1. Introdução: A História de um Debate Centenário
Mises notou que os autores marxistas pouco ou nada diziam sobre a natureza do sistema econômico socialista. A mesma observação foi feita pelo economista russo Boris Brutzkus, que simultaneamente formulou a crítica feita por Mises: “O socialismo científico, limitado exclusivamente à crítica da ordem econômica capitalista, não produziu até agora uma teoria para a ordem econômica socialista” (Brutzkus, 1920:3).
Quando a análise econômica do socialismo fosse feita, chegaríamos então à conclusão de que ali não seria possível alocar os recursos escassos de forma racional. Segundo Mises, em qualquer sociedade, se os recursos forem escassos, a decisão sobre o emprego de um fator na produção de um bem deve sempre comparar a importância do recurso na produção desse bem com a sua importância em empregos alternativos. Em uma economia avançada, as formas como os bens podem se combinar nos processos produtivos são incontáveis, de modo que, sem um sistema de preços de mercado para que se possa comparar benefícios com custos — tarefa que o autor denomina ‘cálculo econômico’ — seria impossível escolher combinações economicamente viáveis. Como no socialismo não existiriam mercados nos quais preços fossem formados, o cálculo econômico seria impossível e estaríamos perdidos diante da complexidade do problema econômico. Em vez de racionalizar o processo produtivo, o socialismo traria o caos.
A tese de Mises é melhor resumida com as próprias palavras do autor: “Onde não existe mercado livre, não existe mecanismo de preços; sem um mecanismo de preços, não existe cálculo econômico. (Mises, 1935:111)”
Desde a formulação dessa tese, os economistas socialistas têm buscado responder ao desafio de Mises, formulando modelos de socialismo que possam refutar o argumento da impossibilidade.
O conjunto de propostas de socialismo mais significativo foi formulado não por autores marxistas, mas sim por economistas neoclássicos, cujo programa de pesquisa reconhecia a importância do problema. Essas propostas procuravam resolvê-lo por meio da introdução no socialismo de alguma forma de sistema de preços, mesmo que fosse de forma simulada. A mais famosa dessas propostas foi sugerida pelo economista polonês Oskar Lange, em um artigo publicado em 1936-7, considerado o ponto culminante das discussões entre os economistas curiosamente denominados de ‘socialistas de mercado’. Na versão final do modelo de Lange, as firmas estatais seriam instruídas a minimizar os custos médios e igualar os custos marginais aos preços enunciados centralmente. O planejador estabeleceria os preços que, por tentativas e erros, seriam alterados de forma a igualar oferta e demanda. O debate em torno desses modelos constitui o chamado Debate do Cálculo Econômico Socialista.
O objetivo desta tese é estudar tal debate. O estudo da controvérsia do cálculo se reveste de interesse por vários motivos. Em primeiro lugar, existe o interesse no objeto em si da discussão. Simpatizantes e opositores do socialismo, ambos devem levar a sério o argumento que afirma a impossibilidade de sua existência. Se correta a tese sobre a impossibilidade do socialismo, qualquer discussão sobre a desejabilidade se torna ociosa ou sobre a sua inevitabilidade incorreta. De forma mais geral, a discussão sobre a economia do socialismo feita no debate deve interessar a todos aqueles que investigam quais seriam as formas de organização social mais adequadas, ou seja, deve interessar a todos os cientistas sociais.
Em segundo lugar, o debate é importante para os economistas que se interessam pela evolução da teoria econômica e por questões metodológicas a respeito do significado da teoria que utilizam. Embora o debate propriamente dito se inicie em 1920, a discussão sobre como o socialismo lidaria com o problema alocativo sem um sistema de preços se estende por um período que se inicia pelo menos desde 1850 até os dias de hoje. É curioso então estudar como o debate toma cursos diferentes conforme a teoria econômica avança e também como esta mesma deve parte desse avanço à própria controvérsia do cálculo. O debate passa pelo confronto entre as teorias clássica e neoclássica do valor, toma corpo com a maturação da teoria neoclássica, é parcialmente responsável pelo aprofundamento da cisão entre a Escola Neoclássica e a Escola Austríaca, se relaciona com a evolução da Teoria do Bem Estar e incorpora as contribuições posteriores da Escola de Escolha Pública e Teoria da Informação Assimétrica.
No debate, as teorias de equilíbrio geral e parcial foram utilizadas não para explicar o funcionamento dos mercados, mas sim para construir um novo sistema econômico. Isso, como veremos, dará origem a uma série de questões metodológicas sobre o significado e as limitações dessas teorias.
Finalmente, e em terceiro lugar, é interessante estudar a história da controvérsia por si mesma. Isso porque se trata de um dos debates mais interessantes da história da economia, no qual se envolveram alguns dos mais eminentes economistas do século XX.
Dada a importância do debate, é de surpreender, mesmo entre os economistas, quão poucos são aqueles que já ouviram falar do mesmo. Adicionalmente, entre estes últimos, a maioria tem conhecimento de uma versão bastante distorcida. Enquanto nessa versão o argumento de um dos lados da controvérsia é totalmente descaracterizado, os historiadores modernos que a contestaram se preocuparam em recuperar o significado do argumento distorcido, deixando todavia de expor com cuidado os argumentos do outro lado. Por isso, é uma ambição do presente trabalho deixar os participantes falarem por si mesmos, de modo a apresentar uma narrativa que exponha todos os lados da questão. Isso, naturalmente, sem nos furtarmos de tomar posição sobre o mérito dos argumentos apresentados.
Outro intento que buscaremos no trabalho será a apresentação de uma história completa da controvérsia. Em vez de tratar apenas do núcleo do debate, ocorrido nas décadas de vinte e trinta do século XX, procuraremos retomar com mais cuidado os seus antecedentes. Com efeito, o problema em questão já fora tratado em 1850 por Gossen, um dos precursores da Revolução Marginalista, e continuou sendo investigado por autores como Wieser, Cassel e Pareto, entre outros. Tampouco as discussões se encerram na década de trinta, quando ocorrem as principais tentativas de refutar a tese de Mises. Depois de um período de dormência, o debate é retomado na última década do século, e persiste até hoje. Este trabalho abarcará a fase moderna do debate, relacionando-a com as fases precedentes.
Por último, formularemos uma interpretação do debate tendo como base uma particular abordagem sobre metodologia da ciência que explicitaremos ainda neste capítulo[1]. Antes disso, porém, devemos fazer uma série de observações a respeito da natureza do socialismo e também sobre a relação entre os fatos históricos a respeito do socialismo e a tese teórica debatida aqui.
Definições de Socialismo e a Relação entre Teoria e História
O pensamento marxista dominava o movimento socialista quando Mises escreveu seu artigo. Para essa tradição, não apenas os mercados, mas também os conceitos de valor, preço ou lucro desapareceriam no socialismo. Contrapondo-se a essa crença, a tese da impossibilidade pressupunha ausência de mercados. Como parte das tentativas posteriores de propor um modelo que refutasse Mises introduzia no socialismo algum elemento tirado das economias de mercado, sempre estiveram presentes dúvidas se aqueles modelos poderiam de fato ser considerados socialistas, o que nos leva a perguntar qual seria a natureza do socialismo.
Contudo, como nos ensina Popper, não existe algo mais fútil do que disputas em torno de definições. A menos que se acredite que exista uma definição correta do termo, incrustada em uma espécie de dicionário definitivo existente no mundo das idéias de Platão, as definições são apenas conceitos imperfeitos que, apesar de pretender capturar algo sobre entidades reais, dependem do referencial teórico e dos problemas com os quais o investigador se preocupa[2].
Dessa maneira, apresentaremos algumas definições de socialismo dadas pelos participantes do debate, não com a intenção de encontrar a correta ou mesmo a melhor, mas sim com o propósito de determinar que características dos modelos propostos possam ser consideradas compatíveis ou não com a idéia de socialismo, ou seja, a fim de determinar se uma proposta pode ser vista como tentativa legítima de solução do problema do cálculo.
Uma proposta de socialismo que introduza mercados, por exemplo, será considerada ilegítima por aqueles socialistas marxistas que vêem no núcleo da idéia de socialismo a superação da produção de mercadorias, origem do que há de irracional no modo de produção capitalista. Para um socialista que define o sistema em termos da obtenção de igualdade, tal proposta pode ser vista como um meio legítimo. Ou ainda para outro que acredita que os mercados, especialmente os artificiais, podem ser totalmente controlados e usados como um instrumento de planejamento, o uso de mercados não implicaria em absoluto em perda de controle do processo produtivo[3].
O socialismo pode ser então definido em relação aos fins almejados ou aos meios propostos para tal. No debate, Roemer (1994:11) e Weisskopf (1993:120) ilustram o primeiro tipo, definindo o socialismo em termos da busca de igualdade de oportunidades e direito à participação para todos os membros da sociedade. Esse tipo de definição é útil porque o conhecimento dos propósitos almejados nos ajuda a avaliar que proposta de socialismo se afina com o espírito desses objetivos. Contudo, é por demais ampla. Uma economia de mercado que por acaso gerasse uma distribuição igualitária deveria ser classificada como socialista?
A definição em termos dos meios, por sua vez, pode nos indicar que certos modelos que resolveriam o problema do cálculo não seriam considerados socialistas por outros participantes, já que negam por exemplo a abolição dos mercados. No debate, Flauerbaey (1993) propõe como solução uma sociedade com firmas administradas pelos trabalhadores, mas que competem em mercados. Além da rejeição marxista dessa proposta, o próprio Mises (1981) classificou uma proposta semelhante não como socialista, mas sim ‘sindicalista’.
Mises, assim como a maioria dos participantes do debate até a década de quarenta, definia o socialismo através da predominância da propriedade pública dos fatores produtivos. Isso pode ser visto em sua definição, feita em 1922: “Todos os meios de produção estão sob o controle exclusive da comunidade organizada. Isso e isso apenas é socialismo. Todas outras definições são enganadoras” (Mises, 1981:211).
Essa definição foi razoavelmente aceita ao longo do debate. Isso pode ser verificado através de uma definição de Roemer, que, como dissemos, prefere algo mais relacionado aos fins últimos:
Portanto eu considero útil definir socialismo não como um sistema no qual existe simplesmente propriedade pública, mas como um sistema no qual existem garantias institucionais de que os lucros agregados são distribuídos de forma mais ou menos igual na população (Roemer, 1993:89)
Além da propriedade, outro conceito chave relacionado ao socialismo é a noção de planejamento central. Embora a introdução parcial de mercados no socialismo enfraqueça o escopo relegado ao planejamento, ainda assim este ocupa um papel importante na percepção sobre o que viria a ser o socialismo. Isso pode ser visto na seguinte definição, talvez a mais completa, dada por Dickinson:
O socialismo é uma organização econômica da sociedade na qual os meios materiais de produção são possuídos por toda a comunidade e operada por órgãos representativos da comunidade e que respondem a ela, de acordo com um plano econômico geral, todos os membros da comunidade têm direito ao benefício derivado dos resultado de tal produção social planejada com base em direitos iguais. (Dickinson, 1949: 10)
Também para um dos opositores do socialismo, a abolição da propriedade privada implica em controle central:
[o socialismo é um] sistema de agressão institucional ao exercício livre da função empresarial em uma determinada área social e que é exercida por um órgão diretor que se encarrega das tarefas necessárias de coordenação social nessa área. (De Soto, 1992:92)
A definição de De Soto se baseia na distinção liberal entre economias nas quais predomina a troca voluntária ou a atividade coercitiva, pertencendo o socialismo a este último tipo.
Por fim, resta notar que a maioria dos debatedores na década de trinta distinguia socialismo de comunismo nos seguintes termos: “Uma economia socialista no sentido clássico é uma economia que socializa somente a produção, em contraste com o comunismo, que socializa tanto a produção quanto o consumo” (Lippincott, 1965:9)
Dados esses esclarecimentos a respeito dos fins e meios que os debatedores identificavam com o ideal do socialismo, iremos agora discutir em que medida os eventos históricos ocorridos nos países que se declaravam socialistas afetam as discussões teóricas do debate. O objetivo dessa discussão será afastar pretensas ‘provas’ ou ‘refutações’ empíricas das teses discutidas no debate e justificar por que este trabalho se limitará aos aspectos teóricos do problema.
Bergson (1948:448), seguido por Boettke (2000), sugere uma regra a ser observada pelos participantes do debate: teoria deve ser comparada com teoria e fato com fato. Não se pode comparar o modelo da competição perfeita com a economia soviética ou um modelo ideal de socialismo com as economias ocidentais presentes. Em ambos os casos, a idealização teórica obviamente vence a realidade.
A adoção dessa regra, à primeira vista adequada, suscita no entanto uma série de dificuldades, derivadas da impossibilidade de se definir os ‘fatos’ de forma inequívoca. Os dados empíricos, como enfatizam autores como Weber ou Popper, são impregnados de teorias: não existem aqueles sem estas. Como participaram do debate economistas de diversas formações — marxistas, walrasianos, marshallianos, austríacos, teóricos da informação e escolha pública — a mesma realidade pode ser vista como ‘fatos’ diferentes por cada um deles, conforme o conjunto de teorias econômicas e sociológicas de cada um. O que faremos em seguida é mostrar como alguns fatos são vistos de forma diversa por defensores e críticos do socialismo, conforme alteramos os óculos teóricos empregados.
Na comparação entre teoria e realidade do socialismo e economias de mercado, temos de fato todas as combinações possíveis. A economia da União Soviética foi considerada socialista tanto por socialistas quanto por opositores do socialismo. Por outro lado, tanto opositores quanto defensores negaram que fosse de fato socialista. Adicionalmente, o experimento soviético foi tanto utilizado como evidência de que o socialismo seria impossível quanto para afirmar o contrário. Já quanto às economias ocidentais, os seus problemas podem ser vistos como inerentes ao capitalismo pelos socialistas ou tributáveis ao estatismo pelos liberais. Vejamos mais de perto algumas dessas posturas.
No debate do cálculo, Bergson (1948:447) cita a posição segundo a qual a existência da URSS refutaria a tese de Mises: o funcionamento dessa economia provaria que o socialismo e o planejamento central seriam possíveis.
Robbins, por outro lado, disputa a tese de que a URSS alocava recursos de forma adequada, sem enormes desperdícios de recursos. A experiência dos primeiros anos da revolução bolchevique, por sua vez, foi utilizada por Brutzkus (1935) como prova da tese da impossibilidade: a abolição do sistema de preços teria causado o caos econômico. Esse fracasso é por sua vez atribuído por Nove e outros aos distúrbios causados pela Primeira Guerra Mundial.
Depois da NEP[4], o período dos planos qüinqüenais também foi invocado para contradizer empiricamente a tese de Mises. Michael Polanyi (2003:210), por outro lado, acredita que os planos anuais não envolviam planejamento em absoluto. Para ele, na realidade, o suposto plano seria um resumo sem significação de planos agregados travestidos de plano único (pág. 112). Seria como se no xadrez um chefe de equipe afirmasse: nosso plano é avançar 45 peões em uma casa, 20 bispos 3 casas na media, 15 torres 5 casas, e assim por diante, sem referência às posições do tabuleiro. No ‘plano’, dados agregados de produção são retirados de seus contextos econômicos e encarados como simples processos de mudança física (pág. 214).
Também alguns socialistas negam que a Rússia tenha passado por um experimento socialista, já que este, segundo as previsões de Marx, surgiria em economias avançadas e não rurais. A URSS seria então uma forma de ‘capitalismo de estado’.
Os processos de reforma na Iugoslávia e Hungria a partir da década de sessenta, por sua vez, foram ora vistos como um exemplo real dos modelos propostos no debate, que misturavam mercados com propriedade pública (Bergson, Drenowski), ora vistos apenas como um dos primeiros passos para o abandono do socialismo (Kornai).
Por sua vez, os problemas encontrados nas economias americana e européias foram considerados como inerentes ao capitalismo por Lange (1936-7), um economista influenciado pelo marxismo. Já Mises e Hayek, pertencentes a uma tradição liberal, não compartilham da visão sociológica marxista sobre a natureza do ‘capitalismo’. Para eles, essas economias devem ser estudadas como economias mistas. Uma forma particular de intervenção não seria então inerente ao estado capitalista, mas dependente de fatores como a lógica do processo de intervenção e ideologia dos governos, que por sua vez não pode ser reduzida a interesses de classes da forma defendida pelo marxismo. Mises, por exemplo, formula uma teoria sobre a dinâmica do ‘intervencionismo’[5] para explicar o desempenho das economias modernas. Os problemas dessas economias são então atribuídos à forte intervenção do estado na economia e os méritos à esfera privada, da mesma forma que um estatista atribui os pontos positivos das economias mistas a programas governamentais e os fracassos ao mercado.
Poderíamos então modificar o conselho de Boettke, recomendando a comparação de teoria com realidade em cada um dos sistemas econômicos. Isso também não é simples em ciência social. As diferenças entre mercados livres e teoria da competição perfeita podem em graus diferentes ser atribuídas tanto a ‘falhas de mercado’, diante dais quais a realidade pode ser alterada para fazer jus aos padrões da teoria, ou a ‘falhas de teoria’, diante do que a teoria deve ser alterada para dar conta de explicar as complexidades dos mercados reais. As diferenças entre o ‘socialismo real’ e a teoria do planejamento podem também ser atribuídas a falhas de implantação dessa teoria, o que leva à conclusão de que o modelo deva ser implementado por outras pessoas ou partidos, ou ainda se deve esperar o momento histórico correto, ou a falhas de teoria, caso em que a evidência empírica mostraria a impossibilidade do planejamento.
Por fim, devemos invocar nessa discussão a distinção clássica difundida por Neville Keynes entre ciência normativa e positiva, a primeira descrevendo, sem juízos de valor, ‘o que é’ e a segunda indicando ‘o que deveria ser’ a partir de preceitos morais ou éticos e preferências políticas.
Drenovski (1961:342), com base nessa distinção, critica o irrealismo do modelo de ‘socialismo de mercado’ de Lange na medida em que este não lembra em absoluto o socialismo real. A teoria econômica do socialismo deveria ser então mais positiva, relacionada à economia soviética e menos normativa, como nos trabalhos de Lange, Lerner e demais ‘socialistas de mercado’.
Entretanto, a mencionada distinção, na nossa opinião, adiciona ainda mais confusão à questão. A inadequabilidade da distinção repousa em última análise na necessidade de separação, dentro da ciência positiva, entre aquilo ‘que é’ e aquilo ‘que poderia ser’[6]. A construção de um modelo teórico de um socialismo ainda não existente em parte alguma, segundo essa nova ótica, não se classifica como ciência normativa, uma sugestão ética sobre como o mundo deveria ser e não é, mas sim como ciência positiva, a investigação de como poderia funcionar uma sociedade baseada em um conjunto alternativo de instituições.
A discussão sobre a relação entre teoria e prática é então complicada pela óbvia impossibilidade de se comparar a teoria com a realidade, dado que tal realidade ainda não existe, embora estejamos tratando de um problema da ciência positiva[7]. O problema do cálculo, aliás, consistiu em uma discussão teórica a respeito da possibilidade de existência na prática dessa realidade alternativa denominada ‘socialismo’.
Discordamos então da crítica de Drenowski, que demanda que a investigação deva seguir em termos positivos conforme usualmente este termo é entendido. Steele (1991) concordaria com a nossa opinião, pois esposa em seu livro sobre a controvérsia do cálculo a causa do ‘socialismo utópico’, entendido não no sentido de Marx, mas sim como a tarefa intelectual de imaginar sistemas alternativos de funcionamento da sociedade.
Tudo isso foi dito com a intenção não de defender uma visão relativista em ciência social, mas para apontar que a questão é complexa e pouco afeita a comparações empíricas simplistas. Assim, os fatos não mostram necessariamente, de forma inequívoca, o fracasso do socialismo ou das economias ocidentais ou mesmo que uma terceira via seria a alternativa.
Por causa da diversidade de interpretações dos fatos, e pelo nosso interesse na história das teorias, nos limitaremos à controvérsia teórica, que, aliás, ocupou quase a totalidade das discussões no debate do cálculo. Faremos referência a argumentos empíricos somente naqueles pontos nos quais esses argumentos inspiraram novas contribuições teóricas aos modelos propostos na controvérsia.
A Base Metodológica do Problema
Como já mencionamos anteriormente, o estudo da controvérsia nos ajuda a compreender o significado da própria teoria econômica moderna. Isto porque importantes problemas relativos ao uso apropriado da teoria afloram quando analisamos os argumentos dos economistas que procuraram refutar a tese de Mises. A teoria neoclássica, concebida originalmente para explicar o funcionamento dos mercados, a partir do debate passou a ser utilizada para criar e controlar um sistema econômico alternativo[8]. No centro das discussões encontradas nesta tese estará a exploração do significado e da legitimidade do uso dos postulados da teoria e quando esta é utilizada nesse segundo modo.
A importância dessas questões, argumentaremos, dependerá da concepção que se tem sobre a complexidade do problema alocativo que Mises requer que seja resolvido no socialismo. Isto porque, admitida a complexidade do problema, a simetria em uma teoria entre explicação por um lado e previsão e controle por outro se rompe[9].
Para entendermos o significado dessa afirmação, devemos primeiramente investigar o que entendemos por complexidade e as conseqüências metodológicas do estudo dos fenômenos complexos. A melhor maneira de fazê-lo é através do exame de um artigo escrito por Hayek [1967] intitulado The Theory of Complex Phenomena. Visto que defendemos a tese de que o problema da complexidade está no centro da controvérsia do cálculo, não é de surpreender que Hayek, um dos participantes do debate, tenha se interessado por esse tema.
Nesse artigo, Hayek crê que quando passamos dos fenômenos físicos para os biológicos e desses para os mentais e sociais há um aumento de complexidade. O grau de complexidade, para Hayek (1967:25), se relaciona com o número mínimo de elementos de um fenômeno ou padrão necessário para descrevê-lo de forma satisfatória. Assim, as fórmulas da Física tipicamente envolvem poucas variáveis, e as previsões obtidas com tais fórmulas exibem grande precisão. Evidentemente, a composição de fenômenos físicos simples pode resultar em algo complexo. Os fenômenos biológicos e sociais, por outro lado, quase nunca são simples no sentido exposto[10].
A diferença fundamental entre o estudo dos fenômenos simples e dos complexos residiria então no fato de que, nos primeiros, as relações entre os elementos individuais do fenômeno (ou padrão) estudado não importam na sua explicação, enquanto que as relações estruturais entre tais elementos são fundamentais para que possamos estudar os segundos.
Por exemplo, para explicar a temperatura de um gás contido em um recipiente precisamos saber apenas a velocidade média de suas moléculas, ao passo que para entender o funcionamento do cérebro precisamos apelar para a localização dos neurônios e suas relações com os demais. Para prever precisamente o comportamento do padrão complexo, seria necessária uma quantidade gigantesca de informações detalhadas sobre as interações entre seus elementos e não apenas o ‘resumo’ dessas informações, expresso na forma de dados estatísticos.
Podemos derivar dessas observações a conclusão de que para fenômenos simples existe uma simetria entre explicação e previsão: as fórmulas da Física e Química, suficientes para descrever certos fenômenos com precisão, quando alimentadas com dados do passado fornecem uma ‘explicação’ do ocorrido; quando alimentadas com dados presentes, fornecem uma ‘previsão’ precisa sobre o que ocorrerá no futuro. Para os fenômenos complexos, por outro lado, jamais poderíamos conhecer os dados com a riqueza de detalhes necessária para que possamos fazer previsões exatas para o futuro. Por outro lado, podemos olhar o passado e explicá-lo com a teoria, imaginando que determinados fatores não observados estavam presentes. Existe então uma assimetria entre explicação e previsão no que se refere a teorias sobre esses fenômenos.
O argumento desenvolvido no parágrafo anterior parece implicar que o teste de hipóteses sobre fenômenos complexos seria impossível. Hayek, no entanto, preserva no mencionado artigo uma postura popperiana ao indicar que, a partir de tais teorias, podemos fazer previsões de padrão (pattern predictions). Podemos ilustrar a idéia do autor com um exemplo: embora a meteorologia não possa afirmar que amanhã ao meio-dia formar-se-á uma nuvem na forma de coelho, pode prever que sob tais e tais condições formar-se-ão cumulus nimbus, que apresentam uma série de características específicas. Hayek ilustra ainda o ponto com a teoria da evolução: embora esta não seja capaz de prever que conjunto de animais evoluirá em certa data futura, a teoria não é destituída de conteúdo empírico, pois existem certas previsões como por exemplo ‘o corte de um membro em sucessivas gerações de uma espécie não resultará no nascimento de indivíduos sem tal membro’. Hayek conclui então que se deve buscar refutar as teorias, como quer Popper; no entanto, o aumento da complexidade do fenômeno reduz forçosamente o grau de falseabilidade das teorias.
O reconhecimento de que é impossível prever os detalhes de um padrão complexo por falta de conhecimento sobre os detalhes de sua estrutura também implica na impossibilidade de construir e controlar esse padrão de forma centralizada, conclusão essa que Hayek desenvolve ao longo de várias de suas outras obras[11]:
Nunca produzimos um cristal ou um composto orgânico complexo colocando os átomos individuais em certas posições de modo que irão formar o retículo de um cristal ou um sistema baseado em anéis de benzeno que compõem um composto orgânico. Mas nós podemos criar as condições nas quais eles irão se arranjar dessa maneira. (Hayek, 1982:39-40)
Estruturas altamente complexas emergem a partir da interação de seus elementos, que seguem regras cujo propósito, se houver, não inclui a obtenção da estrutura emergente. Hayek (e também Michael Polanyi) denomina essas estruturas de ‘ordens espontâneas’. Embora nem todas as ordens espontâneas sejam complexas (Hayek, 1982:38), para que se obtenha um alto grau de complexidade é necessário transcender a capacidade cognitiva de um indivíduo ou grupo que tente planejar a estrutura em seus detalhes. Um dos princípios de organização dessas ordens espontâneas é o mecanismo de correção de erros dado pelo princípio de seleção natural na biologia ou o mecanismo de lucros e perdas nos mercados.
Voltamos agora à controvérsia do cálculo, informados pelas considerações sobre a natureza dos fenômenos complexos que tecemos acima. Se a alocação de recursos através dos mercados for de fato um exemplo desse tipo de ordem espontânea complexa a que nos referimos acima, o desafio de Mises requer uma resposta para o problema de substituir o mercado por um outro mecanismo capaz de lidar pelo menos com o mesmo grau de complexidade.
A resposta a Mises, entretanto, baseou-se na teoria neoclássica. Inspirada que é na mecânica e não na teoria da evolução, esta teoria trata os fenômenos complexos do mercado como fenômenos simples. Um produto simplório como, digamos, uma laranja, apresenta uma quantidade enorme de dimensões competitivas, como tipos, tamanhos, frescor, localização geográfica, serviços que acompanham o produto, entre outras características, características essas que levariam anos apenas para que fossem listadas.
A teoria econômica, no entanto, despreza essa variedade quando adota a hipótese de produtos homogêneos. As várias maneiras de produzir os bens, por outro lado, estão sob um constante processo de mudanças inovadoras. Na teoria, entretanto, temos um conjunto de opções técnicas estáveis e bem conhecidas, congeladas nas funções de produção. Uma curva de demanda ou oferta deixa então de fora, intencionalmente, as milhares de complicações que de fato impedem que tais curvas sejam relativamente estáveis[12].
Os defensores da teoria reagem a esse tipo de crítica lembrando que toda teoria é uma simplificação e que o mapa mais realista (e inútil) é aquele com escala 1:1. A isso devemos replicar que a crítica não é dirigida à simplificação por si mesma, mas sim ao uso indiscriminado de uma particular simplificação, independentemente da natureza do problema em pauta. Com tais simplificações, por exemplo, podemos explicar um enorme conjunto de fenômenos econômicos e até realizar uma série de ‘previsões de padrão’ do estilo ‘uma geada, ceteris paribus, resultará na elevação do preço da laranja’. Porém, quando a mesma teoria é utilizada para controlar o funcionamento da economia, como é feito nos modelos de socialismo de mercado, estamos impondo a simplicidade do modelo à própria realidade.
Impor um preço único para ‘a’ laranja levando em conta a demanda e a oferta agregadas dos diversos tipos do produto levaria não a um equilíbrio eficiente, mas sim a uma série de excessos de demanda ou oferta em cada mercado desagregado, que só poderiam ser eliminados por ajustes no custo de fabricação, como diminuição da qualidade (do lado da oferta) e substituição do produto (do lado da demanda), ajustes esses que levam a uma diminuição de bem-estar quando comparamos com as escolhas em um mercado não restrito dessa maneira. A imposição de um imposto de Pigou, por sua vez, além de desconsiderar o problema discutido acima, tem que pressupor para o seu cálculo que os custos, as funções de produção e as demandas sejam não só estáveis como também conhecidas, em flagrante oposição à realidade.
Na controvérsia do cálculo ocorre precisamente essa transferência da simplicidade do modelo para a realidade. Os defensores dos mercados artificiais, como veremos ao longo do trabalho, tendem a esquecer de que a teoria é uma simplificação, acreditando que a realidade é tão simples quanto a teoria a descreve. Por isso, a crítica não será dirigida sequer ao mérito do conjunto de hipóteses adotadas pela teoria neoclássica, mas sim ao seu uso inadequado, que não leva em conta as questões metodológicas discutidas acima: tendo em vista a complexidade do problema alocativo, a teoria é útil para descrever, em um plano altamente idealizado, o tipo de ajuste necessário para o funcionamento dos mercados, mas não para construr um sistema alocativo, como ao cristal da ilustração de Hayek mencionado anteriormente.
Tendo em vista isso, de um lado da controvérsia teremos um grupo de economistas que negam a natureza complexa dos fenômenos econômicos e evitam a todo custo a discussão de elementos dos mercados que ficam fora do que a teoria descreve e, do outro lado, economistas que apontam os elementos dos mercados reais que seriam essenciais para o seu funcionamento e que no entanto são descartados pela teoria. O estudo da controvérsia, deste modo, se reveste de vivo interesse na medida em que podemos aprender (ou lembrar) quais são os aspectos relevantes dos mercados que os economistas profissionais deixam de lado e que muitas vezes viciam as suas conclusões.
O presente trabalho é dividido da seguinte maneira. No segundo capítulo descrevemos a ‘pré-história’ do debate, que trata das primeiras aplicações da teoria neoclássica ao problema da economia socialista, desde Gossen em 1850 até os trabalhos de Wieser e Pareto, entre outros. Esses trabalhos estabelecem que a natureza do problema econômico – a escolha diante da escassez – seria a mesma em qualquer sociedade.
Em seguida, no capítulo 3, trataremos do início da controvérsia. Mises, Weber e Brutzkus afirmam simultaneamente que o socialismo seria impossível devido à incapacidade de resolver o problema alocativo na ausência de mercados. No capítulo 4, analisaremos a primeira geração de tentativas de refutar a tese de Mises. Estudaremos o debate em alemão que ocorreu na década de vinte e o debate em inglês da década de trinta, que versa sobre as propostas de ‘socialismo de mercado’.
No capítulo seguinte, estudaremos as objeções que os economistas austríacos fizeram a esse tipo de solução, em especial a reação de Hayek às propostas de socialismo de mercado. Como subproduto dessa crítica, veremos como tomou corpo a formação de um programa de pesquisa austríaco próprio, distinto do programa neoclássico tradicional.
No capítulo 6, estudaremos o período entre o final dessa fase do debate, em torno de 1940, até antes de sua retomada, em 1990. Esse período é rico em interpretações alternativas sobre quem teria ‘ganho’ o debate. No final desse capítulo retomaremos a discussão desenvolvida na seção acima, construindo a nossa própria avaliação da controvérsia.
No sétimo capítulo, veremos como os desenvolvimentos teóricos ocorridos na segunda metade do século XX, em especial a economia da informação, deram origem à retomada do debate, com novos modelos de socialismo de mercado que procuram desenhar mecanismos de incentivos para lidar com o problema agente-principal no socialismo.
Finalmente, no oitavo capítulo, estudaremos outras contribuições contemporâneas ao debate que retomam a visão marxista sobre o problema. A discussão dessas contribuições nos levará de volta àquilo que identificamos como o ponto central da questão, a saber, a complexidade do problema alocativo. Concluiremos com uma avaliação geral do debate e especulações sobre que rumo poderá tomar no futuro.
[1] Ver a seção mais adiante intitulada ‘A Base Metodológica do Problema’.
[2] Não discutiremos aqui filosoficamente se existe uma realidade socialista objetiva à qual uma definição descritiva deva se aproximar de forma melhor possível. Isso só teria sentido se se pressupusesse que o socialismo de fato existe ou existirá. Mais isso é justamente o que se nega no debate. A tese de Mises implica que só podem existir definições em termos de propostas socialistas, já que para ele o socialismo em si não seria algo possível de existir.
[3] No debate, a primeira postura será defendida por Dobb (1944), a segunda por Dickinson (1939) e a última por Lerner (1944).
[4] NEP: Nova Política Econômica, período de relaxamento do controle econômico por parte do partido bolshevique. Sucedeu a chamada “Economia de Guerra”, fase mais centralizadora do início do regime.
[5] Ver Mises, L. Uma Crítica ao Intervencionismo e Ikeda (1997), para uma versão moderna dessa teoria.
[6] Hayek (1982:16) percebe a necessidade dessa separação quando afirma que a ciência não deve se limitar a descrever apenas o existente, pois grande parte de seu interesse repousa justamente nos casos em que se possa especular sobre estados de coisas diversos dos atuais.
[7] Da mesma forma que um modelo sobre os efeitos do choque de um asteróide hipotético com a Terra não seria “física normativa”.
[8] Utilizando a distinção positivo/normativo, Brus e Laski (1992:56) questionam de modo similar a utilidade da teoria neoclássica quando esta prescreve regras de ação em vez de apenas descrever os princípios de funcionamento dos mercados.
[9] Ver Blaug (1980:40) e Feijó (2003:37) para a apresentação da tese da simetria entre explicação e previsão no modelo hipotético-dedutivo.
[10] Popper, na Miséria do Historicismo, professa a crença oposta: os fenômenos humanos seriam mais simples porque, ao contrário dos fenômenos físicos, temos a vantagem de conhecer por introspecção a existência da ação proposital que guia os agentes.
[11] Ver por exemplo Hayek (1982, 1988).
[12] Tais curvas, embora não reflitam a complexidade do fenômeno em questão, podem ser utilizadas como um exemplo de padrão a que Hayek (1967) se refere: embora seja impossível preencher uma curva com elementos empíricos concretos, dadas a complexidade e a mutabilidade do fenômeno, a idéia apresenta algumas propriedades do padrão complexo denominado demanda. Watkins sugere o uso do termo ‘teoria algébrica’ para expressar a idéia. Keynes profere opinião semelhante em uma carta a Roy: “é da essência de um modelo não preencher as variáveis com valores reais. Fazer isso iria torná-lo inútil como modelo”. A idéia é captada ainda por Mises quando afirma que “não existem constantes no comportamento humano [como as constantes da Física]”.