Foi-se o tempo em que burocratas passavam o tempo procurando pêlo em ovo. A moda agora é passar o tempo procurando brinquedo em guloseima. E encontraram.
Um projeto do deputado Rui Falcão (PT), que proíbe a venda de alimentos e bebidas com inclusão de brinquedos promocionais e impede a veiculação de comerciais publicitários, entre 6h e 21h, de alimentos e bebidas pobres em nutrientes, foi aprovado pela Assembleia Legislativa de São Paulo. Isso significa que propagandas de lanches, balas, chocolates e afins serão reservadas aos horários a que apenas adultos podem assistir; e que, na próxima Páscoa, os brinquedinhos dentro dos ovos de chocolate deverão ser substituídos por alguma outra coisa não tão divertida, como um figo, por exemplo. O projeto caminha para o endosso final do governador tucano.
O raciocínio desses legisladores reside na alegação de que a obesidade infantil é uma questão de saúde pública, de que alimentos ricos em açúcar, sal e gordura ajudam no ganho de peso de crianças, e de que, portanto, a criação de estímulos de venda para tais produtos é um desfavor à sociedade. A solução seria regular, reprimir e controlar o mercado.
Ao que tudo indica, mais uma vez — e na calada da noite —, os teóricos de gabinete, aqueles que decidem o que é o homem e como as pessoas devem pensar e agir, que tempos atrás proibiram a sacolinha plástica de mercado, o sopão dos pobres, o ovo com gema mole, agora encontraram mais um bom filão para justificar seus salários, e mais uma vez sem que a maioria saiba. A decisão desce com a força do carimbo; e aquilo que antes se podia fazer, e que nem o padre dizia que era errado, torna-se crime do dia para a noite.
Apesar do assunto interessar a pais, filhos e famílias em geral, o teor de tal projeto não foi alvo de debate na sociedade civil. Ele simplesmente foi decidido e pronto. E essa recusa em ouvir o que os verdadeiros responsáveis pela saúde das crianças — os pais — têm a dizer sobre a questão carrega uma mensagem perturbadora, cada vez mais frequente e sintomática: é o estado — e não os pais, a família — quem sabe o que é melhor para as crianças. É o Estado quem sabe e determina quais valores, qual imaginário, qual educação, qual alimentação as crianças devem seguir. Exagero? Não acredito.
É óbvio que nenhum pai deseja seu filho correndo risco de saúde por causa da obesidade, e que, se sentindo impotente e confuso diante de tal hipótese, acabe mesmo é por agradecer a existência de um estado que lhe diga que está aí para facilitar a sua vida.
Mas a questão é muito mais complexa do que simplesmente brinquedos ou propaganda de guloseimas, que sempre existiram. A sociedade de hoje, especialmente nas grandes metrópoles, se tornou hostil a uma vida saudável para nossas crianças. A busca por estabilidade econômica muitas vezes leva os pais a deixarem seus filhos sem sua companhia por longos períodos, e estes acabam preenchendo seu tempo na TV ou na internet.
O medo da violência impede que as crianças façam como eu, na minha infância, e saiam pelas ruas e parques desacompanhados para soltar pipa, pedalar, jogar bola e gastar energia. A falta de tempo inclina ao consumo de produtos industrializados, mais práticos, mas também menos saudáveis do que a comida fresca e balanceada que o brasileiro sempre aprendeu a comer. Diante de uma conjuntura que torna a obesidade infantil uma hipótese cada vez mais real, chega o estado com sua singular vocação para se capitalizar politicamente.
Poucos percebem a artimanha barata de associação de uma causa aparentemente boa com uma alegação torta e que, no fundo, trata da busca de vantagens políticas.
Quem iria se levantar contra um projeto que, para todos os efeitos, visa a proteger criancinhas? Quem está disposto a correr o risco de ser rotulado como promotor da obesidade infantil? Ninguém. E é por isso que tal projeto ganha relevância política ainda maior. A criança aqui, na realidade, não passa de um escudo, um instrumento para a promoção e expansão do estado sem limites, aquele estado já chamado, mais de uma vez, de estado-babá.
O estado-babá, que não é bobo e percebe, graças aos seus instrumentos de controle social (IBGE etc.), que os pais estão cada vez mais distantes de seus filhos, e que, portanto, têm cada vez menos autoridade dentro de casa, identifica um bode expiatório e associa sua destruição à solução do problema que apavora os pais. O lanche com brinquedo e a propaganda seriam então os culpados da vez.
É aí que entra a terceirização da culpa, analgesiando a mente desses pais que, se sentindo aliviados depois de comprarem seus filhos com um “sim” a tudo que desejam, devolverão sua gratidão em forma de votos à manutenção do poder arbitrário do estado.
Pela simples razão de que a verdade muitas vezes incomoda e quem incomoda não recebe votos é que o estado-babá sempre dará preferência à terceirização da culpa — e não à exposição da verdade.
Lembrar aos pais que a responsabilidade sobre a obesidade de seu filho pertence a eles mesmos, que aos pais cabe a decisão de ter ou não ter uma TV em casa, de que o controle do dinheiro da família não é da criança, e que, portanto, não há possibilidade de um filho se encher de gordura sem que o pai não tenha de alguma forma permitido tal lambança, pelo fornecimento de capital e pela falta de autoridade, seria inconveniente e impopular. Seria sincero demais.
Se políticos acreditassem mesmo que a propaganda que promete mais do que entrega é intrinsecamente má, também proibiriam a propaganda eleitoral, que já ajudou tantos brasileiros ignorantes — às vezes com menos instrução do que crianças — a colocar no comando do estado ladrões, fraudadores e quadrilhas que usam o poder que conquistam na base da mentira para extorquir o próprio eleitorado enganado.
Se políticos acreditassem mesmo que as crianças são instrumentalizadas pela lógica do mercado e são pobres vítimas de interesses escusos, também proibiriam candidatos segurando crianças em seus colos durante o período eleitoral, beijando testas de bebês, vendendo, por meio de comerciais e santinhos, a imagem falsa de amigos do povo, capaz de atrair a simpatia da gente inocente e de seus votos confiantes.
Não, não se trata da defesa dos direitos da criança. Trata-se, mais uma vez, da diminuição da liberdade do cidadão, do enfraquecimento da autoridade dos pais, da ingerência estatal no livre mercado e na mídia, da pulverização das responsabilidades individuais, do fortalecimento e da expansão do aparato estatal sobre as consciências e sobre toda a sociedade. Isso é que é venda casada.
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