Considero um humilhante tributo a minha completa insignificância o fato de que, tendo escrito uns 5 mil artigos em toda minha vida, somente uma vez fui alvo de críticas ou ataques orquestrados. Isto é ainda mais humilhante na era das mídias sociais, que deixou tão fácil insultar os outros publicamente.
A única exceção foi quando escrevi um artigo para um jornal belga em que chamei a música rock anglo-americana inculta em comparação com a música popular árabe, africana ou latino-americana. Ocorreu uma indignação tão generalizada entre os jovens belgas que nenhuma difamação ou nem mesmo um ataque cheio de ódio contra qualquer parte da população poderia ter despertado.
Que o rock seja a coisa mais próxima do que os jovens de hoje considerem sagrada me foi confirmado por outra experiência. A única vez que realmente fui censurado foi quando usei a frase aglomeração fascista de libertinagem para descrever um concerto de rock que a editora me enviou. Os funcionários da revista em que eu pretendia publicar esta frase ameaçaram entram em greve ou pedirem demissão (esqueci qual dos dois) se o editor permitisse que a frase fosse aprovada. Sendo eu um homem de princípios dignos – isto é, que quero ser pago pelo que escrevi – permiti que o editor cortasse a frase.
O episódio me fez refletir sobre a diferença entre individualismo e individualidade, do mesmo modo que já vim a refletir sobre a diferença entre autoestima e auto-respeito. (O primeiro é um vício terrível, o último uma virtude social.) O fato é que o individualismo de maneira alguma conduz a individualidade, na verdade está mais para se afastar dela.
Parece um paradoxo que em uma sociedade individualista as pessoas tenham dificuldade de se individualizarem. Elas sentem uma necessidade interior de se destacarem das outras de alguma forma, de serem diferentes, mas enfrentam grandes dificuldades de conseguirem. Elas exigem o máximo de liberdade individual, só para mergulharem ou se afogarem em multidões de pessoas com gostos iguais ou bem parecidos. Elas se rebelam através da conformidade mais abjeta.
Isto talvez explique a epidemia de auto-mutilação coletiva na forma de piercings e tatuagens que assolou o ocidente. Em muitos países a proporção de tatuados na população atingiu por volta de um terço do total. Com certeza, a maioria deles, se perguntados, diriam que eles estavam se expressando, ou mostrando ao mundo quem eles realmente são. Não poderia haver melhor – ou na minha opinião, mais triste – testemunho de vazio interior coletivo do que este.
Quando percebi pele primeira vez a ascensão da tatuagem na escala social, mais ou menos vinte anos atrás, – o tipo de pessoa que estava se tatuando que antes nunca teria nem pensado em se tatuar – expliquei isto como o anúncio de uma identificação política supostamente virtuosa com os marginalizados da sociedade, que até então eram via de regra os únicos que se tatuavam, sem dúvida combinado com o eterno desejo de chocar mamãe e papai. Porém, esta teoria, se algum dia já foi válida, não pode mais valer. Auto-mutilação é hoje uma moda, com certeza, e talvez se deva levar em consideração que gosto não se discute; mas uma moda que te deixa uma marca indelével é algo a mais do que uma moda como, digamos, uma calça boca de sino ou um suéter de gola rolê.
Quando escrevi que o concerto de rock era um aglomeração fascista de libertinagem, eu quis chamar a atenção para a completa e proposital revogação da individualidade de milhares de jovens ali presentes que, na verdade, erguiam seus braços direitos em um uníssono tão perfeito quanto qualquer outro visto em um aglomeração em Nuremberg. Era como se eles estivessem cansados de serem indivíduos, com o terrível fardo da responsabilidade que acompanha a individualidade, e se jogaram em uma multidão tão aconchegante quanto um ventre materno.
Mas é claro que eles não poderiam admitir que a liberdade era para eles um fardo, porque agora somos intimados a ser sempre e somente nós mesmos. De acordo com a teoria educacional romântica, toda pessoa possui alguma coisa única e exclusivamente preciosa para contribuir, a qual deveria ser o propósito da educação descobrir e estimular. Logicamente, isto é uma sandice; é verdade que toda pessoa é única em virtude de ser humana, mas isto não quer dizer que ele ou ela tenha algo exclusivo a oferecer, que dirá um talento único.
Porém é grande a pressão social para se achar o tesouro interior enterrado, e grande precisamente porque a maioria das pessoas está procurando por algo que não está ali. Não existe nenhum tesouro interior enterrado; mas como se fosse um atalho para a exclusividade, uma tatuagem – com designs que são inesgotáveis na teoria, porém não na prática – irá bastar. Se ninguém tem uma tatuagem igual a minha, então eu sou único.
Não se pode alcançar a individualidade correndo desesperadamente atrás dela. Um excêntrico de verdade não é a pessoa que faz algo bizarro só para se diferenciar dos outros, mas a pessoa que faz alguma coisa que a maioria das pessoas considere estranho achando que o que ela está fazendo é perfeitamente normal. Ele é inconsciente e não está querendo causar nenhuma reação nos outros. Ele não é um exibicionista, e sim perfeitamente normal segundo sua própria opinião.
O que irritou os jovens belgas foi a implicação que eles estavam sedentos por conformidade coletiva, por um tipo de pseudo-comunhão perigosa que os tornaram facilmente manipuláveis (independente dos gostos altamente duvidosos daquilo que os deixavam empolgados). Ao mesmo tempo, o preconceito deles contra a conformidade, considerando-a algo a ser evitado a qualquer custo, deixou-lhes cegos em relação a própria uniformidade desmiolada, e, para mim, deprimente.
Nunca se vê ninguém sendo chamado de convencional, exceto quando está sendo criticado; no entanto o convencional é inescapável: ele constitui, e deve constituir, nove décimos da existência social. Não há nada mais convencional do que tentar fugir do convencional somente por ser convencional. Fazer isso é simplesmente mudar a convenção, geralmente para pior. Isto não quer dizer também que o convencional deva ser cegamente seguido: O Dr. Johnson sacou isso perfeitamente quando disse que uma pessoa que desafia uma convenção era pior do que uma que não, a menos que ela fosse melhor. Em outras palavras, o que conta não é se ela desafiava a convenção, mas se ela era melhor ou pior.
A individualidade não pode ser considerada um objetivo, do mesmo jeito que a felicidade também não pode. Tentar ser um indivíduo diferente dos outros é se tornar um ator que nunca desce do palco.
Tradução de Fernando Chiocca
Artigo original aqui.
A verdade é superior a individualização.
A verdade ou alguma verdade tem valor intrínsico. Se ela nos torna diferentes ou iguais aos outros é um efeito acidental e circunstancial que deveriamos tornar ou tentar tornar irrelevante.
Não é verdade que não exista nenhum tesouro escondido. Esse é um caso de uma unanimidade circunscrita num contexto epistemológico e cultural. Culturas com mais metafísica e misticismo discordariam disso.