3. O Argumento da Impossibilidade do Cálculo Econômico Socialista
Em 1920, pouco depois da revolução russa e em um período de grande influência das idéias socialistas, tanto entre políticos quanto na academia, três autores escreveram críticas à viabilidade do socialismo em termos econômicos. Entre essas críticas, o artigo de Ludwig von Mises é tido como o texto que iniciou o debate sobre a possibilidade do cálculo econômico socialista. Contudo, no mesmo ano Max Weber e Boris Brutzkus publicaram textos com a mesma crítica, mas que não chamaram a mesma atenção que o artigo de Mises.
O texto de Brutzkus, escrito em russo, não chegou à comunidade acadêmica ocidental. Weber, por sua vez, coloca a crítica em um pequeno trecho de sua volumosa obra-prima, que não é um tratado sobre teoria econômica pura. Apenas o trabalho de Mises chamou a atenção dos economistas. Em primeiro lugar, por ser já um influente teórico em 1920. Em segundo lugar, escreveu na Áustria, um dos principais focos de influência política do socialismo. Em terceiro lugar, suas idéias influenciaram tanto Robbins quanto Hayek, que as difundiram na academia inglesa a partir da London School of Economics. Em último lugar, e o mais importante, dentre os três autores Mises foi o principal herdeiro de uma tradição teórica — austríaca — que, por suas peculiaridades, fornecerá uma opinião única sobre a relevância da teoria neoclássica para a discussão do socialismo. De fato, os trabalhos de Pareto e Barone revelavam a neutralidade da tradição walrasiana no que diz respeito à possibilidade do socialismo, neutralidade essa que também caracterizará a vertente marshalliana.
A natureza e as peculiaridades de cada uma das três críticas à possibilidade do cálculo econômico no socialismo poderão ser vistas neste capítulo, que trata do início do debate propriamente dito.
Max Weber e o Cálculo em Espécie
Na segunda década do séc. XX, o sociólogo Max Weber desenvolveu, de forma independente dos outros dois autores, a crítica econômica ao socialismo, no segundo capítulo da sua obra prima Economia e Sociedade. Embora tenha sido influenciado pela Escola Austríaca, e Mises em particular[1], Weber afirma (1997:82) que seu livro já estava sendo impresso quando foi publicado o artigo de Mises.
Ao contrário de Brutzkus, que publicou um livro sobre o assunto e Mises, que publicou inicialmente um artigo e depois um livro, Weber dedica apenas uma pequena parte de um capítulo ao problema. Talvez por isso a argumentação do autor é a menos clara e sistemática das três. Contudo, a essência do argumento está claramente presente. Nesse capítulo, que trata de definições de categorias sociológicas na Economia, Weber afirma que uma economia com ‘socialização plena’ precisa encontrar um sistema apropriado de cálculo se pretende construir uma sociedade planificada de forma racional. Por outro lado, a forma suprema de racionalidade, em termos de gestão econômica, é obtida na presença do cálculo em dinheiro nos mercados livres. Portanto, a possibilidade de planificação ‘científica’ da produção em uma economia natural (sem moeda) é posta em dúvida.
A argumentação do autor é estruturada como uma crítica ao cálculo em espécie proposto por Neurath:
O cálculo natural como fundamento de possibilidade de cálculo dos empreendimentos … encontra seus limites de racionalidade no problema da imputação, … O cálculo natural para os fins de uma administração econômica permanente e racional dos meios de produção teria que encontrar ‘índices de valor’ para cada um dos distintos objetos, os quais teriam que assumir a função dos ‘preços de balanço’ da contabilidade moderna. (Weber 1997:78)
O cálculo em espécie é limitado a poucos casos simples, como a comparação, em uma economia primitiva, da produção de bens agrícolas qualitativamente semelhantes. Nessas sociedades a tradição pauta em grande medida as decisões econômicas. Weber, como os outros dois autores, enfatizará que a necessidade de cálculo monetário deriva da complexidade das decisões alocativas. Dessa forma, quando tivermos diversas classes de bens de produção, cada qual com múltiplos usos, apenas poderemos estimar a importância de cada insumo para a produção de cada bem por meio da comparação dos ‘preços efetivos’ formados no mercado.
Com o cálculo em espécie, seria impossível determinar, por exemplo, a localização mais econômica de uma indústria ou saber se vale mais a pena empregar mão-de-obra e materiais na produção de um bem localmente ou adquiri-lo através da troca.
Weber ataca em seguida o argumento de Neurath segundo o qual a experiência com a economia de guerra teria demostrado a viabilidade da economia natural. Neste caso, afirma Weber, temos apenas um fim, o esforço de guerra. O problema de alocação de recursos se torna aqui puramente técnico: todos os meios são alocados para o único fim inequívoco. O suprimento das necessidades futuras, do mesmo modo, é ignorado nessas ocasiões, podendo haver esgotamento de recursos. O problema econômico surge, em época de paz, quando temos inúmeros fins disputando os recursos escassos. Uma economia sem moeda, fazendo uso do cálculo em espécie, jamais seria capaz de viabilizar uma sociedade populosa e complexa, com seus inúmeros bens qualitativamente diferentes. O cálculo monetário, por sua vez, embora muito superior ao cálculo natural, apresenta várias limitações, como a falta de preços de mercado para certos bens, a atribuição de custos para a produção de múltiplos bens em uma firma ou a existência de cartéis ou monopólios.
Boris Brutzkus e a Economia Soviética
Entre os três autores, a crítica de Brutzkus se destaca pelo casamento do argumento teórico com a ilustração histórica. Como bem observa Hayek no prefácio do livro de Brutzkus, este, como russo e economista que vivenciou a revolução, se qualifica como poucos a examinar as conseqüências de uma economia organizada sem o uso da moeda, como ocorreu na Rússia logo após a tomada do poder pelos bolchevistas.
Brutzkus conta que em 1921, durante a NEP, existiu um pequeno período de relativa tolerância em relação à literatura não comunista e assim ele decidiu publicar seu artigo, intitulado “The Doctrines of Marxism in the Light of the Russian Revolution” na revista The Economist russa. O texto foi publicado com apenas alguns parágrafos censurados. No ano seguinte, com o recrudescimento da censura, o autor foi preso e deportado, juntamente com a diretoria do jornal:
“Ideólogos estudados”, ele [Trotsky] escreveu no Pravda, “não são no presente momento perigosos para a república, mas complicações externas ou internas podem surgir que nos obrigariam a fuzilar esses ideólogos. Melhor então deixá-los ir ao exterior. (Brutzkus, 1920:xvii)
Em seu artigo, que consiste na primeira parte[2] do livro Economic Planning in Soviet Russia, editado em 1935 por Hayek juntamente com a coletânea deste último sobre o socialismo, Brutzkus atribui o fracasso do período posteriormente denominado ‘economia de guerra’ à ausência de cálculo econômico em termos monetários: “Eu afirmo que o sistema de comunismo marxista, como então concebido, era — independentemente das condições produzidas pela guerra — intrinsicamente insustentável e deve inevitavelmente fracassar.” (Brutzkus, 1920: xv)
Para provar sua tese, Brutzkus coloca o problema primeiramente em termos teóricos e o ilustra com o caso da Rússia. Em termos teóricos, tanto em uma economia natural quanto em uma economia capitalista ou socialista, os resultados de uma ação devem ser comparados com os custos. Enquanto na primeira, devido à simplicidade da tarefa, seja possível compará-los diretamente, na segunda a tarefa é realizada pelo sistema de seleção do mercado, que promove ou elimina os empresários conforme ocorram lucros ou prejuízos. Os empresários, movidos pelo incentivo dos lucros, direcionam a produção guiados pelo sistema de preços, o que permite que sejam feitas estimativas de custos e rendimentos em termos monetários.
No socialismo, por outro lado, inexiste esse sistema de incentivos. O cálculo econômico seria então mais importante no socialismo do que no capitalismo, visto que a ausência do mecanismo automático de seleção do mercado no primeiro impõe a realização de estimativas mais precisas do que aquelas feitas pelos empresários no segundo. Isto ocorre porque o fracasso dos administradores socialistas não cairia sobre estes, mas sobre a população. Se um empresário de uma economia de mercado administra uma firma sem consideração pelo cálculo, ou ele acerta por acaso ou ele mesmo perde o capital investido, suportando o prejuízo. Já no socialismo, estimativas incorretas dos benefícios e custos de uma ação resultam em desperdícios em termos econômicos que são sentidos pela população sem que seus administradores sejam afetados. Isso seria exatamente o que estaria ocorrendo na Rússia: a ‘atrofia do cálculo econômico’ nas grandes empresas russas impusera enormes custos em termos de organização do sistema econômico sem que os administradores precisassem se preocupar com o problema. Brutzkus compara a situação a uma ferida que não dói, não sendo por isso menos prejudicial à saúde.
Produtos são feitos, sem dúvida, mas ninguém é capaz de calcular os custos. Ausente a possibilidade de contabilidade de custos em termos monetários, o governo precisa controlar as empresas por outros meios. Explica-se assim o surgimento do gigantesco aparato de supervisão e controle, que progressivamente consome os recursos do setor produtivo. Esse sistema de controle, porém, além de consumir recursos preciosos, estaria fadado ao fracasso, pois seria incapaz de realizar a tarefa levada a cabo pelo sistema de preços. Um sistema de controle baseado no cálculo em espécie, como aquele sugerido por Tschayanoff, sofre pelo caráter hipotético e arbitrário das unidades utilizadas nas fórmulas deste autor. Como converter, pergunta o autor, os diversos tipos de insumo a uma unidade comum a ser empregada nas fórmulas que relacionam insumos com produtos? O socialismo deve então buscar outra forma, mais eficaz, de avaliar os benefícios e custos dos empreendimentos de forma econômica. Ausente essa forma, o cálculo econômico seria impossível: “Sem valoração, toda conduta econômica racional, sob qualquer tipo de sistema econômico, é impossível” (Brutzkus, 1920: 15).
A alternativa mais óbvia para substituir o rublo seria basear as avaliações expressas em moedas por avaliações advindas do cálculo de horas de trabalho empregadas na produção dos bens, já que esta é a base do valor para o socialismo marxista. Para Brutzkus, o decreto soviético que estabeleceu a obrigatoriedade do cálculo em horas de trabalho nunca foi posto em prática, dada a impossibilidade de se saber a priori a quantidade de trabalho socialmente necessária para a produção dos bens. Seria concebível realizar médias para firmas já existentes se estas operassem em condições idênticas, como por exemplo mesma quantidade e tipo de capital. Em uma situação complexa, no entanto, não há como reduzir as diferentes quantidades de trabalho a um denominador comum.
Brutzkus ilustra então a inaplicabilidade do cálculo em horas de trabalho a partir de exemplos de alterações nos dados da economia, como nos casos nos quais ocorrem mudanças nos processos produtivos e nas preferências. Depois de mostrar como somente a noção de valor baseado em utilidade da teoria neoclássica pode explicar o valor dos bens nesses casos, Brutzkus conclui que apenas em uma economia estacionária existe uma relação completa entre custos e preços. Em uma economia real, no entanto, não há como utilizar o valor em termos de horas de trabalho para realizar o cálculo econômico.
Um socialismo descentralizado seria possível se houvesse cálculo em espécie ou em horas de trabalho. Descartadas essas hipóteses, Brutzkus investiga então a possibilidade de organizar o socialismo segundo um plano central: “Mas se é impossível fazer funcionar o socialismo de baixo para cima por meio do cálculo econômico adequado, procura-se dirigi-lo de cima para baixo por meio de um plano econômico unitário baseado em dados estatísticos.” (Brutzkus, 1920: 31)
O processo de formação de preços no capitalismo, nota Brutzkus, é um processo espontâneo. “Aqueles que fazem parte não baseiam suas ações em nenhuma teoria, e raramente utilizam cálculos estatísticos.” (Brutzkus.1920:34) Embora o sistema de cálculo econômico em termos de moeda apresente defeitos, como crises periódicas, tem-se um sistema de coordenação que funciona. O planejamento central, por outro lado, procura superar a anarquia da produção através do controle consciente expresso em planos. Como seria então feito esse controle visto que “o Conselho Econômico Supremo não mais possui o barômetro sensível fornecido pelos preços de mercado”? (Brutzkus, 1920:37). Sem um mecanismo de coordenação descentralizado, o órgão de planejamento requer uma quantidade gigantesca de informações, que seriam expressas por estatísticas:
… como o estado socialista não conta com o mecanismo de preços de mercados, ele deve possuir um aparato estatístico enorme e perfeito, um aparato que considera cada aspecto da vida social, e que funciona elástica e ininterruptamente, de modo que responda a cada mudança na vida social. (Brutzkus, 1920:38).
Essas informações, contudo, não podem ser obtidas. As necessidades da população, por exemplo, não podem ser estabelecidas a priori. Quando os primeiros autores socialistas escreveram, a pobreza era extrema e talvez fosse possível julgar centralmente as necessidades da população[3].
Com o crescimento econômico, mesmo os mais pobres escolhem e manifestam preferências por bens diversos. Sem o auxílio do sistema de preços, porém, não se podem estabelecer relações de demanda. As condições de produção, da mesma maneira, não se sujeitam a cálculos pré-concebidos. Sem o sistema de preços, conclui-se, não se pode dirigir a produção para atender as necessidades dos cidadãos.
Esse fato tem como conseqüência que as decisões econômicas dependem em última análise das avaliações subjetivas dos oficiais, o que resulta em decisões baseadas em critérios políticos. A economia cederia lugar à política: os fundos são desperdiçados em projetos sem justificação econômica porque atendem aos objetivos dos governantes, como teria mostrado o caso russo. Mesmo quando este não for o caso, o sistema de coordenação dos diferentes setores industriais por meio das juntas governamentais (Glavki) não seria capaz se substituir o sistema de coordenação via preços:
E quem pode duvidar de que os pesqueiros de Astrakan são a fonte de oferta de peixe mais importante da Rússia? Contudo, os pescadores não conseguem obter redes. Logo, milhões de libras de peixes são perdidas simplesmente porque os artesãos de Nizhni-Novgorod, que têm sempre feito as redes, não puderam obter os materiais necessários para sua produção. (Brutzkus, 1920:47)
Para Brutzkus, os setores que funcionam adequadamente manteriam a vitalidade devido ao contato com alguma forma de mercado e obtenção de recursos por conta própria e não através dos favores do estado por meio dos Glavki.
Além do argumento do cálculo, Brutzkus procura mostrar como a ausência de liberdade econômica em uma economia centralizada afetaria o funcionamento da mesma. Em primeiro lugar, haveria a falta de liberdade e de incentivos que levam os empresários a inovar. Da mesma forma que Schumpeter, o autor distingue inovação de invenção, relacionando o progresso econômico com a primeira noção. O ideal socialista de igualdade tenderia a inibir tal atividade. Teríamos no socialismo a predominância do conservadorismo e indolência (pág. 69). Em segundo lugar, o socialismo traria a falta de liberdade de consumo. Assumindo um sistema de preços fixos, o autor considera que apenas a flutuação ininterrupta de preços seria capaz de trazer o equilíbrio entre as quantidades produzidas e desejadas. Além disso, tocando no que seria um dos temas principais do Caminho da Servidão de Hayek, Brutzkus relaciona o controle dos meios de produção com o controle dos fins. Na imprensa, por exemplo, o controle dos meios impressos pelo estado implica na falta de liberdade de publicações que contrariem a ideologia oficial. Em terceiro lugar, a falta de mercados de trabalho implicaria na organização coercitiva do trabalho entre as diversas atividades.
Finalmente, na conclusão de seu artigo, Brutzkus argumenta que o fracasso em termos econômicos dos primeiros anos do regime bolchevista na Rússia tem como explicação principal não a guerra, mas a ausência de cálculo econômico. A Rússia, em seu vasto território, produz em abundância meios de subsistência e matérias primas, podendo facilmente produzir internamente as poucas que são importadas. Como seria então possível que o bloqueio da guerra causasse tantos problemas econômicos para um país quase economicamente autárquico, em comparação com os outros países envolvidos na guerra? Para Brutzkus, a Rússia seria o país no qual a implementação do socialismo de forma isolada teria as maiores chances de sucesso. A renúncia do socialismo no período de NEP seria explicada pela ausência de cálculo econômico e não pela guerra:
Pelo contrário, a experiência russa revela da maneira mais clara nossa conclusão básica — a saber, que o princípio do socialismo não é criativo, que ele leva a vida econômica da sociedade não ao desenvolvimento, mas à ruína. (Brutzkus, 1920:94)
Ludwig von Mises e o Início da Controvérsia
Do trio de autores que em 1920 contestaram a possibilidade de se alocar recursos racionalmente no socialismo, Mises foi sem dúvida o mais importante. Afinal, o artigo deste autor — “Economic Calculation in the Socialist Commonwealth” — foi responsável pelo início do debate, provocando o surgimento de várias tentativas, tanto em alemão quanto em inglês, de negar a tese da impossibilidade do cálculo econômico.
Como mencionamos no primeiro capítulo, a maioria dessas tentativas, em especial na Inglaterra, foi feita não por autores marxistas, mas sim por economistas formados no referencial teórico neoclássico. Até então, o argumento do cálculo parecia contrapor a teoria clássica à neoclássica. Tanto Pierson quanto Brutzkus criticaram a teoria do valor trabalho e expuseram o argumento do cálculo segundo a nova teoria do valor. Os textos desses autores, porém, não mencionavam as diferenças entre as correntes do neoclassicismo. Brutzkus (1935:25), por exemplo, menciona em seu trabalho a “moderna economia de Walras, Jevons e Menger”. Ao tratar da economia do socialismo, apenas Barone considera necessário distinguir a sua contribuição baseada na teoria de EG das contribuições menos rigorosas dos ‘economistas literários’. Ainda assim, para Barone, a diferença entre elas seria apenas de estilo e rigor.
Com o debate em torno da tese de Mises, entretanto, as diferenças afloram. Dessa forma, o artigo de Mises nos é importante não apenas pelo fato de iniciar o debate, mas também porque permitiu que se pusessem em evidência as diferenças teóricas entre as diversas abordagens que compunham a escola neoclássica, uma vez que um mesmo problema — o problema do socialismo — levaria a conclusões completamente diferentes conforme tratado por cada uma dessas tradições. Com efeito, o estudo do desenrolar do debate mostrará como, sob o efeito do debate do cálculo econômico, os elementos característicos da abordagem austríaca ficaram mais nítidos e se desenvolveram em direções diferentes daquelas tomadas pela tradição neoclássica que viria a dominar o cenário intelectual. Por isso, ao analisar a contribuição de Mises ao debate, procuraremos salientar desde já os elementos tipicamente austríacos de seu argumento.
O artigo de Mises, publicado em alemão, em 1920, no Archiv für Sozialwissenchaften, aparece de forma modificada e ampliada dois anos depois como parte integrante do livro Socialism: an Economic and Socialogical Analysis, traduzido para o inglês em 1936. Embora o livro seja uma análise ampla das questões relacionadas com o socialismo, nos limitaremos ao artigo e àquelas partes do livro dedicadas à questão do cálculo que complementam o artigo.
Como nota Boettke (2001), o artigo de Mises é uma crítica dirigida a uma audiência marxista e não neoclássica[4]. De fato, o autor inicia seu artigo observando que embora as idéias socialistas estejam se tornando dominantes, seus proponentes se recusam a investigar a natureza dos problemas econômicos que surgiriam no socialismo[5], sob a influência do método dialético. Mesmo se o socialismo fosse considerado inevitável, ainda assim essa investigação deveria ser feita pelos socialistas, pois, como nota Steele (2000) a tese de Mises, se correta, tornaria a própria análise de Marx ‘utópica’.
Ao analisar os problemas econômicos do socialismo, Mises disputa a tese de que a produção fetichística baseada em trocas monetárias resulta em uma economia mais irracional do que sob o socialismo. Mises, herdeiro dos ensinamentos de Menger sobre valor e respeitado como especialista em moeda desde a publicação do seu primeiro livro nessa área[6], procura inverter a conclusão marxista, afirmando que a supressão da moeda, do sistema de preços e das trocas nos mercados traz consigo a incapacidade de determinar o valor das infinitas alternativas de ação possíveis em uma economia complexa, representando assim justamente a abolição da economia racional, não o seu advento:
Portanto na comunidade socialista toda mudança econômica se torna uma empreitada cujo sucesso não pode ser avaliado antecipadamente nem determinado retrospectivamente. Ocorre apenas tateamento no escuro. O socialismo é a abolição da economia racional. (Mises, 1935:110)
Para chegar a esta conclusão, Mises terá que mostrar a) qual é a natureza do problema econômico a ser resolvido em qualquer sociedade, b) como esse problema é resolvido em economias de mercado e c) como as poucas características descritivas do socialismo imaginadas por seus defensores impossibilitam que o problema seja ali resolvido[7].
Quanto ao primeiro ponto, Mises (1922:95-98) parte da identificação do problema econômico básico, o estudo da ação racional. A exposição do problema é feita nos moldes do subjetivismo mengeriano. A ação econômica ocorre apenas quando há a percepção de um estado de coisas insatisfatório que possa ser alterado pela ação. Quando os recursos materiais e o tempo não são suficientes para satisfazer todas as necessidades, os homens agem de forma a economizar recursos. Na seção do artigo intitulada ‘A Natureza do Cálculo Econômico’, Mises explica a lógica das escolhas a serem feitas pelos agentes quando há escassez. Ao escolher entre duas alternativas, faz-se um julgamento de valor sobre a importância das necessidades que seriam satisfeitas.
Mises enfatiza em várias ocasiões que as escolhas na esfera da produção não são meramente técnicas, como em um grande problema de engenharia, mas sim escolhas econômicas, que comparam a importância de um bem com a importância do que se abdicou com a escolha, o seu custo de oportunidade. Os bens são valorizados conforme possam satisfazer as necessidades de forma direta (bens de primeira ordem ou bens de consumo) ou de forma indireta (bens de ordem superior ou bens de produção), segundo a nomenclatura de Menger.
A valoração desses últimos, por sua vez, leva em conta a complexidade dos métodos de produção, presente na teoria austríaca do capital. Em uma economia simples, a valoração dos relativamente poucos bens de ordem superior não é problemática. Um fazendeiro em isolamento, ao escolher entre utilizar a terra para pasto ou para campo de caça, avalia diretamente a importância de cada bem de produção na obtenção dos bens finais. Já em uma economia avançada, com a aumento do uso de métodos indiretos (Böhm-Bawerk) de produção, não se consegue julgar diretamente o valor das alternativas empregadas, devido à duração dos processos produtivos e a diversidade de vias alternativas de ação. Por exemplo, a escolha em certo tempo e local entre obter mais energia por meio da construção de uma usina hidroelétrica ou uma termoelétrica deve se basear em um processo de avaliação mais sofisticado.
Esse processo requer o uso de uma unidade pela qual se pode expressar o valor das diferentes alternativas, a fim de compará-las. O valor de uso subjetivo não pode ser utilizado como unidade, visto que o processo de valoração apenas ordena as alternativas. Resta então o valor objetivo de troca — o preço — como medida viável de comparação. O sistema de cálculo econômico baseado nos preços, além de possibilitar a redução do valor dos bens transacionáveis a uma unidade comum, o dinheiro, apresenta como vantagem a possibilidade de basear o cálculo na avaliação de todos os participantes do comércio. Dessa forma, o cálculo econômico monetário permite o controle sobre os usos mais apropriados para os bens, visto que os agentes podem avaliar a importância de sua atividade através da comparação do benefício gerado com o custo dos recursos empregados, expressos em termos de receitas e custos monetários.
Temos assim a explicação de como o problema do cálculo é resolvido em economias de mercado. Para Mises, o cálculo econômico em termos monetários possibilita a comparação do valor de alternativas de ação em uma economia desenvolvida, comparação essa que não seria possível sem o auxílio do sistema de preços. O autor argumentará que o cálculo econômico só é possível se baseado na formação de preços de mercado e não que a alocação de recursos é ótima quando se usa o sistema de preços, como muitas vezes é interpretado o seu argumento. De fato, logo depois de explicar como o cálculo baseado no sistema de preços permite a avaliação do valor das diversas vias de ação, Mises (1935:99-100) aponta os limites desse sistema de cálculo. O próprio valor da moeda se altera ao longo do tempo, mesmo em um sistema monetário relativamente estável. Além disso, ficam fora da avaliação aqueles bens que possuem utilidade mas não são trocados em mercados, pois nesses casos não se formam preços. Mises vai além e afirma que o cálculo monetário só tem sentido na esfera das trocas econômicas. Extensões de seu uso, como a agregação da produção e riqueza (como é feito no cálculo do PIB) ou o uso de preços sombra indiretos seriam ilegítimas.
As limitações, contudo, não inviabilizam o cálculo econômico. A moeda pode ser relativamente estável no curto prazo e grande parte dos bens não comercializáveis são bens de primeira ordem (consumo final), sujeitos à avaliação direta. Respeitadas as limitações, o cálculo monetário permite estender a avaliação àqueles bens de ordem superior (bens de produção) em uma economia desenvolvida.
Surge aqui um elemento chave da visão de mundo austríaca que mais tarde ocupará o centro das atenções de Hayek — a complexidade do problema econômico da escolha quando levamos em conta as infinitas possibilidades de ação e suas inter-relações possíveis. Os bens de produção têm inúmeros usos e são empregados de forma complementar e em seqüências temporais específicas para cada um desses usos. Assim, para Mises (pág. 101), o cálculo monetário “nos fornece um guia através da opressiva plenitude das potencialidades econômicas”. A complexidade das alternativas sujeitas à escolha só pode ser contornada por um mecanismo que prescinde da onisciência dos agentes, como aquele fornecido pela moeda ao possibilitar o cálculo econômico:
Além disso, a mente de um único homem — nunca tão sagaz, é muito limitada para compreender a importância de qualquer um dos incontáveis bens de ordem superior. Nenhum homem pode jamais dominar todas as possibilidades de produção, inumeráveis como elas são, de modo a estar em uma posição de fazer julgamentos de valor diretos e evidentes sem o auxílio de algum sistema de computação. A distribuição entre um número de indivíduos do controle administrativo sobre bens econômicos em uma comunidade de homens que tomam parte no trabalho de produzi-los, e que são interessados economicamente nesses bens, implica em um tipo de divisão intelectual do trabalho, que não seria possível sem algum sistema de cálculo de produção econômica. (Mises, 1935:102)
Encontramos aqui o que será a base do argumento que Hayek usará contra a possibilidade do cálculo econômico no socialismo em uma fase posterior do debate: a limitação do conhecimento humano diante da complexidade do problema econômico impede que este seja resolvido de forma direta, sem o auxílio do sistema de preços. O planejamento central seria inviável por não contar com o mecanismo automático de correção de erros dado pela contabilidade de lucros e prejuízos, mecanismo esse que dispensa a necessidade de agentes ou planejadores oniscientes.
Exposta a natureza do problema econômico, e como este é resolvido nos mercados com o auxílio do cálculo econômico em termos monetários, veremos agora como Mises trata da possibilidade de resolução do problema no socialismo. Para isso, devemos primeiramente mencionar o que Mises entende por socialismo, já que várias tentativas de solução do problema do cálculo feitas ao longo do debate não seriam consideradas socialistas em absoluto pelo autor. Como vimos na introdução deste trabalho, Mises (1935:89) define socialismo como uma sociedade na qual ‘todos os meios de produção são propriedade da comunidade'[8].
A definição se centra nos bens de capital pois esses têm papel fundamental tanto na explicação marxista da exploração quanto na explicação austríaca do valor desses bens na teoria do capital. Assim, a ênfase do texto recairá na possibilidade de formação de preços de bens de capital. Por outro lado, o aspecto mais importante a ser notado na definição é a alusão à propriedade, entendida pelo autor como o poder de dispor do uso de um bem. A noção de propriedade será fundamental na seqüência do debate, pois enquanto para Mises o funcionamento dos mercados depende de forma crucial da existência da propriedade privada, para seus críticos neoclássicos da década de trinta, a possibilidade de funcionamento de um mercado será dissociada e não dependerá de forma significativa da definição de direitos de propriedade. Nesse aspecto, curiosamente, a postura de Mises se afasta do neoclassicismo e se aproxima de Marx, para quem as instituições que acompanham os mercados são inerentes ao sistema de produção de mercadorias[9].
A definição de socialismo de Mises deixa de lado os objetivos finais almejados pelos seus proponentes, como igualdade de renda, em favor da identificação do meio pelo qual se perseguem esses objetivos. Identifica-se aqui a essência do socialismo na abolição da propriedade privada. Essa idéia pode ser notada na tipologia que Mises (1922, caps. 15 e 16) constrói de formas de socialismo e pseudo-socialismo. No primeiro grupo, o autor reúne os movimentos políticos prevalecentes na época que propõem a supressão da propriedade privada, entre os quais o socialismo militarista, cristão, estatista, defensor do planejamento central e socialismo de guildas[10]. No segundo grupo estão movimentos que abraçam idéias socialistas mas não pretendem abolir a propriedade privada, entre os quais o solidarismo, o socialismo agrário, a divisão dos lucros entre trabalhadores, socialismo parcial ou sindicalismo. Entre estas formas, será importante enfatizarmos a última, que comporta aqueles grupos que defendem a distribuição da propriedade para os trabalhadores das indústrias nas quais atuam: “Cada medida que toma dos empresários, capitalistas e proprietários de terra a propriedade de todos os meios de produção sem transferi-la para todos os cidadãos deve ser considerado sindicalismo. “(Mises, 1922:240)
A noção de sindicalismo diferenciada do socialismo será importante porque várias das tentativas de responder ao argumento de Mises proporão formas de organização social vistas por este como sindicalismo e não socialismo.
Definido o socialismo, vejamos então como este sistema poderia enfrentar o problema do cálculo, na opinião de Mises. Se os bens de capital são propriedades da ‘comunidade’, e propriedade significa poder de decisão sobre o seu uso, a propriedade só pode ser exercida no socialismo por meio de um órgão representativo da comunidade, seja esse eleito democraticamente ou funcionando como uma ditadura do proletariado. Tal órgão terá que decidir tanto a maneira como os bens de consumo são distribuídos quanto a forma pela qual se realizam as escolhas na produção.
Embora o primeiro problema não seja essencial para a tese do autor, algum espaço é dedicado a ele. Mises imagina um sistema de cupons que dão direito a cada pessoa a certa quantidade de bens. Como as preferências variam por indivíduo, surgirá oportunidade de ganhos de troca, já que cada um de fato tem o direito de uso — propriedade — do vale. No exemplo ‘politicamente incorreto’ do autor, as pessoas sem cultura estariam dispostas a trocar seus acessos a concertos por formas mais facilmente compreensíveis de entretenimento, como ingressos de cinema.
Com a propriedade restrita aos bens de consumo, a comunidade socialista poderia permitir o uso da moeda, com o propósito de estender as oportunidades de ganho por meio da troca indireta. Embora a moeda funcione como meio de troca, a sua importância seria aqui reduzida, visto que as trocas se restringem aos bens de consumo final. Se os cupons de fumo forem distribuídos de forma diferente por pessoa em termos de ‘vales-cigarros’ ou ‘vales-charutos’, o órgão diretor não poderá ignorar o preço relativo dos dois bens, senão os cupons não terão o mesmo valor para cada um. Surge então a dificuldade de ajustar a produção segundo as preferências reveladas em tais preços. Até este ponto Mises pressupõe uma quantidade fixa de bens a ser distribuída. Se houver liberdade de escolha, surgirão excessos de oferta e demanda pelos bens.
Esse problema não seria cogitado pelos adeptos da teoria do valor trabalho, para os quais um esquema de cupons análogo ao proposto por Marx na análise do Programa de Gotha seria viável. Descontando-se um imposto para lidar com os gastos públicos, emitem-se cupons equivalentes às horas de trabalho despendidas pelos trabalhadores, que por sua vez os trocariam pelos bens que desejassem e que custassem a mesma quantia de trabalho. Tal esquema, contudo, não seria viável na opinião de Mises, pois a) o trabalho não é homogêneo e b) a teoria do valor trabalho não dá conta de forma satisfatória do valor dos recursos naturais escassos. Quanto ao primeiro ponto, a redução dos diversos tipos de trabalho a um denominador comum ou o cálculo da quantidade de trabalho ‘socialmente necessária’ para a produção de um bem apelam para os preços e práticas adotadas nos mercados de fatores, valores esses não disponíveis no socialismo, já que tais mercados são abolidos. Quanto ao segundo ponto, o valor dos recursos escassos só é levado em conta de forma indireta, na medida em que um recurso que se torna mais escasso requer geralmente mais trabalho para sua obtenção.
Chegamos assim ao núcleo do problema do cálculo: a avaliação dos bens de capital em um sistema produtivo avançado. Mises critica a opinião de Engels[11] segundo a qual a quantidade de trabalho socialmente necessária pode ser observada diretamente, sendo revelada pela experiência diária e observação da quantidade de insumos utilizada na produção de cada bem. Em contraste, para Mises, levando-se em conta a complexidade inerente ao processo temporal de produção descrito pela teoria austríaca do capital, as decisões de produção que devem ser tomadas em uma comunidade socialista não são simples:
Existirão centenas de milhares de fábricas em operação. Poucas dessas estarão produzindo bens prontos para o uso; na maioria dos casos serão fabricados bens inacabados e bens de produção. Todas essas firmas são inter-relacionadas. Todos os bens passarão por uma série de estágios antes de estarem prontos para o uso. Na incessante labuta desse processo, contudo, a administração se encontrará sem nenhum meio de testar seus projetos. (Mises, 1935:106)
Cada via alternativa de ação deve ser comparada com seu custo. Em uma economia de mercado, a decisão de construir ou não uma estrada e que rota esta deve seguir (pág. 106) é feita em termos monetários, comparando-se os benefícios da construção da estrada – a redução no custo do transporte — com os seus custos – o valor dos recursos empregados, passíveis de uso alternativo. O cálculo desses benefícios e custos não pode ser feito em espécie, pois é impossível somar ganhos e custos em termos de quantidades físicas de recursos diferentes.
Barradas as alternativas de cálculo em espécie ou em horas de trabalho, resta apenas o cálculo monetário. Contudo esta possibilidade, para Mises, não está disponível no socialismo, pois os preços são formados nas transações de mercado e não havendo mercados para bens de capital, preços não se formam e o cálculo econômico não seria então possível (pág. 111).
Para Mises, o funcionamento dos mercados depende de forma crucial da existência de propriedade privada. Não poderia então haver mercados para bens de capital no socialismo, já que aí não existe propriedade privada para esse tipo de bens. Trocas entre departamentos estatais no socialismo não seriam equivalentes a trocas em um mercado autêntico. Para Mises, assim como para Marx, trocas em mercados e socialização da produção são incompatíveis[12]. Mercados implicam em ‘anarquia da produção’ e não controle consciente:
Relações de troca entre bens de produção podem ser estabelecidas apenas sob propriedade privada dos meios de produção. Quando o “sindicato do carvão” provê o “sindicato do aço” com carvão, nenhum preço pode ser formado, exceto quando ambos sindicatos são só proprietários dos meios de produção empregados em seus negócios. Isso não seria socialização, mas sim capitalismo dos trabalhadores e sindicalismo. (Mises 1935:112)
A formação de preços seria fruto da interação entre empresários que competem pela obtenção de lucros. A possibilidade de decidir o emprego dos bens de produção segundo o julgamento de cada um sobre a alternativa mais lucrativa a seguir e o incentivo gerado pela possibilidade desse ganho geram os comportamentos que resultam na competição de mercado.
Deve-se notar que Mises utiliza o termo ‘formação de preços’. Com isso o autor quer se referir ao processo competitivo, no qual os preços refletem a avaliação subjetiva de todos os indivíduos participantes do mercado, avaliações essas motivadas pelo desejo de ganho. Assim, para Mises, a formação de preços genuínos nos mercados dependeria do incentivo ao lucro e das possibilidades de ação relacionados com a propriedade privada.
Depois de expor o problema do cálculo, Mises (1935, parte 4) aprofunda a questão dos incentivos no socialismo. Para o autor, esse problema se relaciona diretamente com o problema do cálculo, na medida em que a livre iniciativa importa ou não para o funcionamento de um mercado competitivo. Contudo, para Mises, essa questão seria subsidiária, pois mesmo que se obtenha todo o incentivo necessário no socialismo, ainda assim a ausência do cálculo torna impossível medir desempenhos. Por outro lado, o pensamento socialista, ao tratar da socialização, ignora os problemas de incentivo, pois parte da hipótese de que não há possibilidade de haver conflito entre os interesses individuais e os coletivos em uma sociedade sem classes. Na verdade, porém, quando os ganhos individuais representam uma fração do produto total, cada um estará mais interessado no esforço da maioria do que no seu próprio[13].
De qualquer forma, ao se enfrentar o problema, descobre-se que, com a socialização dos meios de produção, desaparece o interesse material dos administradores pelos lucros das firmas, o que, segundo o autor, explicaria o fracasso das experiências de nacionalização de indústrias. Esse fracasso não pode ser remediado pela adoção de práticas administrativas mais comerciais ou mesmo pela contratação de empresários para gerir empresas públicas, pois o tipo de administração eficiente não depende de características pessoais, mas sim da pressão competitiva gerada pela busca de lucros, eliminada no socialismo:
Não é um conhecimento de controle de registros, de organização da indústria, ou do estilo de correspondência comercial ou mesmo um diploma de um colégio comercial, que faz o mercador, mas sua posição característica no processo de produção, que permite a identificação dos seus interesses e os da firma. (Mises 1935:121)
A alusão ao controle (bookkeeping) é uma referência, explicitamente feita algumas páginas mais adiante, à idéia de Lenin de que as atividades comerciais se reduzem a poucas técnicas administrativas. Para Mises, ao contrário, a propriedade privada geraria o interesse pelo lucro e daria origem ao comportamento que mais tarde, no desenvolvimento das teorias do autor, será identificado com a atividade empresarial.
Até aqui, podemos verificar pela leitura do artigo que a crítica de Mises é dirigida a uma platéia marxista. Quando abordamos a relação entre funcionamento dos mercados e a existência de propriedade privada, contudo, começam a surgir diferenças entre a abordagem austríaca e a neoclássica, diferenças essas que se manifestarão na interpretação e uso que se faz da teoria de equilíbrio de mercado. Essas diferenças, implícitas no artigo, se tornam mais claras em Socialism. Veremos agora alguns trechos desse livro que mostram tais diferenças.
A própria organização dos capítulos do livro já mostra a nova preocupação com o uso da noção de equilíbrio. Os capítulos 8 e 10 são intitulados respectivamente ‘A Comunidade Socialista sob Condições Estacionárias’ e ‘Socialismo sob Condições Dinâmicas’. No primeiro deles, Mises expõe a noção de equilíbrio e opina sobre a sua utilidade. O equilíbrio é imaginado como um estado econômico estacionário, em que em cada período se repetem as ações tomadas no anterior, visto que não ocorrem mudanças. Essas ações refletem as opções mais econômicas para o emprego dos fatores de produção.
Para Mises (1981:142), assumir uma economia estacionária descrita acima seria apenas um expediente teórico e não uma tentativa de descrever a realidade, pois nesta sempre ocorrem mudanças. Para entender a mudança econômica, imagina-se antes, como um passo intermediário, um estado de coisas no qual a mudança não ocorre.
No capítulo 10, Mises afirma que uma economia socialista também estará sujeita a mudanças. A partir disso procurará mostrar que a noção de equilíbrio estacionário não seria suficiente para lidar com o cálculo econômico diante dessas mudanças. No capítulo, Mises lista várias fontes de mudanças que terão que ser enfrentadas no socialismo: na a) natureza, b) população, c) quantidade e qualidade de bens de capital, d) técnicas de produção, e) organização do trabalho e f) demanda.
Visto que sempre ocorrem mudanças, qualquer ação envolve inovação. Mesmo a repetição, por ser feita em um ambiente cambiante, consiste em uma inovação. De qualquer modo, o socialismo pretende trazer progresso, que implica mudanças. Em qualquer economia em que ocorram mudanças, o futuro é incerto[14]. Conseqüentemente, para Mises, toda ação é especulativa e não faz sentido por isso distinguir entre ação produtiva e especulativa, como seria comum entre autores socialistas. O problema do cálculo, por sua vez, diria respeito a como se lida com o futuro incerto. Em sociedades baseadas em propriedade privada, seria o mecanismo de lucros e perdas que informa o sucesso ou fracasso da ação empresarial e guia a alocação de recursos. No socialismo, sem a ferramenta do cálculo, o sucesso dependeria da onisciência do planejador.
As diferenças salientadas aqui entre as visões de Mises e a da maioria da profissão sobre o funcionamento dos mercados ficarão mais nítidas com a publicação na década de trinta das propostas neoclássicas de conciliar mercados com socialismo que serão vistas no próximo capítulo. Em 1936 Mises adiciona ao Socialism uma seção criticando diretamente as propostas dos socialistas neoclássicos. Adiamos então até o quinto capítulo a discussão da reação de Mises a esses desenvolvimentos.
O argumento da impossibilidade do cálculo econômico exposto neste capítulo, desenvolvido por Weber, Brutzkus e Mises, estabeleceu uma nova fase na investigação teórica do socialismo. A transição do programa de pesquisa clássico para o neoclássico trouxe consigo uma nova compreensão sobre o funcionamento dos mercados e o papel destes na alocação de recursos. De fato, um dos pontos em comum na crítica dos três autores estudados neste capítulo é a ênfase na complexidade do problema econômico e na negação da tese de que este possa ser reduzido a um problema de escolha meramente técnico.
Segundo os autores, o grau de complexidade das atividades econômicas que resultou do desenvolvimento dos mercados deveria ser ampliado ou pelo menos preservado se o socialismo pretende superar o nível de bem estar das sociedades existentes. Os três autores estudados neste capítulo convidam então os defensores do socialismo a mostrar como isso seria possível na ausência de mercados, isto é, perguntam como seria possível obter pelo menos o mesmo grau de coordenação possibilitado pelos mercados, dado que o conhecimento de qualquer pessoa ou comitê está aquém daquele requerido pelo planejamento central. Sem planejamento central, como obter então no socialismo a ‘divisão intelectual do trabalho’ descrita por Mises?
Os autores socialistas que procuraram resolver essas questões não foram marxistas, mas economistas neoclássicos. Tal fato era de se esperar, dado que estes últimos compartilham com Mises os pressupostos teóricos básicos da teoria econômica moderna, aceitando assim naturalmente a existência do problema do cálculo.
O que se observou, contudo, não foi um debate interno a um programa de pesquisa único. De fato, os defensores neoclássicos do socialismo, conhecidos como ‘socialistas de mercado’, debateram entre si formas alternativas de resolver o problema do cálculo sob a luz das tradições walrasiana e marshalliana, ignorando porém os elementos distintamente austríacos do argumento de Mises. O debate entre os socialistas de mercado, como veremos em seguida, girará assim em torno do estabelecimento de um equilíbrio estático no socialismo e ignorará a ênfase misesiana à necessidade de adaptação à mudança. O contraste entre o desafio de Mises e a resposta dos socialistas de mercado marcará então o processo de diferenciação dos programas de pesquisa neoclássico e austríaco.
[1] Economia e Sociedade de Weber possui referências a Theory of Money and Credit de Mises, obra esta que contém os elementos da crítica misesiana ao planejamento sem moeda.
[2] Na segunda parte do livro, escrito no exílio na Alemanha, o autor analisa sob o ponto de vista econômico os períodos de NEP e o primeiro plano qüinqüenal.
[3] A crença na relativa simplicidade do problema alocativo pode ser ilustrada pela seguinte afirmação de Engels: “Em uma sociedade comunista será simples informar-se sobre o consumo e a produção. Como sabemos quanto, em média, uma pessoa necessita, será fácil calcular quanto é necessário para suprir um dado número de indivíduos, e como a produção não mais se encontra nas mãos de produtores privados mas nas mãos da cominidade e de seus órgãos administrativos, é uma coisa trivial regular a produção de acordo com as necessidades.” (Engels, citado em Steele, 1991:25)
[4] Deve-se notar que o autor freqüentemente emprega termos tipicos do marxismo, como ‘anarquia da produção’ ou ‘meios de produção’.
[5] O autor escreve em tom provocativo: “A Economia, como tal, raramente aparece nos glamurosos quadros pintados pelos utopistas. Eles invariavelmente explicam como, no mundo imaginário de suas fantasias, pombas assadas voam de algum modo para as bocas dos camaradas, mas eles omitem a explicação sobre como esse milagre aconteceria. (Mises, 1935:88) e mais adiante: eles [os socialistas] estão sempre desenhando programas sobre o caminho para o socialismo e nunca sobre o socialismo propriamente dito. (122)
[6] Horwitz (1996,1998) busca as origens da crítica ao socialismo no The Theory of Money and Credit (1912), o primeiro livro de Mises.
[7] A nossa exposição do artigo segue a ordem indicada acima e não a seqüência original do artigo.
[8] Do mesmo modo, em Socialism (pág. 211), podemos ler: ‘A essência do socialismo é a seguinte: todos os meios de produção estão no controle exclusivo da comunidade organizada. Isso e apenas isso é socialismo..’
[9] Ver Lavoie (1985, cap. 2).
[10] No socialismo de guildas cada setor industrial é administrado pelos trabalhadores daquele setor. As decisões intersetoriais são debatidas e decididas através de órgãos políticos mais amplos.
[11] F. Engels, Dührings Umwälzung des Wissenschaft, citado em Mises (1935:112).
[12] Em Socialism (pág. 119), Mises escreve: ‘o mercado é portanto o ponto focal da ordem capitalismo da sociedade, é a essência do capitalismo. Apenas sob o capitalismo, portanto, é possível; não pode ser artificialmente “imitado sob o socialismo”.
[13] Para uma abordagem moderna desta questão, ver Olson, M. The Logic of Collective Action.
[14] Contraste com a visão de alguns autores socialistas, conforme veremos no próximo capítulo, que argumentam que a maior parte da incerteza advém da competição, na medida em que os empresários ocultam seus planos aos demais. Suprimida a competição (no sentido usual, não técnico, do termo), desapareceria a principal fonte de incerteza.