800 litros. Ela poderia decidir se 1000 litros de vinho seriam ou não preferíveis a 500 litros de óleo. Tal decisão não envolveria cálculos. A vontade de algum homem decidiria. Mas, o verdadeiro negócio da administração econômica, adaptação dos meios aos fins, só começa quando tal decisão é tomada. E só o cálculo econômico torna essa adaptação possível. Sem essa assistência, no caos desconcertante de materiais e processos alternativos, a mente humana estaria completamente perdida. Sempre que tínhamos que decidir entre diferentes processos ou diferentes centros de produção, estivemos totalmente perdidos.[8]
Supor que uma comunidade socialista poderia substituir cálculos em espécie por cálculos em termos de dinheiro é uma ilusão. Em uma comunidade que não pratica a troca, os cálculos em espécie nunca podem cobrir mais do que bens de consumo. Eles se perdem completamente quando se trata de bens de ordem superior. Uma vez que a sociedade abandona o livre preço dos bens de produção, a produção racional torna-se impossível. Cada passo que se afasta da propriedade privada dos meios de produção do uso do dinheiro é um passo para longe da atividade econômica racional.
Foi possível ignorar tudo isso porque o socialismo que conhecemos em primeira mão existe apenas, poderíamos dizer, em oásis socialistas nos quais, para o resto, é um sistema baseado na livre troca e no uso da moeda. Nessa medida, de fato, podemos concordar com a insustentável alegação socialista — ela só é empregada para fins propagandistas- de que empreendimentos nacionalizados e municipalizados dentro de um sistema capitalista de outra forma não são socialismo. Pois a existência de um sistema circundante de preços livres sustenta tais preocupações em seus negócios a tal ponto que neles a peculiaridade essencial da atividade econômica sob o socialismo vem à luz. Em empreendimentos estaduais e municipais, ainda é possível realizar melhorias técnicas, pois é possível observar os efeitos de melhorias parecidas em empreendimentos privados semelhantes no país e no exterior. Em tais casos, ainda é possível determinar as vantagens da reorganização, porque eles estão cercados por uma sociedade que ainda se baseia na propriedade privada dos meios de produção e no uso do dinheiro. Ainda é possível para eles manter livros e fazer cálculos que, para interesses semelhantes em um ambiente puramente socialista, estariam inteiramente fora de questão. Sem cálculo, a atividade econômica é impossível. Visto que sob o socialismo o cálculo econômico é impossível, sob o socialismo não pode haver atividade econômica em nosso sentido da palavra. Com coisas pequenas e insignificantes, a ação racional ainda pode persistir. Mas, na maioria das vezes, não seria mais possível falar em produção racional. Na ausência de critérios de racionalidade, a produção não poderia ser conscientemente econômica.
Por algum tempo, possivelmente, a tradição acumulada de milhares de anos de liberdade econômica preservaria a arte da administração econômica da completa desintegração. Os homens preservariam os velhos processos não porque foram racionais, mas porque foram santificados pela tradição. Enquanto isso, no entanto, mudanças nas condições os tornariam irracionais. Eles se tornariam antieconômicos como resultado das mudanças provocadas pelo declínio geral do pensamento econômico. É verdade que a produção não seria mais ‘anárquica’. O comando de uma autoridade suprema governaria a atividade de abastecimento. Em vez da economia da produção “anárquica”, o comando sem sentido de uma máquina irracional seria suprema. As rodas girariam, mas sem efeito algum.
Vamos tentar imaginar a posição de uma comunidade socialista. Haverá centenas e milhares de estabelecimentos em que o trabalho está ocorrendo. Uma minoria deles produzirá bens de pronto uso. A maioria produzirá bens de capital e semimanufaturados. Todos esses estabelecimentos estarão intimamente ligados. Cada mercadoria produzida passará por toda essa série de estabelecimentos antes de estar pronta para o consumo. Ainda assim, na pressão incessante de todos esses processos, a administração econômica não terá um verdadeiro senso de direção. Não haverá nenhum meio de verificar se um dado produto é realmente necessário, se o trabalho e os materiais não estão sendo desperdiçados para sua conclusão. Como descobririam qual dos dois processos era o mais satisfatório? Na melhor das hipóteses, poderiam comparar a quantidade de produtos finais. Mas, apenas raramente poderiam comparar os gastos incorridos em sua produção. Eles saberiam exatamente — ou pensariam que sabiam — o que queriam produzir. Eles devem, portanto, começar a obter os resultados desejados com o menor gasto possível. Mas, para fazer isso, teriam de ser capazes de fazer cálculos. E esses cálculos devem ser cálculos de valor. Eles não podem ser meramente “técnicos”, não podem ser cálculos do valor de uso objetivo de bens e serviços. Isso é tão óbvio que não precisa de mais demonstração.
Sob um sistema baseado na propriedade privada dos meios de produção, a escala de valores é o resultado das ações de cada membro autônomo da sociedade. Cada um desempenha um papel duplo em seu estabelecimento, primeiro como consumidor, depois como produtor. Como consumidor, ele estabelece a valoração dos bens prontos para o consumo. Como produtor, ele orienta os bens de produção para os usos que geram um volume maior do produto. Desse modo, todos os bens de ordens superiores também são classificados de acordo com as condições de produção existentes e as demandas da sociedade. A interação desses dois processos garante que o princípio econômico seja observado tanto no consumo quanto na produção. E, dessa forma, surge exatamente o sistema graduado de preços que permite a cada um enquadrar sua demanda em linhas econômicas.
Sob o socialismo, não há, necessariamente, nada disso. A administração econômica pode, de fato, saber exatamente quais mercadorias são necessárias com mais urgência. Mas, isso é apenas metade do problema. A outra metade, a valorização dos meios de produção, ela não pode resolver. Ela pode determinar o valor da totalidade de tais instrumentos. Isso é obviamente igual ao valor das satisfações que eles oferecem. Se calcular a perda que incorreria ao retirá-los, também pode apurar o valor dos instrumentos individuais de produção. Porém, ela não pode assimilá-los a um denominador comum de preços, como pode ser feito em um sistema de liberdade econômica e preços monetários.
Não é necessário que o socialismo dispense totalmente a moeda. É possível conceber arranjos que permitam o uso da moeda na troca de bens de consumo. Mas, uma vez que os preços dos vários fatores de produção (incluindo o trabalho) não podem ser expressos em moeda, a moeda não pode desempenhar nenhum papel nos cálculos econômicos.[9]
Suponha, por exemplo, que a comunidade socialista contemplava uma nova linha ferroviária. Uma nova linha ferroviária seria uma coisa boa? Se sim, qual das muitas rotas possíveis ela deve cobrir? Sob um sistema de propriedade privada, poderíamos usar cálculos monetários para decidir essas questões. A nova linha baratearia o transporte de certos itens e, com base nisso, poderíamos estimar se a redução nos custos de transporte seria grande o suficiente para contrabalançar os gastos envolvidos na construção e no funcionamento da linha. Tal cálculo só poderia ser feito em termos monetários. Não poderíamos fazer isso comparando várias classes de despesas e economias em espécie. Se está fora de questão reduzir a uma unidade comum as quantidades de vários tipos de mão de obra qualificada e não qualificada, ferro, carvão, materiais de construção de diferentes tipos, maquinaria e outras coisas de que a construção e manutenção de ferrovias necessitam, então, é impossível torná-los objeto de cálculo econômico. Só podemos fazer planos econômicos sistemáticos quando todas as mercadorias que temos de levar em conta podem ser assimiladas à moeda. É verdade que os cálculos monetários são incompletos. É verdade que eles têm deficiências profundas. Contudo, não temos nada melhor para colocar em seu lugar. E, em condições monetárias sólidas, eles são suficientes para fins práticos. Se os abandonarmos, o cálculo econômico torna-se absolutamente impossível.
Isso não quer dizer que a comunidade socialista ficaria totalmente perdida. Ela decidiria a favor ou contra o empreendimento proposto e emitiria um decreto. Mas, na melhor das hipóteses, tal decisão seria baseada em valorações vagas. Ela não poderia ser baseada em cálculos exatos de valor.
Uma sociedade estacionária poderia, de fato, dispensar esses cálculos. Pois lá as operações econômicas apenas se repetem, de modo que, se assumirmos que o sistema de produção socialista fosse baseado no último estado do sistema de liberdade econômica no qual ele substituiu, e que nenhuma mudança ocorreria no futuro, poderíamos, de fato, conceber um socialismo racional e econômico. Mas, apenas em teoria. Um sistema econômico estacionário nunca poderia existir. As coisas mudam continuamente, e o estado estacionário, embora necessário como auxílio à especulação, é uma suposição teórica para a qual não há correspondência na realidade. E, além disso, a manutenção de tal conexão com o último estado da economia de troca estaria fora de questão, uma vez que a transição para o socialismo, com sua equalização de rendas, necessariamente transformaria todo o “conjunto” de consumo e produção. E então temos uma comunidade socialista que deve cruzar todo o oceano de permutações econômicas possíveis e imagináveis sem a bússola do cálculo econômico.
Toda mudança econômica, portanto, envolveria operações cujos valores não poderiam ser previstos de antemão, nem verificados após terem acontecido. Tudo seria um salto no escuro. O socialismo é a renúncia da economia racional.
§4
A economia capitalista
Os termos “capitalismo” e “produção capitalista” são bordões políticos. Eles foram inventados pelos socialistas, não para ampliar o conhecimento, mas para acusar, criticar e condenar. Hoje, eles só precisam ser pronunciados para evocar uma imagem da exploração implacável de escravos assalariados pelos ricos impiedosos. Quase nunca são usados, exceto para sugerir uma doença no corpo político. Do ponto de vista científico, são tão obscuros e ambíguos que não têm valor algum. Seus usuários concordam apenas nisso, que indicam as características do sistema econômico moderno. Mas, em que consistem essas características é sempre uma questão disputada. Seu uso, portanto, é inteiramente pernicioso, e a proposta de expulsá-los totalmente da terminologia econômica e deixá-los para os matadores da agitação popular mereceria consideração.[10]
Se, no entanto, desejamos descobrir para tais termos uma aplicação precisa, devemos partir da ideia dos cálculos de capital. E uma vez que estamos preocupados apenas com a análise dos fenômenos econômicos reais, e não com a teoria econômica — onde “capital” é geralmente usado em um sentido especialmente estendido a propósitos específicos, devemos primeiro perguntar que significado está atribuído ao termo na prática empresarial. Lá, descobrimos que ele é usado apenas para fins de cálculo econômico. Serve para colocar as propriedades originais de um interesse sob uma denominação, quer consistissem em moeda ou fossem apenas expressas em moeda.[11] A finalidade de seus cálculos é permitir-nos verificar o quanto o valor dessa propriedade foi alterado no curso das operações comerciais. O conceito de capital é derivado do cálculo econômico. Seu verdadeiro lar é a contabilidade — o principal instrumento da racionalidade comercial. O cálculo em termos monetários é um elemento essencial do conceito de capital.[12]
Se o termo capitalismo é usado para designar um sistema econômico no qual a produção é governada por cálculos de capital, ele adquire um significado especial para definir a atividade econômica. Compreendido assim, não é de forma alguma enganoso falar de capitalismo e dos métodos capitalistas de produção, e de expressões como o espírito capitalista e a disposição anticapitalista que adquirem uma conotação rigidamente circunscrita. O capitalismo é mais adequado para ser a antítese do socialismo do que o individualismo, que muitas vezes é usado dessa forma. Via de regra, aqueles que contrastam o socialismo com o individualismo partem do pressuposto tácito de que existe uma contradição entre os interesses do indivíduo e o interesse da sociedade, e que, enquanto o socialismo considera o bem-estar público como objeto, o individualismo atende aos interesses de pessoas particulares. Uma vez que essa é uma das falácias sociológicas mais graves, devemos evitar cuidadosamente qualquer forma de expressão que possa permitir que ela apareça sorrateiramente.
De acordo com Passow, onde o termo capitalismo é usado corretamente, a associação que ele pretende transmitir está geralmente ligada ao desenvolvimento e disseminação de empreendimentos de grande escala.[13] Podemos admitir isso — mesmo que seja bastante difícil de conciliar com o fato de que as pessoas costumam falar de “Grosskapital” (grande capital) e “Grosskapitalist” (grande capitalista) e então de “Kleinkapitalisten” (pequenos capitalistas). Mas, se lembrarmos que somente o cálculo do capital possibilita o crescimento de empresas e empreendimentos gigantes, isso de forma alguma invalida as definições que propomos.
§5
O sentido mais estrito de economia
O hábito comum dos economistas de distinguir entre ação “econômica” ou “puramente econômica” e “não econômica” é tão insatisfatório quanto a antiga distinção entre bens ideais e materiais, pois o querer e o agir são unitários. Todos os fins conflitam entre si e é esse conflito que os varia em uma escala. Não apenas a satisfação de desejos, vontades e impulsos que podem ser alcançados por meio da interação com o mundo externo, mas também a satisfação de necessidades ideais deve ser julgada por um critério. Na vida, temos que escolher entre o “ideal” e o “material”. É, portanto, tão essencial sujeitar os primeiros a um critério unitário de valores quanto os segundos. Ao escolher entre pão e honra, fé e riqueza, amor e dinheiro, submetemos ambas as alternativas a um único teste.
É, portanto, ilegítimo considerar o “econômico” como uma esfera definida da ação humana que pode ser nitidamente diferenciada de outras esferas de ação. A atividade econômica é uma atividade racional e, uma vez que a satisfação total é impossível, a esfera da atividade econômica é contígua à esfera da ação racional. Ela consiste, em primeiro lugar, na valoração dos fins e, em seguida, na valoração dos meios que conduzem a esses fins. Toda atividade econômica depende, portanto, da existência de fins. Os fins dominam a economia e por si mesmos lhe dão sentido.
Já que o princípio econômico se aplica a todas as ações humanas, é necessário ter muito cuidado ao distinguir, dentro de sua esfera, entre “puramente econômica” e outros tipos de ação. Tal divisão é, de fato, indispensável para muitos propósitos científicos. Ela destaca um fim específico e o contrasta com todos os outros. Este fim — nesse ponto, não precisamos discutir se é derradeiro ou não — é a obtenção do maior produto possível medido em moeda. É, portanto, impossível atribuir a ele uma esfera especialmente delimitada de ação. É verdade que para cada indivíduo há tal esfera, mas isso varia em extensão de acordo com a perspectiva geral do indivíduo em questão. É uma coisa para o homem que preza pela honra. É outra para quem vende seu amigo por ouro. Nem a natureza do fim nem a peculiaridade dos meios é o que justifica a distinção, mas apenas a natureza especial dos métodos empregados. Apenas o fato de usar cálculos exatos distingue a ação “puramente econômica” de outra ação.
A esfera do “puramente econômico” é nada mais e nada menos do que a esfera do cálculo monetário. O fato de que em um determinado campo de ação ele nos permite comparar meios com exatidão minuciosa, até os menores detalhes, significa tanto para o pensamento quanto para a ação que tendemos a dar importância especial a esse tipo de ação. É fácil ignorar o fato de que tal distinção é apenas uma distinção na técnica de pensamento e ação e, de forma alguma, uma distinção no fim último da ação — que é unitário. O fracasso de todas as tentativas de exibir o “econômico” como um departamento especial da racionalidade e, dentro dele, descobrir ainda outro departamento nitidamente definido, o “puramente econômico”, não é culpa do aparato analítico empregado. Não há dúvida de que uma grande sutileza de análise foi concentrada neste problema, e o fato de que não foi resolvido indica claramente que nenhuma resposta satisfatória pode ser dada para essa questão. A esfera do “econômico” é claramente a mesma que a esfera da racionalidade: e a esfera do “puramente econômico” nada mais é do que a esfera em que o cálculo monetário é possível.
Em última instância, o indivíduo pode reconhecer um e apenas um fim: a obtenção da maior satisfação. Esta expressão inclui a satisfação de todos os tipos de vontades e desejos humanos, independentemente de serem “materiais” ou imateriais (morais). No lugar da palavra “satisfação” poderíamos empregar a palavra “felicidade” não tivéssemos temido os mal-entendidos pelos quais a polêmica sobre o Hedonismo e o Eudemonismo foi responsável.
A satisfação é subjetiva. A filosofia social moderna enfatizou isso tão nitidamente, em contraste com as teorias anteriores, que há uma tendência a esquecer que a estrutura fisiológica da humanidade e a unidade de perspectiva e emoção decorrentes da tradição, criam uma vasta semelhança de pontos de vista sobre os desejos e os meios para satisfazê-los. É precisamente essa semelhança de pontos de vista que torna a sociedade possível. Por termos objetivos comuns, a humanidade pode viver em conjunto. Contra esse fato de que a maioria dos fins (e os mais importantes) são comuns ao grande conjunto da humanidade, o fato de que alguns fins só são atendidos por alguns é de importância secundária.
A divisão costumeira entre razões econômicas e não econômicas é, portanto, invalidada pelo fato de que, por um lado, o fim da atividade econômica está fora do escopo da economia e, por outro, que toda atividade racional é econômica. No entanto, há uma boa justificativa para separar atividades “puramente econômicas” (isto é, atividades passíveis de valoração em termos monetários) de todas as outras formas de atividade. Pois, como já vimos, fora da esfera do cálculo monetário, permanecem apenas fins intermediários que são passíveis de avaliação por inspeção imediata: e uma vez que estamos fora dessa esfera, é necessário recorrer a tais julgamentos. É o reconhecimento dessa necessidade que dá motivo para a distinção sobre a qual viemos discutindo.
Se, por exemplo, uma nação deseja fazer guerra, é ilegítimo considerar o desejo como necessariamente irracional porque o motivo para fazer a guerra está fora daqueles normalmente considerados “econômicos” — como poderia ser o caso de, por exemplo, guerras religiosas. Se a nação decide ir à guerra com o conhecimento completo de todos os fatos porque julga que o fim em vista é mais importante do que o sacrifício envolvido, e porque considera a guerra como o meio mais adequado para obtê-lo, então a guerra não pode ser considerada irracional. Não é necessário, neste ponto, decidir se essa suposição é verdadeira agora ou se poderá vir a ser verdadeira. É precisamente isso que deve ser examinado quando se trata de escolher entre a guerra e a paz. E é precisamente com o objetivo de introduzir clareza em tal exame que a distinção discutindo foi introduzida.
Basta lembrar quantas vezes as guerras ou tarifas são recomendadas como um “bom negócio” do ponto de vista “econômico” para perceber o quanto isso é esquecido. Quão mais claras teriam sido as discussões políticas do século passado se a distinção entre os fundamentos de ação nos campos “puramente econômicos” e “não econômicos” tivessem sido considerados.
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Notas
[1] Foi deixado à escola empirista-realista, com sua terrível confusão de todos os conceitos, explicar o princípio econômico como uma especificidade da produção sob uma economia monetária; e.g. Lexis, Allgemeine Volkswirtschaftslehre, Berlim and Leipzig 1910, p. 15.
[2] Amonn, Objekt und Grundbegriffe der theoretischen Nationaiokonomie, 2nd Edition, Viena e Leipzig 19: a7, p. 185.
[3] J. S. Mill, Das Nüffllichkeitsprinzip, translated by Wahrmund (Gesammelte Werke, Deutsche Ausgabe von Th. Gomperz, Vol. I, Leipzig 1869, pp. 125-200).
[4] Schumpeter, Das Wesen und der Hauptinhalt der theoretischen Nationalökonomie, Leipzig 1908, pp. 50, 80.
[5] Os comentários a seguir reproduzem partes do meu ensaio Die Wirtschaftsrechnung im sozialistichen Gemeinwesen (Archiv fur Sozialwissenschaft, Vol. XLVII, pp. 86-121).
[6] Cuhel, Zur Lehre von den Bedürfnissen, Innsbruck 1907, p. 198.
[7] Wieser, Uber den Ursprung und die Hauptgesetze des wirtschaftlichen Wertes, Viena 1884, p. 185 et seq.
[8] Gottl-Ottlilienfeld, Wirtschaft und Technik (Grundriss der Sozialökonomik, II, Tübingen 1914), p. 216.
[9] Neurath também admitiu isso. (Durch die Kriegnuirtschaft zur Naturalwirtschaft, München 1919, p. 216 et seq.) Ele afirma que toda economia completamente administrativa (economia planejada) é, em última análise, uma economia natural (sistema de escambo). “Socializar, portanto, significa avançar a economia natural.” Neurath, contudo, não reconheceu as dificuldades insuperáveis do cálculo econômico numa comunidade socialista.
[10] Passow, Kapitalismus, eine begrfflich-terminologische Studie, Jena 1918, p. 1 et seq. Na segunda Edição, publicada em 1927, Passow expressou a opinião (p. 15, nota 2), em vista da maioria da literatura recente, que o termo “capitalismo” pode com o tempo perder seu aspecto moral.
[11] Karl Menger, Zur Theorie des Kapitals, (S.A. aus den Jahrbüchern f. Nationalokonomie und Statistik, Vol. XVII), p. 41.
[12] Passow, op. cit. (2ª Edição), p. 49 et 1,q.
[13] Passow, op. cit. (2ª Ed), p. 132 et. seq.