Talvez você, leitor, já tenha se espantado, como eu venho me espantando repetidamente ao longo dos anos, em relação à maneira como certas argumentações são forjadas. Um jornalista, escritor ou debatedor qualquer reconhece que há uma diferença de visões acerca de uma determinada questão: A afirma X, e B afirma Y. Entretanto, embora tal diferença de visões seja admitida, a questão é resolvida concluindo-se que X deve ser verdadeiro porque B não demonstrou empiricamente que Y é um fato. Consequentemente, chega-se a uma conclusão simplesmente supondo-se que não é necessário aplicar a A o mesmo ônus da prova imposto a B.
Libertários constantemente lidam com esta situação quando argumentam contra a oferta estatal de um bem ou serviço que o governo atualmente esteja ofertando. Libertários podem argumentar, por exemplo, que empresas privadas podem fornecer serviços de segurança de melhor qualidade ou a um custo mais baixo do que os serviços fornecidos pela polícia estatal. Ato contínuo, os críticos apenas declaram que os libertários estão errados, observando que eles, os libertários, não ofereceram provas conclusivas para seu argumento. Os críticos algumas vezes também chegam ao cúmulo de alegar que, se o fornecimento privado de determinados serviços fosse realmente melhor que o estatal, então ele já estaria em vigência, convenientemente ignorando as várias maneiras nas quais o governo restringe, sobrecarrega, regula ou simplesmente proíbe a concorrência privada.
Até mesmo debatedores que se pretendem ostensivamente imparciais sempre acabam jogando o ônus da prova sobre aqueles que desafiam o status quo, seja o debate nas ciências, na política, na economia ou em qualquer outra área em que a ortodoxia seja dominante ou em que instituições já consagradas mantenham um monopólio. Este viés ajuda a preservar justamente aquelas instituições que já consolidaram sua influência e poder, independentemente de como elas alcançaram seu atual domínio. Foi por isso que o modelo heliocêntrico dos movimentos planetários só conseguiu substituir o modelo geocêntrico mais de um século após ser descoberto, uma vez que Kepler, Copérnico, Galileu, Newton e outros tiveram de meticulosa e esmeradamente demonstrar a superioridade de sua concepção em relação ao consolidado sistema derivado de Ptolomeu (90 — 168 d.C.).
Da mesma forma, o estado-nação moderno vem se mantendo como uma consolidada e bem estabelecida instituição há séculos, e durante esta era ele aumentou seu tamanho, seu alcance e seu poder imensamente. As pessoas hoje estão acostumadas às atuais e enormes dimensões do estado, ao seu poder legislador, regulamentador, controlador e de decisão, e elas têm enormes dificuldades em imaginar como arranjos alternativos poderiam funcionar. Donde as atuais discussões políticas se limitam a ridículas minúcias sobre quais as melhores políticas para mover o estado de A a B, sendo que ambos os pontos estão a apenas centímetros do totalitarismo. Já os libertários que propõem recuar o estado, por exemplo, alguns meros quilômetros para trás — um ponto ainda muito longe do objetivo da total liberdade — simplesmente são ignorados e jamais são ouvidos.
Quem são os utópicos?
Os críticos dos libertários frequentemente asseveram que eles, os libertários, são apenas seres utópicos em busca do impossível, ignorando o fato de que o estado-nação em seu formato moderno não é exatamente algo que sempre existiu desde o Big-Bang. Mais ainda: ignoram a inescapável contradição de que suas atuais esperanças colocadas no atual formato do estado — um arranjo institucional nascido do roubo e da espoliação, e sustentado pela contínua extorsão de seus súditos — é que atestam uma mentalidade muito mais utópica.
Os defensores do estado convenientemente ignoram todos os crimes necessários e inevitáveis em que o estado incorre para se manter operante, e muitos ainda elaboram vários argumentos ad hoc para justificá-los. E a maioria das pessoas simplesmente presume, sem se dignar a arcar com qualquer ônus da prova, que o sistema estatal vigente é superior a qualquer arranjo alternativo. Já os libertários, no entanto, insistem legitimamente em argumentos racionais, imparciais e baseados em fatos, e não simplesmente na leviana acusação de que os defensores do estado são sonhadores.
Moralmente falando, a lógica preconiza que aqueles que defendem arranjos coercivos é que devem arcar com o ônus da prova. Se o estado é um arranjo manifestamente superior a uma genuína e voluntária autonomia da população, então por que ele rotineiramente tem de recorrer ao uso da coerção e da ameaça de violência para se manter? Por que ele tem de constantemente nos ameaçar de detenção — e até mesmo de morte — para obter as receitas necessárias para sustentar suas atividades? Nenhum empreendimento, nenhum restaurante ou supermercado, coloca uma arma na minha cabeça para me transformar em seu freguês. Só o estado.
“Bens” públicos
Obviamente, a justificativa apresentada pelos economistas convencionais para essa ameaça de violência estatal contra cidadãos relutantes em sustentar o estado é a de que o governo fornece um “bem público” universalmente valioso, que é bom para todos igualmente, e, portanto, tem de recorrer a medidas severas para lidar com os “caroneiros”, aqueles indivíduos que se aproveitam de algo sem pagar por ele. O problema com este argumento é que muito pouco — e estou sendo benevolente — do que o estado moderno fornece satisfaz os critérios de classificação de bem público. O dinheiro da previdência que ele manda para a vovó não é um bem público, como também não é um bem público o dinheiro dado aos médicos e a outros prestadores de serviços de saúde, assim como também não são bens públicos os gastos com professores de escolas públicas para (des)educar os filhos do meu vizinho. Os serviços de “segurança” — que servem de principal exemplo de bem público que “tem” de ser fornecido pelo governo — são, como todos sabem, um exemplo às avessas da necessidade do envolvimento estatal nesta área. Longe de ser um bem público, a segurança ofertada monopolisticamente pelo governo sequer pode ser considerada um bem.
A verdade — acessível para todos aqueles que conseguem pensar fora do quadrado — é que o estado se ocupa majoritariamente de extorquir a riqueza de seus súditos para transferir boa parte dela para seus apologistas e para todos aqueles que têm boas conexões com o poder, retendo boa parte do esbulho para pagar sua legião de burocratas, reguladores, apaniguados, rentistas e sinecuristas, bem como sua guarda pretoriana: a polícia e as forças armadas. Todo este aparato não possui nenhuma superioridade autoevidente sobre quaisquer arranjos alternativos; é o estado, portanto, quem tem de arcar com o ônus da prova para explicar qualquer medida que tome. Ademais, é necessário enfatizar que todas as “provas” professorais regurgitadas por economistas convencionais sobre a superioridade do arranjo estatal não se sustentam por si sós. Toda esta linha de pensamento tem de ser descartada como sendo nada mais do que uma mera apologética, e não uma tentativa séria de se justificar a generalizada e predominante presença do estado na vida moderna.
Muito mais poderia ser pontificado sobre este assunto, mas talvez o que foi dito aqui já seja o suficiente para mostrar que a maneira como se distribui o ônus da prova é algo absolutamente crucial para a resolução de controvérsias, seja na ciência, nas políticas públicas ou nas análises econômicas. Mais importante, uma verdade lógica tem de ser sempre enfatizada: se um arranjo depende da violência ou da ameaça de violência para se sustentar, então, por definição, tal arranjo possui severas deficiências morais ou intelectuais. A força bruta sempre será o recurso daqueles que não podem apresentar um bom argumento para suas ações. Embora o estado moderno desfrute o apoio de inúmeros intelectuais e apologistas da corte, ele depende inteiramente do uso da violência caso seus súditos não aceitem as desculpas apresentadas para seus crimes.
O fato de muitas pessoas temerem e odiarem o estado deveria, por si só, ser o suficiente para indicar que são seus líderes e defensores — e não aqueles que, como nós, anseiam por liberdade — que têm de arcar com o ônus da prova.