Continuação da entrevista concedida ao site suíço, de orientação pró-livre mercado, The Daily Bell. (Veja aqui a primeira parte)
Daily Bell: O senhor também já escreveu amplamente sobre moeda e questões monetárias. Um padrão-ouro é necessário para uma sociedade livre?
Hoppe: Em uma sociedade livre, o mercado produziria dinheiro assim como produz todos os outros bens e serviços. Caso o mundo fosse perfeitamente certo e previsível, não haveria necessidade de existir algo como o dinheiro. Porém, como vivemos em um mundo sujeito a contingências imprevisíveis, as pessoas passam a valorar os bens de acordo também com sua vendabilidade ou capacidade de ser comercializado — ou seja, como um meio de troca. E dado que um bem que seja mais facilmente e amplamente vendável é preferível como meio de troca a um bem que seja menos facilmente e amplamente vendável, há uma inevitável tendência no mercado para que surja uma única commodity que se distinga de todas as outras justamente por ser a mais facilmente e amplamente vendável dentre todas. Essa commodity passa a ser chamada de dinheiro.
Sendo o ‘mais vendável dentre todos os bens’, a moeda fornece ao seu portador a melhor proteção humanamente possível contra incertezas — ela pode ser utilizada para a satisfação instantânea da mais ampla gama de necessidades possíveis. A teoria econômica nada tem a dizer a respeito de qual commodity irá adquirir o status de dinheiro. Historicamente, tal commodity foi o ouro. Porém, caso a composição física do nosso mundo fosse diferente ou venha a se tornar diferente de como é hoje, alguma outra commodity teria se tornado ou poderia vir a se tornar dinheiro. O mercado irá decidir. Em todo caso, não há absolutamente nenhuma necessidade de o governo se envolver nessa área. O mercado já forneceu e irá fornecer novamente dinheiro-commodity, e a produção dessa commodity, qualquer que venha a ser ela, está sujeita às mesmas forças de oferta e demanda que determinam a produção de todos os outros bens e serviços no mercado.
Daily Bell: E quanto ao paradigma do sistema bancário livre? O sistema bancário de reservas fracionárias deve ser tolerado ou é um crime? Quem deveria colocar as pessoas na cadeia pela prática de reservas fracionárias no sistema bancário?
Hoppe: Suponha que o ouro seja a moeda de troca. Em uma sociedade livre, você teria livre concorrência na mineração de ouro, você teria livre concorrência na cunhagem de ouro, e você teria bancos concorrendo livremente entre si. Os bancos ofereceriam vários serviços financeiros: custódia de dinheiro, compensação de cheques, e a mediação entre poupadores e investidores/tomadores de empréstimos. Cada banco emitiria sua própria marca de “cédulas” ou “certificados de depósito”, documentando as várias transações e as resultantes relações contratuais entre o banco e o cliente. Essas cédulas bancárias — o dinheiro — seriam livremente comercializáveis no mercado. Até aqui, tudo bem.
A controvérsia com os defensores das reservas fracionárias está apenas no status do sistema bancário de reservas fracionárias para os depósitos. Digamos que A deposita 10 onças de ouro em um banco e receba uma cédula (um certificado de depósito que funciona como um substituto monetário) redimível sob demanda ao seu valor de face. Baseando-se nesse depósito feito por A, o banco empresa 9 onças de ouro para C, emitindo uma cédula com esse mesmo valor, a qual também é redimível sob demanda ao seu valor de face.
Isso deveria ser permitido? Creio que não. Pois agora existem duas pessoas, A e C, que são as proprietárias exclusivas da mesma e única quantidade de dinheiro. Uma impossibilidade lógica. Ou, colocando de maneira diferente, existem apenas 10 onças de ouro, porém A possui um título de posse sobre 10 onças e C possui um título de posse sobre 9 onças. Ou seja, há mais títulos de propriedade do que propriedade em si. Obviamente, isso constitui uma fraude, e em todas as áreas da economia — exceto na questão monetária — os tribunais teriam considerado tal prática como um ato fraudulento e teriam punido os transgressores.
Por outro lado, não haveria problema algum caso o banco dissesse a A que iria lhe pagar juros sobre seu depósito, investindo-o, por exemplo, em fundos de investimento formados por papeis de curto prazo e de alta liquidez, prometendo se esforçar para restituir a A — quando este demandasse seu investimento de volta — uma quantia fixa de dinheiro. Tais fundos de investimento poderiam se tornar muito popular, e muitas pessoas poderiam querer colocar seu dinheiro neles ao invés de em contas-correntes normais. Porém, enquanto estivesse aplicado nesses fundos de investimento, tal dinheiro jamais funcionaria como um meio de troca. Nessa condição, ele jamais seria a commodity mais facilmente e amplamente vendável dentre todas.
Daily Bell: Qual a posição do senhor a respeito do paradigma dos atuais bancos centrais? É certo dizer que os bancos centrais, no atual modelo em que estão concebidos, são o desastre da nossa era?
Hoppe: Bancos centrais certamente são os principais promotores da desordem da atualidade. Eles, e em particular o Fed, foram os responsáveis pela destruição do padrão-ouro, que sempre foi um obstáculo para as políticas inflacionárias, e por sua substituição, desde 1971, por um padrão monetário de papel-moeda puro e de curso forçado. Desde então, os bancos centrais podem criar dinheiro virtualmente do nada. Uma maior quantidade de dinheiro de papel não pode tornar a sociedade mais rica, é óbvio — afinal, trata-se apenas de mais papel impresso. Caso contrário, por que ainda haveria países pobres e pessoas pobres no mundo? Porém, a criação de mais dinheiro tem uma função primordial: enriquecer seu produtor monopolista (o banco central) e todos aqueles que primeiramente recebem esse dinheiro (o governo, os grandes bancos e seus principais clientes), tudo à custa do empobrecimento daqueles que recebem este novo dinheiro por último, quando todos os preços já aumentaram.
Graças ao ilimitado poder de imprimir dinheiro do qual goza um banco central, os governos podem incorrer em déficits orçamentários cada vez maiores e se endividar continuamente para financiar guerras que, caso contrário, seriam de impossível financiamento, além de incorrer em um infindável fluxo de atividades inúteis. Graças ao banco central, vários “especialistas monetários” e “proeminentes macroeconomistas” podem ser colocados em sua folha de pagamento e consequentemente transformados em propagandistas do governo com a função de “explicar”, como alquimistas, como pedras (dinheiro de papel) podem ser transformadas em pães (riqueza).
Graças ao banco central, as taxas de juros podem ser artificialmente reduzidas a zero, canalizando crédito para projetos e pessoas insolventes (ao mesmo tempo em que escasseia o crédito genuíno para projetos e pessoas solventes e realmente dignos de crédito), provocando investimentos cada vez maiores em bolhas insustentáveis, as quais, ao estourarem, geram colapsos econômicos cada vez mais espetaculares. E graças ao banco central, somos confrontados com uma ameaça dramaticamente crescente de uma iminente hiperinflação.
Daily Bell: Frequentemente afirmamos que as Sete Colinas de Roma eram inicialmente sociedades independentes, assim como o eram as cidades-estados italianas durante o Renascimento e as 13 colônias da República dos EUA. Parece que grandes impérios sempre começam como comunidades individuais, em que as pessoas podem sair de uma comunidade caso se sintam oprimidas e ir para outra onde podem começar de novo. Qual é a força-motriz por trás desse processo de centralização? Como se formam os pilares do Império?
Hoppe: Todos os estados necessariamente começam pequenos. Isso facilita a saída de pessoas, as quais podem emigrar imperturbadamente. Entretanto, os estados são por natureza agressivos, como já expliquei. Eles podem externalizar o custo de suas agressões mandando a conta para seus cidadãos pagadores de impostos. Os estados não gostam de ver pessoas produtivas indo embora. Sendo assim, eles tentam capturar essas pessoas por meio da expansão de seu território. Quanto mais produtivas as pessoas que o estado conseguir controlar, melhor ele estará. Mas nesse desejo expansionista, um estado vai encontrar a oposição de outros estados. E pode haver apenas um monopolista supremo da jurisdição e da tributação em um dado território. Isto é, a concorrência entre diferentes estados é eliminatória. Ou A vence e controla um território, ou B. Quem vai vencer? Ao menos no longo prazo, o estado que irá vencer — e apoderar-se do território de outro ou estabelecer uma hegemonia sobre ele, obrigando-o a pagar tributos — será aquele que puder parasitar sobre a economia comparativamente mais produtiva. Ou seja, tudo o mais constante, os estados cujas economias são mais liberais tenderão a conquistar os estados menos liberais, ou seja, os estados mais opressivos e economicamente regulados.
Analisando a história moderna, podemos desta forma explicar primeiro a ascensão da liberal Grã-Bretanha ao topo da lista do primeiro império mundial. Depois, a subsequente ascensão dos EUA. E podemos assim compreender um aparente paradoxo: por que as potências imperiais que são internamente liberais, como os EUA, tendem a ser mais agressivas e beligerantes em sua política externa do que as potências internamente opressivas, como a finada União Soviética. O liberal império americano tinha a certeza de que iria vencer, com suas guerras e aventuras militares estrangeiras, ao passo que a opressiva União Soviética tinha medo de que poderia perder.
Porém, construir impérios é algo que carrega consigo as sementes de sua própria destruição. Quanto mais perto um estado chega de seu objetivo supremo — a dominação mundial e a constituição de um governo mundial único —, menos motivos há para manter seu liberalismo interno e mais motivos há para fazer justamente aquilo que todos os estados estão propensos a fazer de qualquer jeito: adotar a linha dura e aumentar a exploração sobre todas as pessoas produtivas que ainda remanesceram.
Com o tempo, sem pessoas adicionais para serem tributadas e com a produtividade doméstica estagnada ou em queda, as políticas internas do império — políticas de pão e circo — não mais poderão ser mantidas. A crise econômica se estabelece, e um iminente colapso econômico começa a estimular tendências descentralizadoras, com movimentos separatistas e secessionistas, o que leva ao fim do império. Já vimos isso acontecer com a Grã-Bretanha e estamos vendo agora o mesmo acontecer com os EUA, com seu império aparentemente adentrando o suspiro final.
Há também um importante aspecto monetário nesse processo. O império dominante tipicamente fornece a moeda internacional de reserva: primeiro a Grã-Bretanha com a libra esterlina e depois os EUA com o dólar. Com o dólar sendo utilizado como moeda de reserva internacional pelos bancos centrais estrangeiros, os EUA podem incorrer em déficits permanentes “sem sofrimento”. Ou seja, os EUA não precisam pagar pelo seu excesso de importação em relação às exportações — como seria o normal entre parceiros “iguais” — tendo de exportar uma quantia crescente de bens para o exterior (as exportações pagando pelas importações). Ao contrário: os governos estrangeiros e seus bancos centrais, ao invés de permitir que seus cidadãos utilizem a receita de suas exportações para comprar produtos americanos, utilizam suas reservas em dólares para comprar títulos do governo americano com o intuito de ajudar os americanos a continuarem consumindo muito além de suas posses. Um típico sinal de vassalismo perante o império dominante.
Não conheço muito sobre a China para entender por que aquele país está utilizando suas imensas reservas em dólares (acumuladas via exportação) para continuar comprando títulos do governo americano. Talvez seus governantes tenham lido muitos livros-textos de economia americanos e passaram a acreditar em alquimia também. Porém, se a China se desfizer de seus títulos americanos e começar a acumular reservas em ouro, isso acabaria com o império americano e com o dólar como o conhecemos.
Daily Bell: É possível que um número ínfimo de famílias incrivelmente ricas estabelecidas no centro financeiro de Londres seja parcialmente responsável por tudo isso? Essas famílias e seus líderes podem realmente estar em busca do governo mundial comandado pelas elites? Ou é tudo uma conspiração? O senhor vê o mundo nesses termos: como uma batalha entre os impulsos centralizadores das elites dominantes e os impulsos mais democráticos do resto da sociedade?
Hoppe: Não estou certo se conspiração ainda é a palavra certa, pois, nesse meio tempo, graças a pessoas comoCarroll Quigley [historiador especialista em sociedades secretas], por exemplo, muito já se sabe sobre o que está acontecendo. Em todo caso, é certamente verdade que existem essas famílias incrivelmente ricas, residindo em Londres, Nova York, Tel Aviv e em outros lugares, que já perceberam o imenso potencial de enriquecimento pessoal que há no processo de construção de um império e de um estado mundial. Os presidentes dos grandes bancos tiveram um papel central na criação do Fed, pois eles haviam entendido que um banco central iria permitir que seus próprios bancos inflacionassem e expandissem o crédito em cima de todo o dinheiro e crédito já criados pelo banco central, e que um “emprestador de última instância” era essencial para permitir que eles colhessem lucros privados enquanto as coisas estivessem indo bem e socializassem os prejuízos quando as coisas começassem a ir mal.
Eles perceberam que o padrão-ouro clássico representava um empecilho natural à inflação e à expansão do crédito, e assim eles ajudaram primeiramente a criar um padrão-ouro falso (o padrão ouro-câmbio), e depois, após 1971, um regime de papel-moeda puro. Eles compreenderam que um sistema de moedas nacionais de papel flutuando livremente entre si ainda era imperfeito no que tange aos desejos inflacionistas, uma vez que a supremacia do dólar ainda poderia ser ameaçada por outras moedas concorrentes, como o forte marco alemão, por exemplo. Assim, com o intuito de reduzir e enfraquecer essa concorrência, eles apoiaram esquemas de “integração monetária”, como a criação do Banco Central Europeu (BCE) e o euro.
E eles perceberam que seu sonho supremo — um ilimitado poder de criação de dinheiro — poderia se tornar realidade apenas se eles obtivessem êxito em criar um banco central mundial dominado pelos EUA, o qual emitiria uma moeda mundial de papel, tal como o bancor (nome proposto por Keynes) ou o phoenix; e assim eles ajudaram a criar e a financiar uma profusão de organizações globalistas, como o Council on Foreign Relations, a Comissão Trilateral, o Grupo Bilderberg etc., para promover esse objetivo. Da mesma forma, proeminentes industrialistas reconheceram as tremendas oportunidades de lucros criadas por monopólios concedidos pelo estado, por subsídios do estado e por contratos de terceirização que os eximiria ou protegeria da concorrência. E assim eles, também, se aliaram ao estado, muitas vezes se infiltrando nele.
Existem “acidentes” na história, e existem ações cuidadosamente planejadas que produzem consequências inesperadas e não premeditadas. Porém, a história não é apenas uma sequência de acidentes e surpresas. Grande parte dela é planejada, almejada e concebida. Não por pessoas comuns, é claro, mas pelas elites poderosas que estão no controle do aparato estatal. Se quisermos evitar que a história siga seu atual e previsível curso rumo a um desastre econômico sem precedentes, é realmente imperativo sacudir e estimular a indignação pública expondo — implacável, incessante e inflexivelmente — os perversos motivos e as maléficas maquinações dessas elites poderosas, não apenas daquelas que trabalham no aparato estatal, mas principalmente também daquelas que estão fora de cena, por trás das cortinas, controlando os bastidores.
Daily Bell: Uma de nossas argumentações é a de que, assim como a prensa criada por Gutenberg destruiu as estruturas sociais existentes em sua época, a internet está fazendo o mesmo hoje. Acreditamos que a internet pode estar antecipando uma nova Renascença após a Idade das Trevas do século XX. Concorda? Discorda?
Hoppe: Certamente é verdade que ambas as invenções revolucionaram a sociedade e aprimoraram enormemente nossas vidas. É difícil imaginar como seria voltarmos à era pré-internet ou à era pré-Gutenberg. Sou cético, entretanto, quanto à capacidade de revoluções tecnológicas, por si sós, trazerem progresso moral e um avanço rumo a mais liberdade. Estou mais propenso a crer que a tecnologia e os avanços tecnológicos são “neutros” quanto a esse aspecto. A internet pode ser utilizada tanto para revelar e disseminar a verdade quanto para difundir mentiras e confusão. Ela nos deu possibilidades fantásticas de evadirmos e sobrepujarmos nosso inimigo, o estado; mas ela também deu ao estado possibilidades inéditas de nos espionar e nos arruinar. Somos mais ricos hoje, com a internet, do que éramos, digamos, em 1900, sem ela (e estamos mais ricos não por causa do estado, mas apesar dele). Porém, eu negaria enfaticamente que somos mais livres hoje do que éramos em 1900. Muito pelo contrário.
Daily Bell: Algumas considerações finais? O senhor poderia nos dizer em que livro está trabalhando agora? Gostaria de recomendar alguns livros ou websites?
Hoppe: Certa vez afastei-me de um princípio que havia estabelecido para mim mesmo: o de não falar sobre meu trabalho até ele estar concluído. Lamento até hoje esse desvio. Foi um erro que não mais cometerei novamente. Quanto a recomendações de livros, recomendo acima de tudo a leitura das grandes obras de meus dois mestres, Ludwig von Mises e Murray Rothbard, não apenas uma vez, mas repetidas vezes, de tempos em tempos. A obra de ambos é incomparável e permanecerá insuperável por um tempo bastante longo. Quanto a websites, visito regularmente mises.org e lewrockwell.com. Quanto a outros sites, já fui chamado de extremista, reacionário, revisionista, elitista, supremacista, racista, homófobo, antissemita, direitista, teocrata, ateu, cínico, fascista e, é claro, o epíteto indispensável para todo alemão, nazista. Portanto, é de se esperar que eu tenha uma preferência por sites politicamente incorretos que todo homem “moderno”, “decente”, “civilizado”, “tolerante” e “iluminado” deveria ignorar e evitar.
Daily Bell: Muito obrigado por nos conceder seu tempo para responder às nossas perguntas, professor Hoppe. Foi uma honra especialmente distinta abordá-las dentro do contexto de sua extraordinária obra.
Hoppe: Foi um prazer.