§.1
A visão de mundo ascética
A fuga do mundo e a negação da vida, mesmo do ponto de vista religioso, não são fins últimos, buscados por si mesmos, mas meios para o atingimento de certos fins transcendentais. Mas apesar de aparecerem no universo do crente como meios, eles precisam ser entendidos como fins últimos por um inquérito que não pode ir além da experiência terrena ou seguir as consequências de uma ação para além dos limites desta vida. No que se segue, significaremos por ascetismo somente aquilo que é inspirado por uma filosofia de vida ou por motivos religiosos. Com essas restrições, o ascetismo é a matéria do nosso estudo. Precisamos não confundi-lo com aquele tipo de ascetismo que é somente um meio para atingir certos fins terrenos. Se ele está convencido dos efeitos venenosos do licor, um homem abstém-se deles ou para proteger geralmente sua saúde ou para assegurar sua força para um esforço específico. Ele não é ascético no sentido definido acima.
Em nenhum lugar a ideia da fuga do mundo e da negação da vida se manifestou mais logicamente e completamente do que na religião indiana do Jainismo, que é capaz de olhar para trás na história de mais de 2500 anos. “Hauslosigkeit”, disse Max Weber, “é a ideia fundamental da salvação no Jainismo. Significa a quebra de todas as relações terrenas, e, portanto, acima de tudo, indiferença a impressões gerais e evitação de todos os motivos mundanos, o cessar de agir, de ter esperança, de desejar. Um homem que tem de restante somente a capacidade de sentir e pensar ‘Eu sou eu’ é hauslos nesse sentido. Ele não deseja a vida e nem a morte — porque, em qualquer caso, isso significaria ‘desejo’, e poderia despertar o Carma. Ele nem tem amigos nem levanta objeções às ações de outros em relação a ele (por exemplo, à comum lavagem de pés que os piedosos prestam aos santos). Ele se comporta de acordo com o princípio que não se deve resistir ao mal e que o estado de graça individual durante a vida precisa ser testado por sua capacidade de aguentar dificuldades e dor.”[1] O jainismo proíbe mais estritamente qualquer ato de matar seres vivos. Os jainistas ortodoxos não produzem luz durante os meses escuros porque isso queimaria as traças, não fazem fogo porque isso mataria os insetos, prensam a água antes de fervê-la, vestem véu bocal e nasal para prevenir-se de inalar insetos. É da maior piedade deixar-se ser torturado por insetos sem afastá-los.[2]
Somente um segmento da sociedade pode realizar o ideal ascético de vida, porque o ascético não pode ser um trabalhador. O corpo que está exausto dos exercícios penitenciais e das castigações não pode fazer nada além de repousar em contemplação passiva e deixar as coisas virem ao corpo ou consumirem o resto de sua força em transes extáticos e, portanto, apressar seu próprio fim. O ascético que ingressa no trabalho e na atividade econômica para ganhar para si mesmo somente a mínima quantidade de necessidades da vida, abandona seus princípios. A história do monasticismo, não somente do monasticismo cristão, revela isso. Por serem estadias do ascetismo, os monastérios por vezes se tornaram o assento de um gozo refinado da vida.
O ascético não-trabalhador só pode existir se o ascetismo não for obrigatório para todos. Uma vez que não pode nutrir-se sem o trabalho de outros, trabalhadores precisam existir, para que, apoiado nesses, o ascético possa viver.[3] Ele precisa de seculares tributários. Sua abstinência sexual requer seculares que façam sucessores. Se esse complemento necessário falta, a raça dos ascéticos rapidamente morre e desaparece. Como uma regra geral de conduta, o ascetismo significaria o fim da raça humana. O holocausto de sua própria vida é o fim para o qual o indivíduo ascético se dirige, e apesar de esse princípio não precisar incluir abstinência de todas as ações necessárias para manter a vida com o objetivo de pôr um fim prematuro a ela, implica, por supressão do desejo sexual, a destruição da sociedade. O ideal ascético é o ideal da morte voluntária. Que nenhuma sociedade pode ser construída sobre o princípio ascético é muito óbvio para necessitar de explicação detalhada. Pois isso é um destruidor da sociedade e da vida.
Esse fato pode ser negligenciado somente porque o ideal ascético raramente é pensado, e ainda mais raramente posto em prática, para sua conclusão lógica. O ascético na floresta que vive como os animais à base de raízes e ervas é o único que vive e age de acordo com seus princípios. Esse comportamento estritamente lógico é raro, afinal, não são muitas as pessoas que estão preparadas para renunciar de coração aberto aos frutos da cultura, apesar de o quanto eles possam desprezar os frutos da cultura em pensamento e abusar deles em palavras, são poucos os que desejam voltar sem mais nem menos ao estilo de vida do cervo e do veado. Santo[4] Egídio, um dos companheiros mais zelosos de São Francisco de Assis, encontrou culpa nas formigas porque elas estavam muito preocupadas em coletar suprimentos; ele aprovou somente os pássaros, porque eles não guardam comida nos ninhos. Porque os pássaros no céu, os animais na terra e os peixes na água estão satisfeitos quando possuem nutrição suficiente. Ele mesmo acreditava que vivia de acordo com o mesmo ideal quando se alimentava com o trabalho de suas mãos e a coleta de esmolas. Quando ele foi colher com o resto dos pobres nos tempos de colheita, e pessoas quiseram adicionar às suas colheitas, ele recusaria, dizendo: “Não tenho um depósito para guardar comida. E não desejo um.” Ainda assim, esse santo obteve vantagens da ordem econômica que condenava. Sua vida na pobreza, possível somente dentro de e por essa ordem econômica, foi infinitamente melhor do que aquelas dos peixes e pássaros que ele acreditava imitar. Ele obteve renda de seu trabalho nas lojas de uma economia ordenada. Se outros não tivessem recolhido comida em celeiros, o santo teria passado fome. Somente se todos os outros tivessem tomado os peixes como exemplo, ele poderia conhecer como era viver como um peixe. Contemporâneos com disposição crítica reconheceram isso. O Beneditino Inglês, Matthew Paris, reporta que o Papa Inocêncio III aconselhou São Francisco, após ouvir sua regra, a ir viver com os porcos, com os quais se identificava mais do que com os homens, a rolar com eles na lama, e a ensiná-los sua regra.[5]
A moral ascética nunca pode ter aplicação universal como princípios vinculantes da vida. O ascético que age logicamente se retira voluntariamente do mundo. O ascetismo que procura manter-se na terra não leva seus princípios ao fim lógico; ele para em certo ponto. É imaterial por qualquer sofisma que tente explicar isso; é suficiente que assim faça e assim precise fazer. Além disso, é compelido a pelo menos tolerar os não-ascéticos. Ao desenvolver, portanto, uma moralidade dupla, uma para os santos e outra para os mundanos, divide a ética em duas. A vida leiga é, no final das contas, tolerável e tolerada, mas isso é tudo. As únicas pessoas verdadeiramente morais são os monges, ou de qualquer outra coisa que eles possam ser chamados, os que buscam pela perfeição através do ascetismo. Ao separar a moralidade dessa forma, o ascetismo renuncia à sua pretensão de governar a vida. A única exigência que ainda faz aos homens leigos é a de pequenas doações para manter o corpo e a alma do santo juntos.
Como um ideal estrito, o ascetismo não se interessa pela satisfação das vontades de todos. É, portanto, não-econômico no sentido mais literal. O ideal ido por água abaixo do ascetismo, concebido pelo leigo de uma sociedade que reverencia o ascetismo do perfeito, ou por monges vivendo em uma comunidade autossuficiente, podem demandar somente a mais primitiva produção somente para a alimentação, mas de nenhuma forma se opõe a extrema racionalização da atividade econômica. Pelo contrário, demanda-a. Pois, já que toda preocupação com os assuntos mundanos mantêm as pessoas longe da única forma de vida puramente moral e deve ser tolerado de forma geral somente como meio para um propósito intermediário — infelizmente inevitável — então é essencial que essa atividade profana seja tão econômica quanto possível, para assim reduzi-la ao mínimo. A racionalização, desejável para o mundano em seus esforços para reduzir as sensações dolorosas e aumentar as prazerosas, é imposta sobre o ascético, para quem as sensações dolorosas despertadas pelo trabalho e pela privação são castigos valiosos, porque é seu dever não se devotar ao transitório mais do que ao absolutamente necessário.
Do ponto de vista do ascético, também, portanto, a produção socialista não pode ser mais preferível do que ao socialismo a não ser que seja entendida como mais racional. O ascetismo pode recomendar a seus devotos limitar as atividades através das quais satisfazem suas vontades porque abomina uma existência confortável demais. Mas dentro dos limites deixados para a satisfação dessas vontades, não pode entender como correto nada além do que a economia racional demanda.
§.2
Ascetismo e socialismo
O pensamento socialista a princípio trata com indiferença todos os princípios do ascetismo. Rejeitou duramente qualquer premissa consoladora de uma vida após a morte e buscou um paraíso mundano para todos. Nem o mundo que está por vir e nenhuma outra inclinação religiosa têm algum interesse para ele. A única meta do socialismo foi garantir que todos deveriam buscar o maior padrão de bem-estar possível. O critério não era a negação de si, mas o divertimento. Os líderes socialistas sempre se opuseram definitivamente a todos aqueles que se mostram indiferentes ao aumento da produtividade. Apontaram que, para diminuir as dificuldades do trabalho e aumentar os prazeres do divertimento, a produtividade do trabalho humano precisa ser multiplicada. Os gestos grandiosos dos herdeiros degenerados de famílias ricas em louvor aos encantos da pobreza e à vida simples não lhes afetaram como apelo.
Mas ao examinar isso mais cuidadosamente, detectamos uma mudança gradual em sua atitude. À medida que a natureza não-econômica da produção socialista se torna aparente, os socialistas começam a transformar suas visões na desejabilidade de uma satisfação mais abundante de vontades humanas. Muitos deles estão até mesmo começando a demonstrar alguma simpatia com os escritores que louvam a Idade Média e enxergam com contentamento as riquezas que o capitalismo adiciona aos meios de existência.[6]
A afirmação de que todos podemos ser felizes, ou até mais felizes, com menos bens não pode ser nem refutada nem provada. É claro, a maioria das pessoas pensam que não têm bens materiais suficientes; e, porque valorizam mais o aumento no bem-estar do que maiores esforços de suas partes podem proporcionar mais do que valorizam o lazer que ganhariam ao renunciar a isso, exaurem-se pelo trabalho duro. Mas mesmo se admitirmos as afirmações dos semiascéticos cujo panorama discutimos, isso de forma alguma nos compromete em dar ao método de produção socialista precedência sobre o método capitalista. Pois, supondo que bens demais são produzidos sob o capitalismo, a questão poderia ser remediada simplesmente ao reduzir a quantidade de trabalho a ser feita. A demanda de que deveríamos reduzir a produtividade do trabalho adotando uma forma menos frutífera de produção não pode ser justificada por tais argumentos.
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Notas
[1] Weber, Gesammelte Aufsätze zur Religionssoziologie, Tübingen 1920, Vol. II, p. 206.
[2] Ibid., p. 211
[3] Weber, op. cit., Vol. I, p. 262.
[4] N.T.: O Egídio a que Mises se refere nesse parágrafo é, na verdade, beato e não santo. Sendo ele o Beato Egídio.
[5] Glasser, Die franziskanische Bewegung, Stuttgart e Berlim 1903, p.53 et seq. 59.
[6] B. Heichen, Sozialismus und Ethik (Die Neue Zeit, 38 Jahrg., Vol. 1), p. 312 et seq. Especialmente marcantes nesse contexto são também as observações de Charles Gide, Le Materialisme et l’Economie Politique, p. 103 et seq. (contido em Le Materialisme actuel, Paris 1924).