8. Informação, Conhecimento e Complexidade do Problema Econômico
Em seguida, veremos como alguns autores modernos procuraram levar em conta explicitamente algumas objeções austríacas, sob o impacto da interpretação revisionista do debate feita por Lavoie. Argumentaremos que a desconsideração da complexidade do problema econômico está na base da falha dos autores desses textos de apreciar a verdadeira natureza da objeção hayekiana ao planejamento.
O Problema do Socialismo de Mercado: Informação ou Conhecimento?
No final do sexto capítulo reformulamos o problema do conhecimento de Hayek em termos da Epistemologia Evolucionária: para que possamos supor um processo de aprendizado em um sistema econômico complexo, devemos explicar como são geradas as diferentes hipóteses sobre as cambiantes condições econômicas locais (variação), como se dá o processo de correção de hipóteses erradas (seleção), como o conhecimento adquirido é preservado e transmitido (hereditariedade) e como esses elementos se relacionam. Em uma proposta de modelo econômico alternativo, o processo de aprendizado composto por esses elementos deve pelo menos replicar a complexidade e a riqueza de detalhes encontradas nos mercados reais. Examinemos agora os modelos modernos de socialismo de mercado propostos por Roemer e Bardhan sob o ponto de vista do problema do conhecimento.
Em relação à geração de hipóteses empresariais rivais, os modelos dos autores em questão limitam a capacidade empreendedora em vários aspectos. Empresas com mais de alguns poucos funcionários não podem unir capacidades para lançar novos projetos em conjunto. Para financiar projetos, uma firma depende exclusivamente de seu banco principal, o que limita a sua capacidade de inovação: os administradores, caso queiram exercer atividade empresarial, devem convencer os funcionários desse único banco de que a idéia é viável ou abandonar o projeto, pois é ilegal convencer poupadores independentes a investir no projeto. Como os bancos são em última análise estatais, é provável que uma concepção central prévia sobre a realidade econômica venha a direcionar a aprovação de crédito em projetos compatíveis com essa concepção. A atividade empresarial nas firmas médias e grandes é então limitada a decisões sobre o uso da quantidade de capital já investida nas mesmas.
Um empresário independente, por sua vez, só pode pôr em prática sua hipótese empresarial se esta for aplicada em pequena escala, já que o esquema permite apenas a livre iniciativa em firmas com um número reduzido de funcionários. Idéias empresariais que dependam de uma escala mínima maior seriam barradas. Essa restrição da proposta, além de limitar a geração de hipóteses empresariais, provavelmente teria um efeito distorcivo na alocação de recursos: caso a avaliação do banco sobre o valor presente dos rendimentos futuros da firma seja superior à do empresário, este tentará artificialmente expandir o seu empreendimento a fim de vendê-lo para o setor estatal a esse valor. Se o estado avaliar o empreendimento na outra direção, a firma irá deter a expansão a fim de evitar a perda de seus ativos.
Como a teoria que orienta as propostas se concentra em problemas de informação e não na falibilidade do conhecimento dos agentes, o problema da atividade empresarial é subestimado. Roemer e Bardhan acreditam que a liberdade de estabelecimento de pequenas firmas e o financiamento de laboratórios de pesquisa bastariam para manter a capacidade inovadora na economia. As inovações não dependeriam significativamente do processo de rivalidade entre firmas que se manifesta, por exemplo, em mercados de capital desenvolvidos.
O tratamento exógeno da função empresarial aparece de forma explícita em Yunker (1995), que imagina em sua proposta de ‘socialismo de mercado pragmático’ uma agência denominada National Entrepreneurial Investiment Board encarregada de ‘estabelecer novas firmas viáveis e lucrativas’. A atividade empresarial, infere-se dessa sugestão, novamente nada deve à existência de diversidade de opiniões de agentes independentes que possam ter alguma liberdade de apostar em suas idéias.
O outro aspecto das propostas modernas de socialismo de mercado que devemos considerar é a natureza do processo seletivo. Embora seja suposto o mesmo mecanismo de lucros e perdas das economias de mercado, as diferenças entre as instituições destas economias e dos modelos propostos restringem na prática a efetividade desse mecanismo seletivo, visto que se subestima a necessidade do aprendizado empresarial.
Na abordagem austríaca, a bolsa de valores funciona como uma arena na qual se debatem os planos rivais dos empresários. Estes empenham seus recursos em projetos compatíveis com esses planos. A lucratividade passada das firmas (com ações em bolsa ou não), por sua vez, reflete ao mesmo tempo a sorte e a habilidade do empresário de antever as condições futuras dos mercados, servindo como um teste das ações empresariais de seus dirigentes.
Já na visão de Roemer e Bardhan, a existência de bolsas de valores serve para disciplinar o comportamento dos administradores caso estes não queiram maximizar lucros. O prejuízo funciona como uma ameaça contra comportamentos tais como esforço insuficiente (shirking), e não como uma conseqüência de erros empresariais. Como o problema do socialismo de mercado é visto em termos de informação assimétrica em relação ao comportamento dos administradores e não em termos de geração de conhecimento empresarial, desaparece de cena o processo de eliminação de erros e a conseqüente variação de renda decorrente disso, como se as ações adequadas a serem tomadas pelas firmas já fossem conhecidas e a economia estivesse automaticamente perto de um equilíbrio estático e tudo o que resta é convencer as pessoas a implementar essas ações.
Mas, a menos que se suponha conhecimento perfeito, os erros são inevitáveis. Nos modelos dos autores, contudo, os agentes nunca fracassam de fato. Um poupador privado nunca perde seus recursos em aplicações erradas, pois administradores profissionais dos fundos mútuos administram seus portfólios. Os fundos mútuos, por sua vez, ao mesmo tempo controlam indiretamente um conjunto pequeno de firmas, conseguindo monitorá-las e diversificado o bastante para não depender da sorte de qualquer dessas firmas. Caso uma firma dê sinais de fracassar, o fundo mútuo e os bancos atuam prontamente sobre os administradores das firmas de forma a rapidamente corrigir o erro.
Mas, se o erro não for devido a administradores não vigiados o bastante, mas sim fruto da adoção de planos errados, incompatíveis com a realidade econômica do mercado em questão, estamos simplesmente deslocando a atividade empresarial da firma para os fundos mútuos. Estes estarão então sujeitos ao fracasso e de forma mais intensa, pois esse deslocamento da atividade empresarial apresenta o problema de menor uso de informação dispersa e de menor diversidade de opiniões empresarias, já que a atividade empresarial é mais centralizada.
Mas, se os fundos mútuos e os bancos fracassarem, a perda de capital é muito concentrada, o que torna improvável que isso seja politicamente viável. Entra então em cena o que Kornai chama de síndrome de restrição orçamentária tênue: os fundos mútuos seriam salvos pelo governo central e provavelmente haveria grande expansão de crédito como resultado da tentativa de salvá-los. Esse resultado não seria derivado da falta de democracia (aquilo que Roemer e Bardhan consideram o problema de agência do público em relação ao estado), mas sim inerente ao regresso infinito existente no modelo: não se pode ter um processo de tentativas e erros sem erros, e eliminar a variação na renda dos agentes econômicos transferindo a responsabilidade para instâncias anteriores torna os erros mais graves e de maior magnitude. Como a diminuição de renda advinda do erro é deslocada para instâncias mais amplas, a competição entre os agentes se transfere da esfera econômica para a política, na disputa para se livrar do ônus de arcar com o prejuízo. Neste ponto a análise da escola de escolha pública complementa a análise austríaca.
É curioso notar que Roemer e Bardhan, escrevendo na primeira metade da década de noventa, tomam como modelo o sistema bancário japonês, que, ironicamente, viria a entrar em crise logo em seguida, em grande medida devido ao excesso de créditos concedidos indiscriminadamente. A incapacidade do sistema de monitorar os investimentos das firmas japonesas, aliás, provavelmente esteja relacionado com o arrefecimento no interesse pelas propostas de socialismo de mercado aqui discutidas.
Embora o modelo não dê conta de gerar um processo de aprendizado empresarial como nos mercados reais, a análise de Roemer é a proposta de socialismo de mercado que mais perto chega de levar em conta as complexidades dos mercados, tanto em relação às propostas antigas quanto em relação à maioria das análises posteriores sobre o debate do cálculo.
É curioso notar que na nossa análise hayekiana do socialismo de mercado moderno, devido à postura falibilista em relação ao conhecimento humano que marca o pensamento desse autor, o fracasso do modelo é visto como uma conseqüência não intencional da ação do cientista que propõe tal modelo. A proposta fracassaria por desconsiderar um aspecto real dos mercados que está fora da análise de equilíbrio tradicional: o processo empresarial de descoberta.
É interessante comparar essa postura com a crítica baseada na escola da escolha pública. Como esta última compartilha com a teoria neoclássica os postulados sobre racionalidade, não apenas os agentes não têm problemas relacionados à atividade empresarial, como também os planejadores não têm problemas de imaginar todas as conseqüências de um esquema proposto de socialismo, de modo que, para Shleifer e Vishny, se alguém defende o socialismo de mercado moderno, defende também a atividade de rent-seekingque resultaria da adoção do modelo:
Nesse contexto, é instrutivo tem em mente quem são os defensores do ‘socialismo de mercado’ na Europa Oriental. Os defensores, que inevitavelmente falam sobre a Suécia, tendem a ser antigos oficiais comunistas e administradores de empresas estatais condenadas — as pessoas que mais se beneficiariam com a manutenção da propriedade governamental. É um infortúnio que, como os comunistas soviéticos na década de trinta, esses advogados do socialismo de mercado estão obtendo apoio de idealistas do ocidente. (Shleifer e Vishny, 1994:175)
Bardhan e Roemer (1994:181) protestam contra essa afirmação, que seria equiparável a uma acusação de que os defensores do capitalismo seriam na verdade defensores dos mafiosos que dominam as economias da Europa Oriental.
Chegamos agora ao último grupo de contribuições ao debate. A controvérsia do cálculo em si talvez não tenha um término, dado o perene interesse em formas diversas de organização social. A análise desse último grupo de autores, porém, fornece um bom ponto para encerrarmos o nosso trabalho, pois com ele chegamos a um círculo completo: a releitura austríaca do debate foi criticada sob o ponto de vista marxista original. O exame dessa crítica é interessante porque nela aparecem os pontos centrais do problema do cálculo; a saber, a complexidade do problema econômico e a natureza do conhecimento necessário para lidar com ela.
Iniciaremos mais esse desdobramento do debate a partir de um artigo de O’Neill (1989). Nesse artigo, seu autor examina o problema do cálculo em termos marxistas, criticando tanto Hayek quanto os socialistas de mercado. O’Neill contesta a leitura destes últimos de que a objeção aos mercados feita por Marx repousa no fato de que a coordenação nos mercados seria ex post e no socialismo deveria ser ex ante: aponta o autor que não só nos mercados ocorre planejamento individual para o futuro quanto no socialismo deve haver coordenação ex post, dado que aí também ocorrem mudanças.
A objeção genuína de Marx se referiria à incapacidade de coordenação dos agentes justamente devido ao processo competitivo que Hayek afirma que levaria à coordenação. À maneira de Stiglitz, O’Neill utiliza o exemplo do estanho de Hayek para afirmar que este último autor teria dito que o sistema de preços comunica toda a informação necessária para coordenar os mercados. Além de discordar essa afirmativa ‘de Hayek’, o autor questiona a afirmação de que a informação contida nos preços seja suficiente para a coordenação das atividades nos mercados. Para que isso ocorra, os agentes deveriam estar cientes dos planos de ação dos demais, caso contrário haveria excesso de produção causado pela reação de produtores isolados a uma variação de preços sem levar em conta a mesma reação dos demais. Essa ignorância mútua estaria na base da explicação marxista das crises.
Para o autor, a natureza competitiva dos mercados bloquearia a possibilidade de existir um mecanismo para transmitir essas informações, não havendo assim coordenação perfeita entre planos. A partir disso O’Neill pula para a conclusão de que não existe complexidade inerente ao problema econômico, já que a aparente complexidade é devida à falta das ‘paredes de vidro’ de Dickinson:
O mercado, em virtude da sua natureza competitiva, bloqueia a comunicação da informação e falha em coordenar planos para a ação econômica. Essa característica é específica ao mercado como um sistema de produtores independentes competindo entre si pela venda de bens. Não é uma consequência da complexidade ou da mudança. (O’Neill, 1989:209, ênfase no original)
Para o autor (1989:210), esse problema de impossibilidade de coordenação persistiria no socialismo de mercado moderno, pois cooperativas de trabalhadores não implicariam em cooperação entre firmas[1].
Eliminada a competição dos mercados, presume-se, desapareceria a falsa complexidade do problema econômico, abrindo espaço para uma economia ‘cooperativa’, na qual existiria um mecanismo de transmissão de informações entre os agentes. A natureza desse mecanismo e as instituições existentes no socialismo para lidar com esse mecanismo, porém, não são discutidas pelo autor. Temos apenas em uma nota de rodapé a sugestão de que a solução seria próxima à proposta de Otto Neurath.
Partindo do mesmo diagnóstico de que o principal problema de coordenação repousaria na independência das decisões dos produtores isolados, Adaman e Devine (1996) procuram construir um modelo do que O’Neill chama de economia cooperativa. A proposta é denominada pelos autores de ‘planejamento participatório democrático’.
O modelo pretende combinar as contribuições ao debate feitas por Dobb com as feitas por Lavoie. De Dobb, Adaman e Devine extraem a idéia de que o socialismo deva coordenar ex ante as decisões de investimento das firmas, levando em conta as relações intersetoriais, os possíveis gargalos no que se refere à produção futura, externalidades no consumo e assim por diante. A visão de Dobb sobre o socialismo, porém, seria incompleta, pois este autor acredita que a coordenação entre os setores da economia possa ser feita com base em dados objetivos sobre a economia.
Da interpretação que Lavoie faz do problema do conhecimento de Hayek, Adaman e Devine extraem o reconhecimento da importância do conhecimento tácito. Se boa parte do conhecimento relevante para as decisões econômicas fosse tácita, o planejamento proposto por Dobb não seria possível.
Por outro lado, os autores não crêem que a única forma de descobrir e utilizar conhecimento tácito seja através da rivalidade entre empresários competindo nos mercados. A atividade empresarial, dessa maneira, não estaria associada necessariamente com a existência de propriedade privada.
No modelo de ‘planejamento participatório democrático’, Adaman e Devine pretendem então combinar os pontos fortes de Dobb e Lavoie, complementares entre si: “Em nosso ponto de vista, a lição para os socialistas do debate do cálculo é que a atenção deveria se focar na possibilidade de combinar planejamento com a articulação de conhecimento tácito” (Adaman e Devine, 1996:529).
Isso seria feito a partir do conceito de ‘propriedade social’, distinto tanto da ideia de propriedade privada quanto da propriedade pública estatal. A propriedade social atribui direito de participação nas decisões sobre o uso de um conjunto de ativos a todos aqueles que são afetados por essas decisões.
No que diz respeito à propriedade social das firmas, as decisões devem ser tomadas em conjunto pelos trabalhadores, consumidores, comunidades locais e regionais onde as firmas se situam, órgãos de planejamento central e regional, grupos defensores do meio ambiente e grupos voltados para a defesa de oportunidades iguais para grupos de interesse específicos.
Embora não detalhem como, acreditam os autores que o conhecimento tácito desses agentes seria articulado no processo de negociação: “… este conhecimento tácito seria mobilizado por um processo de negociação entre todos interesses beneficiados e portanto os problemas de agente-principal seriam minimizados” (Adaman e Devine, 1996:533). Desse diálogo entre os detentores do capital social da firma são decididos os usos dos recursos dessa firma.
Por outro lado, os autores afirmam que as firmas fixariam seus preços com base nos custos médios de longo prazo, calculados com base na quantidade de trabalho empregada na produção dos bens. Adicionalmente, a observação dos estoques ou encomendas forneceria informações sobre a necessidade de expansão ou contração da produção.
As indústrias, por sua vez, decidiriam o montante de expansão na sua capacidade produtiva através da discussão nos chamados ‘corpos de coordenação negociada’, que reuniriam os consumidores, as firmas do setor, as firmas fornecedoras de insumos e as firmas consumidoras de produtos, comissões de planejamento global, nacional e regional preocupadas com inovações, desenvolvimento regional ou relações entre indústrias, além de outros grupos interessados no setor.
Os corpos de coordenação decidiriam sobre os investimentos a partir de informações sobre o desempenho das firmas, estimativas de mudanças, custos e demanda com a capacidade atual e com a adoção de inovações, além de opiniões sobre as causas das diferenças de desempenho e também sobre as condições econômicas e sociais das diversas localidades.
Os autores não discutem como essas informações são obtidas, como são estabelecidos os preços e custos ou ainda em que medida os órgãos decisórios devem ou não se ater a regras de custos e ajustar a produção à demanda. Embora a alusão a essas regras implique que a coordenação no final das contas seria ex post, os autores afirmam que as transações de mercado seriam mantidas, mas as forças de mercados seriam substituídas pelo planejamento ex ante através das discussões. Entretanto, não temos um detalhamento mais preciso de como a coordenação ex ante, via planejamento, interage com a coordenação ex post, via preços, de forma a haver um mecanismo de seleção de hipóteses empresariais erradas.
A moderna reação de inspiração marxista aos desenvolvimentos do debate do cálculo que apresentamos acima nos servirá para ilustrar o ponto essencial que separa os defensores dos críticos do planejamento ao longo da controvérsia.
O ponto original do desafio de Mises, retomado por Hayek, foi apontar para a incapacidade da mente humana de lidar com a complexidade do problema alocativo. Em Mises, o reconhecimento dessa complexidade tem origem na teoria austríaca do capital e se manifesta na enorme variedade de combinações que os bens de produção podem tomar ao longo do processo temporal de produção. Sem a ‘divisão intelectual do trabalho’ possibilitada pelo cálculo baseado nos preços de mercado, seria impossível conceber quais dessas combinações seriam as mais econômicas.
Reagindo à solução estática do socialismo de mercado, que simplifica sobremodo a natureza do problema, tanto Mises quanto Hayek enfatizaram o fluxo contínuo de alterações na realidade econômica e a riqueza de detalhes locais que devem ser levados em conta no problema real. A fim de preservar a produtividade de um sistema econômico moderno, com a alta especialização e complexas e cambiantes relações entre seus elementos, ou fazemos uso de um sistema indireto de correção de erros, que transcende ao controle consciente do planejador, ou devemos esperar que este seja onisciente.
Já por trás tanto do trabalho de O’Neill quanto do de Adaman e Devine, podemos encontrar uma opinião (ora explícita ora tácita) sobre a complexidade do problema econômico e sobre a natureza do conhecimento necessário para lidar com ele. O primeiro nega claramente que haja a complexidade mencionada acima, sendo a incapacidade de conhecer o sistema como um todo tributável aos segredos industriais mantidos pelas firmas, rivais entre si. O texto de Adaman e Devine, por sua vez, procura imaginar uma proposta concreta para organizar a produção de forma transparente. Reduzida a complexidade do problema econômico, a mente humana passa a dar conta da sua solução de forma consciente. Os três autores consideram o problema econômico simples o bastante de modo a ser possível agregar e processar informações sobre os diferentes setores da economia, viabilizando o controle consciente do processo produtivo como um todo.
No texto de O’Neill, temos uma concepção sobre a natureza do conhecimento relevante para a solução do problema econômico próxima à de Dickinson: deve-se imaginar um sistema de coleta de informações objetivas (e acuradas) sobre a realidade econômica. Difere O’Neill deste último autor apenas no que se refere à natureza desses dados necessários, já que este acredita na teoria do equilíbrio geral enquanto aquele, na doutrina marxista.
Já Adaman e Devine, sob a influência de Lavoie, reconhecem a natureza tácita de grande parte do conhecimento dos agentes e que, portanto, não seria possível tratar os dados de forma objetiva. Entretanto, este problema poderia ser superado pela conversa entre todos aqueles que se relacionam economicamente. Isso tornaria possível transformar o conhecimento tácito em objetivo.
Examinando essa afirmação sob o ponto de vista austríaco, contudo, isso não seria possível, precisamente por causa da crença na complexidade do problema alocativo. Se um sistema econômico se limitar ao uso de conhecimento articulado, o grau de complexidade que esse sistema poderia atingir seria limitado pela capacidade cognitiva de seus agentes. Para Hayek, a humanidade transcendeu esse limite através da evolução de instituições, como o sistema de preços, que forneceram mecanismos de correção de erros impessoais, que dispensam o controle consciente imaginado pelos marxistas.
Por isso, na concepção hayekiana de Lavoie, boa parte do conhecimento relevante economicamente será necessariamente tácito, não articulável. Os agentes atuam boa parte do tempo não por meio de cálculo racional consciente, mas sim segundo regras, tradições que evoluíram ao longo do tempo e que foram capazes de garantir algum sucesso aos agentes. A idéia de Adaman e Devine de que o conhecimento tácito seria articulado ao longo do processo de discussão pecaria então por ignorar dois elementos: a) os agentes não têm consciência de boa parte dessas regras e b) o conhecimento tácito se forma a partir de tentativas e erros durante o processo de competição entre rivais nos mercados.
Paralelamente à discussão sobre as conseqüências do reconhecimento da natureza tácita do conhecimento em relação à capacidade (ou não) de se controlar conscientemente o processo produtivo, podemos examinar as idéias de O’Neill, Adaman e Devine sob o ponto de vista da reinterpretação do problema que efetuamos no sexto capítulo.
A complexidade do problema alocativo na qual acredita Hayek implica que o conhecimento dos agentes econômicos é falível, sempre conjectural. Isso nos traz de volta a preocupação com o conhecimento dos agentes e não apenas com a capacidade de processamento de informações. Se as hipóteses dos agentes sobre as variáveis econômicas locais forem conjecturais, a diversidade de opiniões (e um mecanismo de correção de erros) se faz necessária. Assim, mesmo supondo plena publicidade dos dados, como quer O’Neill, não teríamos a coordenação entre os agentes: ou as mesmas informações seriam interpretadas de forma diferente por diversas firmas e não teríamos um plano coerente ou o conjunto de todas as firmas coordenariam suas ações, caso em que cedo ou tarde teríamos o desencontro entre a única opinião que informa os planos e a realidade subjacente, causando crises de proporções significativas.
Da mesma maneira, na proposta de Devine, a despeito dos desacordos no processo de diálogo entre os agentes, teríamos uma única opinião sendo eleita democraticamente. Seria então impossível apostar em uma linha de ação diversa e provar que a maioria estava errada.
O controle consciente do processo produtivo sugerido nos dois textos, para que represente um ganho de eficiência em relação à competição nos mercados, deve em última análise pressupor infalibilidade do conhecimento. Evitam-se com isso os desperdícios da competição; mas, se o conhecimento for falível, o plano fracassa como um todo.
A tendência entre os economistas de adotar uma concepção positivista sobre o progresso do conhecimento (visto como um acúmulo de informações objetivas, livres de pré-concepções, coletadas empiricamente e passíveis de generalização indutiva) sempre esteve presente no debate. Adicionalmente, a falha em distinguir entre o conhecimento estilizado do economista e o conhecimento prático dos agentes econômicos resultou na transferência da simplicidade do primeiro para o segundo, o que levou os economistas a acharem que o planejamento econômico deve envolver a coleta de dados imutáveis sobre simplificações como funções de produção, preços de produtos homogêneos e curvas objetivas de custos.
As tendências descritas acima permitiram que, de Barone a Stiglitz, o problema do cálculo fosse visto meramente como uma questão de coleta e processamento de dados. A última proposta de solução ao problema do cálculo que discutiremos, formulada por Cotrell e Cockshot (1993), ilustra mais uma vez essa concepção. O interesse da proposta, também pertencente ao conjunto de críticas marxistas à revisão do debate feita por Lavoie, consiste em tocar no ponto que consideramos central ao debate: a complexidade do problema e o conhecimento necessário para lidar com essa complexidade.
Cottrell e Cockshott (1993:246), em sua interpretação do debate, reconhecem que a questão da complexidade do problema econômico está na base do argumento de Mises. Como fizemos no terceiro capítulo, citam em suporte desta tese a passagem de Mises a respeito da ‘divisão intelectual do trabalho’, que sugere que o planejamento de sistemas complexos estaria limitado pelas capacidades da mente humana.
Contudo, os autores disputam a tese misesiana de que a única maneira de realizar esse controle seria via cálculo aritmético em termos de lucros e perdas. Uma borboleta, por exemplo, ao controlar os movimentos de seus músculos, dirige seu corpo em direção a fontes de alimento. A borboleta teria então que computar os benefícios e os custos de cada tipo de movimento a fim de atingir seu objetivo, a obtenção de néctar. Esse cálculo, entretanto, não seria aritmético.
A partir desse exemplo, cuja fonte de ordem é a seleção natural, os autores sugerem que desenvolvimentos na ciência da computação, como inteligência artificial e redes neurais, podem então dizer algo sobre a tese de Mises.
Cottrell e Cockshott desenvolvem então um modelo de economia socialista na qual pretende utilizar os métodos aludidos de computação para superar a complexidade do problema econômico.
A proposta de solução ao problema do cálculo dos autores é baseada na teoria do valor trabalho e combina a matriz insumo-produto de Leontieff com um mecanismo de tâtonnement semelhante ao idealizado por Lange. O valor ?i de uma unidade do bem i, medido em termos de quantidade de trabalho empregada em sua produção, é dado pela quantidade de trabalho diretamente empregada ?i acrescido do valor dos bens de capital usados na produção do bem. Esse valor é dado pelo valor ?j de cada insumo multiplicado pelo coeficiente técnico aij que diz quantas unidades do insumo j devem ser utilizadas na produção do bem i. O valor de um bem então é dado por:
?i = ?i + ai1?1+ai2 ?2 + … + ain?n
Essa formulação é acompanhada da reafirmação dos autores da crença marxista de que o trabalho de agentes diferentes pode ser reduzido a um denominador comum.
Tomando todos os i produtos na economia, temos uma matriz V (nx1) de seus valores, dados pelo vetor ? (nx1) de trabalho direto mais a matriz A (nxn) de coeficientes técnicos multiplicada pelo valor de cada bem, vistos agora como insumos:
V = ?+ AV
O vetor V, que representa a solução para os valores dos bens em termos de quantidade de trabalho, é então dado pela inversão da matriz (I-A)-1:
V = (I-A)-1?
Calculado o valor dos bens em termos de horas de trabalho, os consumidores, de posse de seus vales[2], cujo valor é equivalente ao número de horas trabalhadas por eles, demandam os bens que quiserem. No curto prazo, a autoridade responsável pelos preços efetua reajustes de preços de forma a obter um equilíbrio entre oferta e demanda. No próximo período, a produção daqueles bens cujo valor de equilíbrio esteja acima (abaixo) do valor do trabalho é aumentada (diminuída), até que a razão entre esses dois valores seja igual à unidade no longo prazo. Em cada período são então efetuados ajustes na matriz de coeficientes. Obtém-se assim um plano coerente para a economia.
Contudo, a possibilidade de implementação desse modelo, entre outras críticas, estaria sujeita à objeção computacional levantada por Robbins e Hayek contra a proposta de Dickinson. Cottrel e Cockshott, que vêem o problema do cálculo como uma questão puramente computacional, afirmam que essa objeção seria válida apenas na época do debate original. A modelagem moderna de fenômenos complexos teria resultado no desenvolvimento de algoritmos capazes de lidar com o problema. Estimando que a economia soviética possuía 10 milhões de produtos, a inversão de uma matriz 107x107 seria viável com o auxílio desses algoritmos e pelo fato de que grande parte da matriz de fato seria composta por zeros (cada produto utiliza um número relativamente pequeno de insumos).
Quanto à coleta dos dados, Cotrell e Cockshott (1993:103) imaginam uma rede de computadores interligando as firmas, cada uma delas apresentando uma planilha na qual são reportadas as condições atuais da produção, em termos da quantidade de insumos e produtos, codificados de forma padronizada.
Os autores, que de início mencionam a complexidade do problema, acabam acreditando que este seria afinal tratável. Repetem então a opinião final de Lange (1969) de que o futuro do socialismo estaria na maior capacidade de processamento de dados que resulta do progresso da ciência da computação.
Tendo em vista a proposta de Cotrell e Cockshott, poderíamos perguntar como, também partindo de considerações sobre complexidade, os seus autores chegam a conclusões diretamente opostas a nossa interpretação do debate. Na verdade, isso pode ser explicado pelo fato de que a complexidade é reconhecida apenas no modelo, no modo como os dados são tratados, e minimizada no que se refere à complexidade do problema alocativo em si. Isso pode ser visto a partir da crítica que os autores fazem à reinterpretação do debate feita por Lavoie.
Cotrell e Cockshott (1993:90) identificam corretamente que a leitura de Lavoie se baseia no fato de que os socialistas de mercado ignoraram o problema econômico real – dinâmico – para se concentrar na solução estática, irrelevante para o primeiro. Porém, em vez de argumentar contra a necessidade de uma teoria de processo de mercado, os autores interpretam a crítica austríaca como se esta tratasse de computação de dados para se obter um novo equilíbrio estático:
Na medida em que tais afirmações são baseadas nas limitações das comunicações e armazenamento de dados, elas são simplesmente ultrapassadas agora, mas existe outra base? Lavoie sugere que o problema se encontra não tanto na coleta de dados, mas na criação de dados relevantes. (Cotrell e Cockshott, 1993:90, ênfase no original.)
Desconsiderando o falibilismo inerente ao conhecimento dos agentes, testado no processo competitivo, os autores, como Yunker, acreditam que a atividade empresarial poderia ser substituída por um fundo criado com o propósito de gerar inovações[3]. Os problemas gerados pela possibilidade de conhecimento falível, dessa forma, passam despercebidos pelos autores:
O ponto válido de que uma economia dinâmica deve estar constantemente em busca de novos métodos e produtos, e portanto as informações sobre as ‘funções de produção’ não são dadas de uma vez por todas, tende a se diluir, em Mises e Hayek, naquilo que se pode chamar de ‘misticismo do empresário’ — um subjetivismo radical para o qual não podemos ver justificação científica. (Cotrell e Cockshott, 1993:90, n.r.)
A dificuldade em interpretar corretamente o significado da objeção austríaca, segundo a nossa tese, pode ser buscada em considerações sobre conhecimento: se a complexidade do problema econômico for plenamente reconhecida, o conhecimento dos agentes se torna conjectural e falível, o que requer diversidade de opiniões e um mecanismo de teste. Se essa complexidade for ignorada, o conhecimento se reduz a dados, cuja única dificuldade consiste sua coleta e processamento a tempo.
O artigo de Cotrell e Cockshott resultou em uma resposta de um economista austríaco. Horwitz (1996), da mesma forma que fizemos acima, também considera que o problema da proposta dos autores consiste em tratar uma questão epistemológica como se fosse computacional. Entretanto, a crítica de Horwitz difere da nossa em relação às idéias epistemológicas utilizadas. Em vez do falibilismo popperiano que utilizamos, Horwitz emprega as observações de Lavoie sobre conhecimento tácito.
Cottrel e Cockshott, ao buscar algoritmos que resolvam o problema computacional de seu modelo, citam oOrganization of Behavior de Hebb como uma obra pioneira na área de redes neurais. Horwitz (1996:71) chama a atenção para uma ironia relacionada a essa citação. O The Sensory Order de Hayek, publicado na mesma época que o livro de Hebb e que desenvolve os mesmos temas deste último, conteria a crítica à proposta de Cottrel e Cockshott. Uma das principais conclusões do trabalho de Hayek afirma que a complexidade da mente impede que ela entenda o seu próprio funcionamento e que esta só pode entender completamente algo que tenha um grau de complexidade menor. Em vez de entender seus detalhes, a mente poderia apenas explicar os princípios de seu funcionamento e realizar previsões de padrão.
O limite ao conhecimento explícito dos agentes que pode ser derivado dessas idéias, para Horwitz (1996:71), mostra o defeito do modelo dos autores: não é possível transmitir conhecimento tácito que não existiria sem o processo competitivo.
Horwitz nota que se por um lado as observações sobre complexidade, aplicadas a modelos, podem ajudar a solução de um problema computacional, por outro, quando aplicadas ao próprio fenômeno estudado, conspiram contra a relevância de tal solução[4]. Essa idéia pode ser melhor entendida através da distinção retirada na biologia evolucionária entre seleção natural e seleção artificial. Como podemos lembrar, Cottrell e Cockshott tomam o vôo de uma borboleta para ilustrar um mecanismo de controle de um sistema complexo. Dawkins (1998) ao utilizar um exemplo semelhante, a alimentação de aranhas, introduz a distinção entre seleção natural e artificial, relevante para o nosso problema.
A adaptação evolutiva dos seres vivos pode ser descrita como um processo de resolução de problemas[5]. Dawkins (1998, capítulo 2) considera o problema particular de achar um método eficiente de capturar insetos. Na solução encontrada pelas aranhas, utilizar redes de seda, temos a vantagem do grande alcance das teias e também de seu baixo custo em comparação com o deslocamento direto do predador. Mas, se por um lado teias maiores e mais densas capturam mais insetos, os seus custos de fabricação e manutenção são maiores. Teias mais esparsas, do contrário, têm custo pequeno, mas quase não capturam insetos.
A seleção natural, dessa maneira, favorece as teias que capturam o alimento de forma relativamente eficiente. Como firmas maximizadoras de lucros, aranhas que constroem teias cujo benefício marginal da seda e do trabalho supere o seu custo marginal tendem a sobreviver e reproduzir. Como em Alchian, tudo ocorre ‘como se’ a aranha fosse capaz de realizar o cálculo econômico de custos e benefícios.
Esse processo de seleção natural foi simulado artificialmente. Krink e Vollrath (1997) desenvolveram um programa denominado NetSpinner, no qual a seleção de teias de aranha é modelada com o auxílio de um algoritmo genético. Considere aranhas artificiais que constroem teias na tela de um computador. O formato das teias é dado por regras de construção representadas por ‘genes’, que controlam, por exemplo, o ângulo entre os fios radiais ou dos fios espiralados. Cada aranha dá origem a descendentes com mutações. Esses descendentes são submetidos à seleção, conforme o seguinte critério: cada teia é bombardeada aleatoriamente por pontos, que representam insetos, e computam-se os ‘lucros’ da aranha. Quanto mais densa a teia, maior é o número de insetos capturados, maior portanto a ‘receita’ obtida. Isto, porém, tem um custo, determinado em termos do comprimento do fio utilizado, já que a seda e a energia da aranha são recursos escassos. Uma teia pouco custosa, no entanto, não é capaz de capturar muitos insetos. O descendente com maior retorno (que não é máximo) é selecionado para procriar na próxima geração e assim repete-se o procedimento. Depois de várias gerações, o processo de evolução das teias no NetSpinner chega a resultados semelhantes a teias reais.
Apesar do sucesso em explicar o princípio de funcionamento da seleção natural, o modelo de seleção artificial não duplica o processo de seleção natural. Dawkins nota que o NetSpinner é um programa que dá conta de apenas alguns aspectos do processo evolutivo real. Por isso, os dados que alimentam o sistema têm necessariamente algo de arbitrário:
O programador tem que tomar uma decisão acerca de quanto custará uma dada extensão de “seda”, na mesma moeda em que determina o valor de um “inseto”. O programador poderia alterar à vontade a taxa de conversão de moeda. Ele poderia, vamos dizer, duplicar o “preço” da seda…. A taxa pela qual a “carne” de inseto é convertida em filhotes de aranha também é decidida pelo programador. A decisão é arbitrária e, se alterada, produzirá um resultado evolucionário diferente. (Dawkins, 1998:78)
O processo de seleção natural em geral leva em conta uma infinidade de características dos animais que interagem de forma complexa, como agilidade, dureza do couro, tamanho de dentes e assim por diante. Para podermos avaliar em um modelo a eficácia desses instrumentos para a caça de uma presa, precisaríamos recriar no computador toda a biologia e a física. Não há como obter sucesso nessa tarefa, por mais complexos que sejam nossos programas:
Mas parece não haver algum modo natural e não arbitrário de decidir que características [dos seres artificiais] os tornarão bons ou não no que diz respeito a caçar presas ou escapar de predadores. … Os dentes e a pele são apenas padrões de pontos numa tela fluorescente bidimensional. Agudeza e dureza, fragilidade e venenosidade, estas quantidades não têm significado algum em um tela de computador além do definido por números, arbitrariamente escolhidos pelo programador. Você pode programar um jogo de computador no qual números lutem contra outros números, mas as vestimentas gráficas dos números são meras maquiagens supérfluas. “Arbitrário” e “planejado” soam para o jogador como eufemismos. (Dawkins, 1998:71)
Ainda que de forma muito imperfeita, conseguimos simular o processo de seleção natural na construção de teias de aranhas, pois lidamos com teias bidimensionais, mais facilmente reproduzidas em uma tela plana. O comprimento do fio e a representação pontual de insetos são simplificações razoáveis. Conhecem-se, além disso, os processos naturais de construção de teias reais[6]. Mas mesmo nesse caso, aponta Dawkins, o modelo nem esbarra na complexidade do problema. Poderíamos levar em conta uma infinidade de complicações, como por exemplo a utilidade marginal decrescente de apanhar um inseto adicional, ou os diferentes valores nutritivos dos insetos, os complicados fatores físicos da construção da teia. As soluções encontradas nas teias de aranha reais são de fato muito mais complexas do que aquilo que poderíamos gerar no computador. A adição de detalhes dessa natureza aos ‘preços’ ainda envolveria decisões arbitrárias do programador:
A decisão é arbitrária e, se alterada, produziria um resultado evolucionário diferente. Na vida real, nenhuma dessas decisões é arbitrária. Nenhuma delas é, de fato, uma decisão e nenhum maquinário computacional é usado para que sejam tomadas. Elas apenas acontecem, naturalmente e sem alardes….A conversão acontece automaticamente, a despeito de alguém registrá-la em termos matemático-econômicos ou não. (Dawkins, 1998:78)
É grande a semelhança do argumento de Dawkins com a tese de Mises e Hayek sobre a impossibilidade de calculo econômico no socialismo sem um sistema de preços de mercado. Preços paramétricos podem dar conta de um aspecto muito limitado da complexa realidade econômica, pois fazem parte de um sistema de seleção artificial. A vantagem do sistema de seleção natural do mercado é justamente lidar com essa complexidade. No mecanismo seletivo dado pelos lucros e perdas, não impomos a priori o que poderia levar a uma vantagem competitiva. No processo evolutivo surgem soluções criativas e inovadoras para gerar tais vantagens. Na competição econômica, a mesma idéia aparece quando Hayek vê o mercado como um processo de descoberta.
Já os modelos de Lange e Cockshott são exemplos de seleção artificial: os fundamentos da economia que entram no modelo não representam a riqueza do processo de seleção dos mercados reais. A substituição deste pelo modelo de seleção artificial acarretaria então na diminuição da efetividade do mecanismo de resolução de problemas.
A contribuição hayekiana ao debate, por outro lado, pode ser resumida da seguinte forma: só conseguimos expandir a complexidade da cooperação social, por meio de maior divisão do trabalho, com o auxílio de instituições, como o sistema de preços, que realizem a tarefa de economizar informações. As partes de um sistema se coordenam por um sistema de feedback (lucros e perdas) que não requer onisciência por parte dos agentes, pois os detalhes do processo de seleção não precisam ser conhecidos (não se trata de seleção artificial). A mesma idéia pode ser encontrada em Dawkins:
O ponto que desejo esclarecer é tão óbvio que mal precisa ser explicado. No entanto, é importante demais para passar em branco. A toda hora incorpora-se um ponto adicional e complicado ao NetSpinner e páginas extras de difícil linguagem de computação têm que ser escritas por um programador humano inteligente. Entretanto, na vida real existe uma ausência marcante de computações explícitas. O fator de conversão de valores/moedas entre a proteína do inseto e a proteína da seda simplesmente existe automaticamente. (Dawkins, 1998:79)
Esse argumento articula a ênfase misesiana na formação de preços de mercado, resultante da participação de inúmeros indivíduos e que portanto contêm mais informações do que um preço paramétrico, na medida em que o processo competitivo real não se limita àquilo que é descrito pela teoria da competição perfeita.
Embora em economia os agentes individuais planejem conscientemente, façam cálculos econômicos, suas tentativas ainda são cegas em relação ao problema da coordenação como um todo: os agentes têm que descobrir, em um processo de tentativa e erros de outra ordem, quais são as realidades às quais suas ações têm que se adaptar. Mas, novamente, tanto em biologia quanto em economia, o processo seletivo gera um padrão complexo que não exige o conhecimento dos detalhes do sistema:
A seleção natural é um processo extremamente simples, no sentido de que necessita muito pouco maquinário para funcionar. É claro que os efeitos e conseqüências da seleção natural são extremamente complexos. ((Dawkins, 1998:pág. 82)
Vimos que para Dawkins (Hayek), o programador (o planejador central) tem em seu modelo uma representação bastante pobre da realidade estudada e mais especificamente dos processos seletivos envolvidos. Por isso, a necessidade imposta pela modelagem de se especificar explicitamente o critério seletivo envolve a desconsideração de uma característica essencial dos processos evolutivos, qual seja, a complexidade dos elementos que entram no processo de seleção. Pode ocorrer que a competição em mercados artificiais cesse levando-se em conta o critério arbitrário postulado pelo programador, mas a competição real prosseguiria, tendo em vista aspectos insuspeitos, não contemplados pelo programa. Ou ainda em outros termos, a capacidade de adaptação de um sistema evolutivo é grandemente reduzida, por hipótese, nesse tipo de modelagem.
Com base nessa discussão, podemos afirmar que o ponto fraco dos modelos de socialismo de mercado, de Taylor a Cottrell e Cockshott, consiste em ignorar as diferenças entre seleção natural e artificial no que diz respeito à superação da limitação cognitiva no problema da coordenação de agentes que interagem em sistemas complexos.
Esse resultado ‘naturalista’ substancia o triunfo da tese de Mises? Não existiriam então outros meios de coordenação das atividades econômicas a não ser pelo uso do sistema de preços existentes nos mercados? A tese da impossibilidade implica que não é possível que evolua um mecanismo seletivo alternativo que, talvez com o auxílio da informática, possa lidar com a complexidade do problema alocativo. A tese, lida como a proposição universal “toda tentativa de solução é falsa,” é sem dúvida refutável logicamente: basta construir um único modelo que efetivamente resolva o problema proposto por Mises (e não o pseudoproblema de imitar a teoria de equilíbrio competitivo). Porém, entre as tentativas apresentadas nesse quase um século desde o desafio inicial, nenhuma chega perto de replicar a complexidade alcançada com o sistema de preços de mercado.
Dada a possibilidade lógica de propostas melhores, , o estudo do debate do cálculo mantém seu interesse. Para os defensores do socialismo, deve estimular a imaginação na tarefa de especular sobre sistemas econômicos alternativos. Para os economistas em geral, por outro lado, ajuda a compreender melhor a complexidade do problema alocativo e valorizar aquilo que é feito por meio da ação livre.
Este trabalho teve como objetivo estudar o debate sobre o cálculo econômico socialista. Além do interesse gerado pelo problema em si, o estudo da controvérsia tem interesse teórico e metodológico. Como o problema discutido no debate tem sido investigado por mais de um século, de 1850 até hoje, os economistas que participaram das controvérsias se filiam a várias abordagens teóricas diferentes. Isso cria um ambiente propício para contrastar os diferentes pressupostos adotados por cada programa de pesquisa, em especial aqueles implícitos. A compreensão do problema em si, dessa maneira, se enriquece pela multiplicidade de pontos de vista que informaram as diferentes contribuições dos autores e a discussão das diferenças entre os programas de pesquisa desses autores nos ajuda a compreender melhor o significado dos postulados da teoria com a qual trabalhamos.
Por causa dessa multiplicidade de pontos de vista, boa parte das discussões foi gerada pelas traduções dos argumentos de autores para referenciais que não eram os originais. Em termos da História do Pensamento Econômico, o nosso trabalho procurou situar cada argumento no seu devido contexto teórico, recuperando assim o sentido original de cada argumento.
No diagrama abaixo, ilustramos algumas semelhanças e diferenças entre os principais programas de pesquisa envolvidos na controvérsia no que se refere ao problema do cálculo. Características no interior do triângulo indicam acordo e fora do mesmo, desacordo.
O ideal, naturalmente, seria uma sucessão de esquemas, como em um filme, já que os próprios programas de pesquisa foram mudando, em parte devido ao próprio transcorrer do debate. A Escola Austríaca, em especial, articulou explicitamente suas diferenças com a Escola Neoclássica a partir das discussões do debate (cap. 5). Os economistas filiados a esta última, por sua vez, com a incorporação dos temas relacionados à assimetria de informação e com a maturação da teoria de equilíbrio geral, alteram suas opiniões sobre o problema do socialismo de mercado. Deixamos ainda de lado as diferenças entre correntes austríacas, marxistas ou mesmo de escolha pública que enriquecem mais ainda o debate.
Passando dos programas de pesquisa para os autores propriamente ditos, temos que o debate foi composto por diversas trocas de argumentos entre diferentes autores. Na tabela em seguida, indicamos os principais confrontos. Na tabela, o autor da primeira coluna iniciou cada disputa, o símbolo ‘Þ’ indica que o autor da primeira coluna criticou o da segunda e ‘Û’ indica que houve resposta à crítica por parte do segundo. A última coluna indica o capítulo do nosso trabalho no qual a disputa é tratada:
Devemos salientar que o núcleo do debate na verdade foi uma discussão entre autores neoclássicos (cap. 4) que ignoraram ou traduziram para o próprio referencial as críticas austríacas.
Em seguida, apresentamos uma linha do tempo do debate, para que possamos situar as contribuições dos autores em seus contextos históricos.
Linha do Tempo
Como mostra o diagrama, o problema já era discutido antes do texto de Mises (cap.2) e, depois do artigo deste (cap.3), o debate propriamente dito se concentrou na década de trinta do século XX (cap. 4 e 5). Até que seja retomado na década de noventa (cap. 7), o período entre 1940 e 1990 foi marcado pela controvérsia em HPE sobre quem teria vencido o debate (cap. 6).
No que diz respeito às tentativas de refutar a tese de Mises, foram imaginados vários modelos nos quais o cálculo econômico seria realizável no socialismo. O debate do cálculo, além das discussões sobre a natureza do problema em si e das interpretações dos argumentos utilizados, girou em torno da viabilidade dessas propostas.
Embora tenhamos diferenças entre as propostas dos diversos autores, podemos agrupa-las em categorias. Na tabela abaixo, listamos, em ordem cronológica, as mais importantes, bem como seus defensores e críticos e características que as distinguem:
Defendemos ao longo deste trabalho a tese de que a sucessão de propostas e suas críticas nos ajudam a compreender o significado da teoria microeconômica e suas limitações. A teoria de equilíbrio de mercado originalmente pretendia descrever a solução do problema alocativo nos mercados. As hipóteses simplificadoras da teoria, como argumentamos, são legítimas na medida em que são utilizadas para explicar parte do fenômeno estudado. Quando o conjunto de simplificações teóricas foi utilizado pelos socialistas de mercado para construir um mecanismo alocativo, entretanto, as complexidades do mundo real deixadas de fora do modelo fizeram com que os mecanismos propostos não desempenhassem adequadamente sua função. Na tabela abaixo, poderemos ver que cada solução proposta ignora aspectos dos mercados reais. Como os críticos chamaram a atenção para esses aspectos, alguns deles eram incorporados na proposta seguinte. Conseqüentemente, em cada passo algum aspecto do planejamento central foi abandonado em favor da reintrodução de mecanismos de mercado, com o propósito de lidar com as objeções:
Nessa sequência, sucessivamente foram introduzidas preocupações com valor, com um sistema de preços, com a sua fixação por tentativas e erros, com a sua fixação de forma livre e, finalmente, com a introdução parcial de mercados de capital. Como a crítica austríaca a respeito da atividade empresarial que ocorre no processo de mercado foi ignorada em todas as fases, outros elementos não foram adicionados.
A introdução progressiva de elementos dos mercados nas propostas de socialismo nos informa então a relação entre a competição real nos mercados e as hipóteses da teoria que descreve essa competição, de forma a termos uma visão mais clara das limitações metodológicas do uso da teoria e dos limites explicativos da mesma.
Do estudo da sucessão de propostas e críticas extraímos o ponto central da nossa tese: as diferentes posturas a respeito da possibilidade de realizar cálculo econômico no socialismo variam conforme as diferentes concepções adotadas sobre a complexidade do problema econômico e sobre a natureza do conhecimento utilizado na solução do mesmo.
Se o problema for complexo e os seres humanos não forem oniscientes, o conhecimento sobre os detalhes que compõem os cambiantes fundamentos da economia é disperso entre os agentes e ao mesmo tempo falível. Se o conhecimento dos agentes for falível, precisamos de um mecanismo impessoal de seleção de hipóteses conjecturais (como o sistema de preços de mercado) e da liberdade para experimentar essas hipóteses (proporcionada nos mercados livres pela propriedade privada). Os mecanismos de seleção artificial propostos no debate, por outro lado, transferem a simplicidade do modelo para a realidade, reduzindo então a complexidade desta. Se não distinguirmos a natureza do conhecimento do cientista e do agente, corremos o risco de adotar uma visão positivista sobre o conhecimento dos agentes: o problema do cálculo se reduziria então à discussão sobre a capacidade de processar e coletar dados objetivos sobre funções de produção, demanda e quantidades de recursos.
Paralelamente a essa tese principal, o estudo de cada fase do debate mereceu interpretações sobre o seu significado. Alguns dos pontos desenvolvidos ao longo dos capítulos são listados em seguida.
No primeiro capítulo emendamos a distinção entre ciência normativa e positiva, de forma a incorporar na última o estudo teórico de sistemas alocativos alternativos. Mostramos também como as evidências empíricas sobre o socialismo real não geram julgamentos definitivos sobre as teses discutidas no debate teórico.
No segundo capítulo, vimos como a preocupação com o problema do cálculo se inicia com a própria criação da teoria marginalista. Desde Gossen, a definição do problema econômico muda, de modo que a utilização dos fatores na produção de cada bem não mais é vista como dependendo puramente de decisões técnicas, mas também de considerações sobre variações nos custos de oportunidades desses fatores. Independente da organização social, o problema alocativo deve ser resolvido. O argumento de similitude formal, além disso, já contém o germe da discórdia entre neoclássicos e austríacos, conforme a exposição do problema seja verbal ou formal.
O terceiro capítulo mostrou como a tese da impossibilidade do cálculo foi formulada simultaneamente por Brutzkus, Mises e Weber. Nos três autores está claramente presente a noção de que o problema alocativo é muito complexo para ser resolvido de forma direta, sem o auxílio dos preços.
No capítulo seguinte defendemos a tese de que os socialistas de mercado, ao interpretarem o desafio de Mises em termos walrasianos, ignoram o problema proposto por ele e transferem a simplicidade do modelo para a teoria, o que permitiu a sua solução no contexto da teoria de equilíbrio. Vimos no quarto capítulo o debate em torno das regras a serem seguidas: enquanto a regra ‘correta’ dos custos marginais pressupõe o conhecimento e fácil identificação das curvas de custo, a regra dos custos médios tinha seu apelo na independência financeira das firmas, consideração esta excluída por definição do escopo da teoria pelos economistas do período.
O capítulo sobre a reação austríaca mostrou como Robbins, Mises e Hayek criticaram a legitimidade da solução estática. Embora os dois primeiros tenham inicialmente deixado mais claras as diferenças entre as abordagens austríaca e neoclássica, advogando a necessidade da atividade empresarial e mercados financeiros, o último estabeleceu em sua tentativa de criticar o socialismo de mercado o que denominamos Economia do Conhecimento, pertencente ao núcleo do programa de pesquisa austríaco moderno: a Economia deve explicar como o conhecimento converge para a realidade e não assumir a correspondência automática entre dados subjetivos e realidade.
No sexto capítulo contrastamos a versão predominante sobre o debate, baseada no texto de Lange de 1936 com a versão revisionista austríaca, representada por Lavoie, além de estudar o debate entre os austríacos a respeito das diferenças entre os argumentos de Mises e Hayek. Essas diferenças foram atribuídas à rejeição do falibilismo popperiano por parte dos austríacos que defendiam o apriorismo misesiano. Consideramos também que a proposta de Durbin, ignorada na versão langeana do debate, merece mais atenção por ser mais próxima ao socialismo de mercado moderno. Nesse capítulo, demos ainda a nossa interpretação do debate em termos de uma solução popperiana ao problema do conhecimento de Hayek, em contraste com a solução de Lavoie baseada em conhecimento tácito.
No sétimo capítulo vimos como a preocupação com a Economia do Conhecimento de Hayek foi interpretada em termos da Economia da Informação. Essa tradução do argumento fez com que a objeção austríaca ao socialismo de mercado continuasse ignorada, pois esta afronta o núcleo duro do programa de pesquisa neoclássico. Em vez de lidar com os problemas do conhecimento falível, os novos socialistas de mercado buscaram modelos que tratassem do problema de informação assimétrica entre planejadores e administradores. Esta fase do debate aborda assim as questões de incentivos, consideradas ilegítimas por Lerner e Knight. Os novos modelos refletem a alteração no cinto protetor da teoria neoclássica.
No último capítulo vimos como a reação à interpretação de Lavoie por parte de autores marxistas reforça a nossa crença na centralidade da complexidade e da natureza do processo de aprendizagem dos agentes.
[1] Aparentemente o autor identifica a proposta de administração participativa com o socialismo de mercado em geral, dado que não discute outras formas de socialismo de mercado nas quais, por exemplo, o estado coordena o investimento.
[2] Ver no segundo capítulo a discussão do uso desses vales feita por Marx em Critic of Gotha Program.
[3] Confunde-se aqui o sentido da atividade empresarial de Schumpeter com o sentido austríaco de Mises e Kirzner. Para estes, como vimos, a atividade empresarial é necessária em todos os mercados, o tempo todo, a fim de que se explique a convergência ao equilíbrio, e não apenas para implementar inovações esporádicas.
[4] O autor apresenta o seu ponto através de uma analogia entre o uso de preços de mercado e o uso da linguagem. Da mesma forma que uma palavra só tem significado no contexto fornecido pelas demais palavras, também os preços não são entidades objetivas, mas só têm significado se forem parte do processo de competição. Embora pouco clara, a analogia pode ser entendida através da discussão que se segue.
[5] Popper (1975).
[6] No mesmo capítulo em que trata da seleção artificial do NetSpinner, Dawkins descreve os intrincados problemas e criativas soluções encontradas na história da seleção natural de teias de aranha de verdade. O autor pode fazer isso porque é capaz de observar a história passada das soluções já existentes. Cada solução tentativa para um problema evolutivo leva a uma nova gama de problemas num processo incessante de tentativas e erros.