“O plano era matar pessoas, senhor.”
Uma manchete do britânico The Guardian diz “Soldado americano admite ter matado afegãos desarmados por esporte.”
“O plano era matar pessoas, senhor.” Isso é o que Jeremy Morlock disse respeitosamente a um juiz do exército sobre a sua participação em um “esquadrão da morte” de soldados no Afeganistão que atacava civis inocentes e os fazia parecerem insurgentes mortos. Membros do esquadrão da morte guardavam fotografias dos civis assassinados como troféus, e alguns guardavam partes dos cadáveres como recordação.
A história acima descreve o mal. A palavra está fora de moda, talvez por ser muito associada à direita religiosa, ou talvez porque tenha sido usada em demasia.
O que quero dizer quando me refiro a um ato como mal?
Quando uso essa palavra é com o significado randiano de uma ação que é essencialmente anti-vida e realizada sem justa causa. Com a palavra mal, me refiro exclusivamente ao comportamento humano que é intencional, não acidental ou forçado.
Eu concordo com os psiquiatras: um comportamento mau resultante de problemas mentais, como esquizofrenia por exemplo, não se qualifica como mal. Eu discordo daqueles que descartam o livre arbítrio e imputam todo comportamento malevolente a transtornos mentais e emocionais. Assim como algumas pessoas escolhem intencionalmente e livre de coerções que serão desonestas, outras escolhem destruir vidas inocentes por dinheiro ou por prazer. Os seres humanos têm uma vasta gama de preferências, e algumas pessoas sempre irão abraçar as mais extremas.
Ainda assim, é difícil reconciliar as fotografias de um Morlock americano, com uma barba bem feita, com o Morlock que se sentou tão calmamente num tribunal e respeitosamente descreveu o assassinato violento de inocentes por esporte.
Falando nisso, como você consegue explicar a atitude dos outros soldados no esquadrão da morte, ou aqueles que ativamente tentaram acobertá-los?
Lutar com a questão da maldade não é algo novo para mim. Nesta batalha, dois autores em particular têm sido valiosos: Hannah Arendt e Henry David Thoreau.
Hannah Arendt
Em seu livro Eichmann in Jerusalem: A Report on the Banality of Evil (1963), a ensaísta política americana de origem alemã Hannah Arendt abriu um janela única, através da qual podemos observar o mal. Judia de nascimento, Arendt escapou da Europa Nazista em 1941, e depois se naturalizou cidadã americana. Em 1961, pela New York Magazine, Arendt acompanhou o julgamento de Jerusalém de Adolf Eichmann, um burocrata de alto escalão que havia sido importante na administração dos campos de extermínio nazistas.
Ela abriu as transcrições do julgamento para examinar um monstro sádico, mas fechou sem encontrar um. Como seu companheiro nazista Heinrich Himmler, que havia se transformado de um criador de galinhas para o chefe da notoriamente brutal SS, Eichmann parecia ser um homem comum com um talento para seguir ordens. Arendt cunhou um termo , a “banalidade do mal”, parcialmente como uma maneira de descrever o comportamento de Eichmann durante o julgamento, no qual ele negou toda responsabilidade pelos assassinatos em massa, alegando que estava apenas seguindo ordens, ele estava obedecendo a lei.
Página após página, Eichmann não demonstrou quaisquer sinais de culpa, maldade ou insanidade. De fato, como um homem sendo julgado, a emoção mais marcante que ele demonstrou foi uma tendência para se gabar. Arendet chamou isso de “o vício que foi a perdição de Eichmann”, porque o levou a falar de atrocidades que ele não foi ordenado a cometer. Para Arendt, parecia que Eichmann preferia morrer como um criminoso de guerra, que viver como alguém irrelevante.
Arendt continuou a dissertar sobre como pessoas aparentemente comuns podem cometer atos terríveis, simplesmente porque estes atos foram cometidos de maneira sistemática, e sancionados por um contexto, um contexto que desencorajava responsabilidade premiando a obediência. Assim, atos inimagináveis se tornaram aceitáveis porque constituíam apenas “o jeito que as coisas são”. Um crítico ao ler o livro de Arendt observou que os nazistas “normalizaram o inimaginável”.
As observações de Arendt também se aplicaram aos atos de “maldade” mais mundanos cometidos durante o reinado de Hitler. Por exemplo, o repentino confisco da propriedade de judeus deixou de ser roubo, se realizado com a papelada “correta”, carimbada e preenchida em três vias por um funcionário do governo. Aqueles que processavam esses formulários, ou inventariavam os bens, estavam apenas preenchendo papelada e fazendo inventário, eles eram pessoas “honestas” fazendo seu trabalho.
O mesmo era verdade (hoje e então) para guardas de prisão, forças policiais especiais, e um judiciário obediente. Eles obedeceram as ordens sem questionar. Para eles, a lei assumiu o papel que a consciência desenvolveu em outras pessoas. A lei disse-lhes o que era certo e o que era errado e eles obedeceram.
As pessoas optam por obedecer por muitos motivos, é claro. Algumas veem como um caminho para o sucesso e a importância, outros temem as consequências da desobediência. Muitos, como aqueles que fazem a papelada para facilitar roubo e assassinato, veem seus empregos como rotineiros e tediosos, tão distantes do mal quanto concebível. Eles simplesmente querem receber um contracheque ou uma pensão, e eles não pensam sobre o conteúdo ou as consequências de suas ações. De fato, eles provavelmente ficariam ofendidos se alguém sugerisse que eles deveriam fazê-lo.
A explanação complexa de Arendt sobre “a banalidade do mal” oferece perspectiva sobre Morlock e seu esquadrão da morte no Afeganistão. Eles estavam em um ambiente que sistematicamente desumanizava o afegão médio. Morlock também era parte de uma cultura que sistematicamente desumanizava a consciência moral do indivíduo e apagava a responsabilidade pessoal.
Apesar dos paralelos, no entanto, Morlock não se encaixa perfeitamente no paradigma de Arendt. Primeiramente, ele não pôde alegar estar “apenas obedecendo ordens”, como um argumento de absolvição. Um oficial superior em sua unidade sugeriu o esquadrão da morte, é verdade, mas Morlock não recebeu ordens oficiais.
Estima-se que quatro companheiros militares se uniram a ele na caçada humana, e pelo menos vários outros os acobertaram. Isso pode muito bem ter provido uma sanção contextual, mas os repetidos acobertamentos do esquadrão da morte revelam que eles sabiam que seus atos eram errados por algum parâmetro.
Os motivos e dinâmicas de fazer o mal são quase certamente tão complexos quanto aqueles de fazer o bem. Eu duvido que qualquer autor chegue perto de capturar sua complexidade por inteiro.
Henry David Thoreau
Mas Henry David Thoreau oferece uma observação a mais. Em seu trabalho Desobediência Civil, Thoreau fez objeção à norma da maioria, porque a visão da maioria nem sempre coincide com o que é moralmente correto. Todo ser humano tem uma obrigação fundamental de descobrir por si só o que é justo, e então agir de acordo com sua consciência, mesmo que isso contradiga a maioria, ou a lei. É precisamente a sua consciência moral que faz um homem totalmente humano.
Foi precisamente nas forças armadas que Thoreau viu o maior abandono da consciência moral. A forças armadas proclamam que obedecer ordens é o ideal máximo. Thoreau observou soldados que marchavam para morrer e matar estranhos em um conflito que eles sabiam ser injusto. Ele questionou se esses soldados mantiveram ou abandonaram sua humanidade quando substituíram seu próprio julgamento moral pelo que foi ditado por legisladores. Thoreau concluiu que quando um homem abandona seu julgamento moral, ele se torna uma máquina, seu corpo se torna uma mera ferramenta a ser usada.
Thoreau escreveu:
“Agora, o que são eles? Homens, de todo? Ou pequenas fortalezas móveis e carregadores, a serviço de alguns homens inescrupulosos?…
A massa de homens serve o estado portanto, não como homens principalmente, mas como máquinas, com seus corpos…na maioria dos casos não há qualquer exercício livre que seja do julgamento ou do senso moral, mas eles se põem em nível com madeira, terra, e pedra, e homens de madeira podem talvez ser fabricados para servir o propósito da mesma maneira.”
Muitos consideram servir “seu país” como sendo automaticamente uma virtude, mas é um vicio desumanizante sempre que envolver o abandono da consciência. As forças armadas exigem esse abandono. E poucas atividades podem ser tão desumanizantes quanto patrulhar ruas estrangeiras no papel de uma força ocupante.
Soldados como Jeremy Morlock apontam armas para estranhos que não os fizeram mal algum, eles o fazem em um estado mental induzido em que cada criança pequena poderia ser um inimigo esperando para causar a morte. Quando você sistematicamente retira a consciência de um homem, e dá a ele uma arma com pouca responsabilização, o pior de sua humanidade deverá surgir. Ou talvez Thoreau esteja correto: sua própria humanidade poderá desaparecer.
Arendt uma vez disse, “A triste verdade é que a maior parte do mal é cometido por pessoas que nunca decidiram ser boas ou más”. Se assim for, então o primeiro passo em direção ao mal para a maioria das pessoas é concordar em não enxergar essa distinção.
Tradução de Gabriel Philbois
Perfeito, liberdade para agir livremente, sem coerção e não essa ditadura da maioria idiota.
Excelente texto! Li Thoreau fazem alguns anos, e lembro o quanto a Desobediência Civil tinha uma argumentação lógica e sustentável voltando-se contra um poder absoluto e ditatorial. O que vemos hoje é uma guerra mental e bem arquitetada que mesmo que utilizemos de nossa intelectualidade fica difícil de saber em qual narrativas nos encontramos. Entretanto, tenos o bastão da liberdade individual como régua moral é possível separarmos as informações e testemunharmos o nosso lado em cada notícia veiculada. O grande número de pessoas interessadas em filosofia no Brasil o maior engajamento do jovem médio nas redes sociais querendo ouvir e ser ouvido me dá esperança que um futuro com maior liberdade individual é possível em nosso país. Estou terminando de ler A Revolta de Atlas de Rand, e a cada capítulo fico mais estupefato com tamanha inteligência da obra, revelando os aspectos mais horripilantes das “políticas-capitalistas” dos investimentos para o “amigo” que nos assolaram por ao menos 20 anos. Espero que a nova turma de Paulo Guedes e outros integrantes deste atual governo possa barrar em definitivo toda e qualquer atitude mais cerceadora das liberdades individuais. E principalmente que tenhamos maior abertura econômica. Que possamos ser protegidos sempre pela saudosa paz em nosso território.
Gostei muito
Recomendo fortemente o livro Ponerologia: psicopatas no poder. Esclarece e surpreende com bastante profundidade este assunto. Atualissimo!