Estado, violência e leis privadas

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private-student-loans-1B5F80I-x-largeA violência — uso da força física — é um fato recorrente no nosso dia-a-dia. Causa-nos indignação quando criminosos agridem inocentes. Contudo, sabemos também que a violência é necessária às vezes justamente para impedir que esses criminosos façam o que bem entender.  Então, nossa intuição nos diz que a violência tem um uso maléfico e outro benéfico.  Mas qual a medida que podemos usar para aplicar em cada caso?

A filosofia individualista nos diz que somos donos dos nossos próprios corpos, assim ninguém possui o direito de escravizar as pessoas.  Ou seja, temos a propriedadeinalienável do nosso corpo.  Quando nos apropriamos de recursos sem dono, dando algum uso a eles, estamos apenas estendendo nossa propriedade sobre o nosso corpo para objetos físicos.  Se a pessoa A encontra uma terra sem dono e começa a usá-la de alguma forma, ela torna-se sua.  Caso uma pessoa B se interesse pela terra da pessoa A, ela tem formas legítimas de adquiri-la.  Primeiro, ela pode oferecer algo em troca, como, por exemplo, uma quantia em dinheiro.  Segundo, ela pode simplesmente pedir a terra, e se a pessoa A resolver doá-la, não há nada de errado.  Em último lugar, a pessoa A pode simplesmente abandonar a terra (não apenas sair dela, mas declarar que não a quer mais) e deixar para quem quiser se apropriar.

Mas existe outra forma de interação social: a violência.  A pessoa B, bem mais forte e armada que a pessoa A, resolve expulsar essa última da terra.  O que nossa intuição moral nos diz sobre isso?  Ora, se a pessoa A tem a propriedade legítima sobre a terra, ninguém pode tomá-la.  A violência da pessoa B é do tipo agressiva, pois não respeitou o direito da pessoa A.  Esta última então resolve contratar duas pessoas, C e D, indivíduos fortemente armados, para tomar sua terra de volta.  Eles expulsam B da terra de A utilizando a violência, que nesse caso élegítima.  Concluímos então nossa medida ética, que é apenas usar a violência para proteger a propriedade.

Mas agora vamos supor que a terra da pessoa A seja fértil e produza uma grande quantidade de alimentos.  A pessoa B, preocupada em alimentar os famintos de sua cidade, resolve tomar a terra.  A pessoa B agora tem uma boa intenção — alimentar os pobres —, mas utiliza de violência agressiva.  Nesse caso, podemos dizer que a ação da pessoa B foi ética?  Lógico que não.  Por qualquer que seja a intenção, não é justo que a propriedade de ninguém seja agredida.  A pessoa B pode apenas persuadir a pessoa A a fazer doações, ou comprar alimentos da sua terra, mas nunca agredir sua propriedade.

Vamos supor outro caso, onde a pessoa B não pensa em tomar a terra da pessoa A.  A pessoa B agora exige que a pessoa A pague uma quantia por mês sobre o seu lucro da produção de alimentos.  Essa ação é legítima?  Mais uma vez, não.  Mesmo a pessoa B não tomando diretamente a terra, está roubando A ao exigir que ela lhe dê uma quantia que conseguiu com sua propriedade.

O estado

A pessoa B nos exemplos acima pode muito bem ser substituída pelo estado.  Com a justificativa de proteger os cidadãos, o estado agride constantemente suas propriedades. Proibições, regulações, taxações, sequestros, roubos etc; a lista de crimes do estado é imensa.  Todavia, não é incomum que as constituições dos estados nos digam que uma de suas funções é proteger a propriedade.  E realmente existem alguns órgãos na estrutura governamental que fazem isso.  O governo, em alguns casos, utiliza de violência legítima.  Um exemplo são os departamentos de sequestro e furtos da polícia. Contudo, o governo usa a violência legítima através da violência agressiva. Para custear esses departamentos, o governo recolhe coercitivamente impostos.  Alguns argumentam que, no caso de regimes democráticos, como o governo representa a “vontade do povo”, a coerção estatal é legítima.  Mas vimos que o que define o bom e o mau uso da violência não é a vontade popular, mas sim a propriedade.  Se a vontade da maioria for que se tome a propriedade da minoria, tal ação torna-se legítima?  Obviamente não.

“Mas a democracia tem limites, pois as pessoas têm direitos”, alguém pode contra-argumentar.  Ou seja, a democracia é limitada por alguns direitos fundamentais dos indivíduos.  Mesmo que a maioria, por votação popular, escolha escravizar a minoria, essa decisão não é válida, pois é fato que viola direitos individuais.  Mas em que são baseados os direitos individuais?  Na ética da propriedade!  E a implicação lógica dessa ética nos diz que a violência agressiva é ilegítima — logo, mesmo um estado democrático é ilegítimo.

Alguns liberais argumentam, entretanto, que o estado é um mal necessário.  Mesmo utilizando de violência agressiva, precisamos do aparato estatal para nos prover segurança e justiça.  De fato, há um incrível consenso entre socialistas e liberais sobre a necessidade da intervenção do governo nessas duas áreas.  Então, a violência legítima que o estado nos proporciona é superior à violência agressiva.  Ou seja, o estado é antiético, mas necessário para a interação social.

Sociedade de leis privadas

Se a ética nos revela o porquê de determinada conduta ser justa ou injusta, ela nos revela também o que é benéfico e maléfico na interação social — logo, é impossível determinada organização social ser antiética e ao mesmo tempo necessária para a sociedade.  Resumindo: O estado, além de antiético, é desnecessário para manter as boas relações entre os indivíduos.

Mas, então, como resolver o problema da segurança e justiça num ambiente com leis privadas?  Primeiramente, é bom esclarecer o que queremos dizer com “sociedade de leis privadas”.  Como a propriedade é o núcleo da ordem social, as pessoas possuem liberdade para criar suas leis.  Tais leis podem ser individuais ou coletivas.  Elas têm ligação com nossos costumes e hábitos.  As leis individuais dizem respeito à nossa propriedade.  Dentro da nossa propriedade criamos nossas regras, com o único limite de respeitar a propriedade alheia.  Por exemplo, a pessoa A não pode criar a seguinte lei: “quem entrar na minha propriedade será meu escravo”.  Claramente isso desrespeita a ética da propriedade.  Leis coletivas são criadas por acordos ou contratos.  Os indivíduos concordam entre si em segui-la.  Como exemplo, temos os shoppings e condomínios.

Podemos encontrar algumas objeções à sociedade de leis privadas, como: “Mas tudo viraria bagunça se cada um pudesse criar sua própria lei!”.  Como dito acima, essas leis tem limites, pois as pessoas estão sujeitas à ética da propriedade.  Caso usem violência agressiva, estão sujeitas às punições cabíveis.  Entretanto, pode surgir essa outra objeção: “Mas e se um indivíduo não der a mínima para a ética da propriedade?  Pior, e se ele for rico e bem armado e começar a aterrorizar as pessoas para que elas lhe obedeçam?”.

Como consequência de nos revelar o que é justo, a ética da propriedade também nos mostra o máximo de bem-estar que pode ser gerado pela interação social.  Isso significa que essa ética não é apenas justa, mas tem os melhores resultados sociais, inclusive econômicos.  Todas as crises sociais que tivemos durante a história foram resultados de agressões à propriedade.  Então, se um indivíduo não der a mínima para a ética da propriedade, ele é criminoso: fraudador, ladrão, assassino etc.  Caso esse indivíduo comece a usar sua força física para aterrorizar as outras pessoas, estará agindo exatamente como o estado: ou se submete às suas ordens ou é perseguido como se fosse um criminoso.  A vantagem de leis privadas para impedir um caso de um indivíduo como esse é que ele é obrigado a internalizar os custos.  Como o estado recolhe renda à força das pessoas, ele pode gastar sem se preocupar muito, pois os custos são externalizados sempre.  O indivíduo do nosso exemplo terá que arcar com os custos, a não ser que ele mesmo monte um estado e comece a recolher impostos.  Tal exemplo nos esclarece o motivo pelo qual as ações do governo são naturalmente agressivas.  O indivíduo do exemplo age quase como um governo (no pior dos casos, ele mesmo terá de montar um).

Explicado esses pontos, voltemos à nossa pergunta anterior: como funcionaria a segurança e a justiça na sociedade de leis privadas?  A polícia do governo não existiria, e a segurança seria fornecida por firmas privadas.  Uma boa descrição do funcionamento de agências privadas de segurança é do economista e físico David Friedman em sua obra Anarchy and Efficient Law.  O exemplo que o autor usa é o de um roubo de uma televisão.  Vamos supor que a pessoa B roube a televisão da pessoa A, e esta possua uma gravação como prova e ligue para sua polícia privada.  Um representante da polícia de A vai à casa de B e exige a devolução da televisão e ameaça dizendo que, caso ele não entregue, voltará com três homens armados.  A pessoa B diz que a televisão foi um presente e que se o representante voltar com três homens, ele vai ligar para sua própria polícia vir com cinco homens armados.  Existem três formas como as polícias privadas podem resolver essa situação de conflito:

1) entrando em guerra; mas essa solução é a pior de todas, pois, diferente do estado, as polícias privadas não podem externalizar custos, então uma guerra contaria como despesa, o que diminuiria substancialmente os lucros.

2) As polícias podem fazer uma negociação para resolver o conflito sem precisar pegar em armas.

3) um acordo no qual um tribunal privado irá julgar o caso.  Quando a decisão for proferida, as duas polícias concordam em obedecê-la.  Mas por que as polícias deveriam confiar em algum tribunal privado?  O tribunal privado, que busca o lucro, não seria mais fácil de subornar?  Pelo contrário: num ambiente de leis privadas, os tribunais tendem a ser mais honestos porque eles possuem uma reputação para preservar, diferente dos tribunais do estado, que não necessitam de clientes, pois possuem poder de monopólio.  Se qualquer agência de polícia desconfiar que determinado tribunal seja desonesto, ela não irá contratá-lo.  Os tribunais serão contratados se, pelo contrário, mostrarem rigor técnico nas decisões.  Um escândalo para um tribunal ou polícia privada é prenúncio de sua falência — logo, na sociedade de leis privadas há uma tendência para ambos serem honestos e eficientes.

Conclusão

A ética da propriedade e a sociedade de leis privadas podem parecer um pouco estranhas ao leitor acostumado com pensamentos socialistas e intervencionistas, onde o governo é supostamente responsável pelo “bem público”.  Na verdade, o governo é uma instituição que agride a propriedade e concede privilégios a certos grupos.  O núcleo de estabilidade da ordem social é a propriedade privada.  Assim, para a sociedade ter paz, prosperidade e justiça, ela deve se basear nessa ética.  Seria bom que não existisse violência, mas sabemos que isso é utopia.  O uso da violência só é legítimo para proteger a vida e a propriedade.  Quanto mais uma sociedade se afasta desses pressupostos, mais se torna caótica.

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