Quem estudou em uma faculdade de arquitetura, onde quer que seja, já viu a imagem ao lado: um ângulo sinistro do centro de Houston, a maior cidade do Texas, nos EUA. Percebe-se automaticamente a quantidade absurda de estacionamentos em uma das regiões mais valorizadas na cidade. “É assim a cidade que queremos?”, pergunta o professor. A dependência do automóvel e a perda da possibilidade de se poder se locomover a pé, um dos assuntos mais debatidos no estudo de urbanismo, fica implícita para qualquer observador.
A maior cidade do estado conhecido como o menos regulado (Texas) do país tido como símbolo da livre-concorrência no mundo (EUA). Para o professor e para os alunos não resta dúvida: a vontade individualista do uso do automóvel e a especulação imobiliária capitalista utilizando terrenos como estacionamentos sem a devida regulação municipal são o que gerou esta catástrofe urbana. Seria, portanto, inquestionável que tal fato mereça toda a atenção dos futuros planejadores urbanos para que tal arranjo não mais aconteça nas nossas cidades do futuro.
É definitivamente uma história motivadora, e faz com que os jovens alunos se entusiasmem para planejar suas cidades de forma sustentável. Mas, infelizmente, ela é falsa.
Vou dar meio ponto para esta história: uma das regulações que Houston não possui é aquilo que urbanistas americanos chamam zoneamento euclidiano (aqui chamado apenas de zoneamento), a divisão entre áreas residenciais, comerciais e industriais.[1] Por ser um dos tipos de regulação mais tradicionais, criou-se a lenda urbana de que não havia regulação alguma. Além do mais, hoje é difícil encontrar urbanistas que defendem esse tipo de zoneamento e, tanto na academia como na blogosfera, se fala muito mais em usos mistos do que segregados.
O ponto fica pela metade porque em Houston existe zoneamento através de “covenants“, organizações de bairro que fazem acordos entre especificando a maneira como será o uso do bairro. Porém, ainda que isto pareça algo voluntário e livre, Houston é uma das únicas cidades americanas em que o próprio município aciona os moradores que violarem as regras da comunidade, com o resto da cidade pagando pelas contas legais. Esse tipo de regulação torna a cidade apenas levemente menos zoneada, na prática, que cidades americanas que mantêm regras de zoneamento euclidiano.
Mas vamos ao que realmente interessa, começando pela forma urbana. A legislação determina que as quadras tenham, no mínimo, 600 pés de comprimento, equivalente a 200m. Urbanistas que enfatizam o pedestre no planejamento recomendam quadras de cerca de 300 pés para esta qualidade urbana. Quadras compridas dificultam o trajeto dos pedestres, já que não têm saídas para ruas adjacentes, obrigando-os a caminhar em um corredor. Jane Jacobs também comentou da importância desta característica no “Morte e Vida das Grandes Cidades Americanas”:
… a presença frequente de ruas bem como quadras curtas são coisas valiosas por causa da intrincada estrutura de uso cruzado que elas permitem para os usuários de um bairro da cidade.
Outra característica em relação ao formato das ruas é a sua largura, ou ‘perfil viário’ na linguagem técnica. É bastante evidente que quanto mais largas as ruas mais difícil é o trânsito do pedestre e do ciclista, já que os carros andam mais rápido e as ruas são mais demoradas e mais perigosas para se atravessar. Em Houston, as avenidas devem ter 100 pés de largura (cerca de 30m) e as demais ruas de 50-60 pés (cerca de 20m). Para efeito comparativo, esta é a escala das grandes avenidas de São Paulo — locais onde não é preciso ser especialista para entender que é um ambiente hostil ao pedestre, lembrando também que as calçadas de Houston têm cerca de 1,5m de largura.
Não obstante, Houston foi um dos maiores alvos das teorias urbanas do uso do automóvel como forma de resolver problemas de transporte, amplamente abraçadas pelo setor público em praticamente toda a América no período pós-guerra. Nos anos 1950, nos EUA, foi dada a largada para o Interstate Highway System of America, ou o Sistema Interestadual de Estradas da América, considerado maior projeto público da história da humanidade, com 75.440km de estradas construídas e um custo de U$425 bilhões em dinheiro de impostos. Cidades do país inteiro se desenvolveram em direção aos arredores das cidades, os subúrbios, em busca do sonho americano de uma casa própria no meio de uma área verde com carros na garagem. No Brasil, tivemos a década dos viadutos, que cortaram cidades como Porto Alegre e São Paulo e, é claro, a construção de Brasília em 1957, uma cidade onde a calçada literalmente não existe.
Mas isso não foi suficiente para Houston. Mesmo entre as grandes cidades americanas, Houston se destaca em gastos públicos em estradas para os subúrbios, tornando a cidade cada vez menos densa e mais dependente do automóvel. Enquanto a maioria destas metrópoles possuem um anel viário (ou “beltway”) aos redor dos centros urbanos, Houston possui dois, e pode construir um terceiro. A cidade possui uma população apenas 10% maior que a de Boston, mas possui o dobro de freeways em seus arredores. Projetos multibilionários da prefeitura para a construção de mais estradas continuam sendo aprovados até os dias de hoje.
Mas a coisa não pára por aí. Uma das regulamentações que mais influenciaram o urbanismo de Houston foi o tamanho mínimo dos lotes, que até 1998 era de 5.000 pés quadrados para uma residência unifamiliar, o que equivale a 460m2. Em São Paulo, os lotes regulares são de aproximadamente 10m x 15m — 150m2, podendo-se construir residências multifamiliares ou edifícios comerciais neste espaço. Esta legislação de Houston, contrária à densidade e favorável à dispersão urbana (ou “urban sprawl”, no termo original), torna o uso de transportes coletivos virtualmente impossível, já que apenas para chegar a uma parada de ônibus o cidadão teria de caminhar muitas quadras. Aliás, todas as formas de transporte coletivo — táxis, ônibus, trens, bondes, etc. — são regulados em Houston, operados privadamente apenas por concessão municipal.
E agora vem a cereja do bolo regulatório de Houston, aquela que produz um centro cheio de estacionamentos: uma lei sancionada em 1989 — lembrando da boa e velha tentativa falha do poder público de agradar aos seus cidadãos — obriga novas construções a terem uma quantidade enorme de vagas de estacionamento. Os números são muito mais altos que os vigentes San Francisco. Por exemplo, em San Francisco exige-se 9 vagas para uma escola com 18 salas; em Houston, são 171 vagas. San Francisco requer 1 vaga por residência, Houston requer 1,25-2 vagas. São Paulo, um belo exemplo de cidade orientada para o automóvel, exige 1 vaga para cada 35 – 50m2 em projetos não-residenciais, e um número chocante de 3 vagas por habitação caso a área tenha mais de 500m2.
Houston em 1912, forma mantida até a década de 1950 [Fonte] |
Felizmente, existe hoje em Houston um movimento hoje para remover a legislação de 1989, o que infelizmente não acontece em São Paulo, Porto Alegre ou outras capitais brasileiras que mantêm estas regras criadas para o conforto dos motoristas.Vale lembrar também que a cidade nem sempre foi assim. Desde o início do século 20 até antes do boom automobilístico incentivado pelas municipalidades — e em um ambiente urbano muito menos regulado —, a cidade era mais próxima do ideal de New Urbanismde hoje: prédios de várias alturas, usos mistos, densidade alta em relação às outras cidades da época.
Sendo assim, a imagem que vemos na sala de aula de urbanismo é apenas uma pequena parcela de uma cidade extremamente dispersa, onde a maioria dos habitantes não tem outra opção de moradia senão isolados nos subúrbios e dependendo do automóvel para cumprirem suas rotinas. Após esta não tão breve pesquisa histórica e legal, parece-me claro que a causa disso não é a falta de regulação, mas sim um resultado um tanto óbvio das regulações que foram implementadas pelo existente e muito atuante Departamento de Planejamento de Houston.
Leitura adicional recomendada:
“How Overregulation Creates Sprawl (Even in a City without Zoning”, Michael Lewyn
“Is Houston Really Unplanned?”, Stephen Smith
[1] Na prática isso ocorreria naturalmente sem regulação alguma, já que indústrias pesadas não têm incentivos para comprar terrenos em zonas valorizadas como centros urbanos. Já esses centros urbanos são beneficiados por terem uso misto por todo lugar, o que significa uma vida urbana constante.