‘Matem todos eles’

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“Alguém sabe para onde vai o amor de Deus
Quando as ondas transformam os minutos em horas?”
— Gordon Lightfoot (1938-2023), O naufrágio do Edmund Fitzgerald

À medida que ficamos sabendo mais sobre os eventos de 2 de setembro de 2025, em águas internacionais a 1.500 milhas dos Estados Unidos, o comportamento das forças armadas dos norte-americanas se torna mais perturbador do ponto de vista legal do que à primeira vista. Soubemos, por membros do Congresso e outros que assistiram aos vídeos dos ataques à lancha naquele dia, que o primeiro ataque destruiu em grande medida — mas não completamente — o barco e matou 9 das 11 pessoas a bordo.

Os dois sobreviventes se agarraram aos destroços por 45 minutos, durante os quais acenaram freneticamente para o que achavam ser aeronaves americanas, esperando serem resgatados. Esse ataque foi o primeiro de muitos desde então ordenado pelo presidente Donald Trump, e foi feito sem aviso prévio. Após 45 minutos aterrorizantes, mais três ataques obliteraram os dois sobreviventes agarrados nos destroços, por “legítima defesa”, disse a Casa Branca.

Quando duas pessoas corajosas que tinham conhecimento de tudo isso revelaram isso duas semanas atrás a repórteres do The Washington Post que corroboraram as revelações com outras cinco pessoas, o Post publicou a matéria. Então, o secretário de Defesa Pete Hegseth negou ter ordenado a morte dos sobreviventes; tratava-se, disse ele, “da névoa da guerra.” Depois, a Casa Branca revogou essa negação. Então, o almirante responsável reconheceu que ordenou as mortes conforme as ordens iniciais do secretário.

Os militares têm o dever de resgatar feridos e náufragos. E os militares têm o dever de desrespeitar ordens ilegais — uma posição que a própria Procuradora-Geral Pamela Bondi defendeu na Suprema Corte quando exercia advocacia privada, e que o próprio Hegseth defendeu quando era cidadão particular.

Não resgatar esses sobreviventes foi um crime. Mas todo o processo de assassinato é criminoso.

Aqui está a história por trás de tudo.

A questão jurídica central aqui para Hegseth é se o presidente pode legalmente ordenar que os militares matem civis para fins de aplicação da lei. A resposta curta é: NÃO. A resposta mais longa exige que nos aprofundemos na história e natureza do governo federal americano e nos propósitos da Constituição americana.

O governo federal é um governo de poderes limitados. Os poderes estão delineados no Artigo I da Constituição, onde encontramos 16 concessões de poderes ao Congresso, além de um termo genérico que permite ao Congresso legislar em áreas não especificamente encontradas nas 16, mas que possivelmente as apoiam.

Em nenhum lugar se encontra segurança pública. Na verdade, os tribunais decidiram inúmeras vezes que a governança sobre saúde, segurança, bem-estar e moralidade — chamada de “poder policial” — era e continua sendo reservada aos estados. De fato, a 10ª Emenda afirma que os poderes não concedidos ao governo federal são reservados ao povo ou aos estados.

Após o fim da Guerra Civil e durante o período da Reconstrução, as tropas federais exerceram o poder policial e tentaram governar e até garantir segurança nos estados anteriormente secessionistas. A reconstrução terminou após 11 anos com uma série de compromissos, um dos quais é um estatuto federal que proíbe o uso das forças armadas para fins de aplicação da lei.

Isso não é uma anomalia histórica ou mera nota de rodapé. É um compromisso jurídico profundo manter as tropas fora das ruas americanas e fora dos negócios da aplicação da lei doméstica; e manter o poder policial local.

Quando o presidente faz um juramento de defender a Constituição, ele promete exercer seu cargo “fielmente”. James Madison, o escrivão da Constituição, insistiu que o juramento presidencial estivesse na Constituição e que a palavra “fielmente” estivesse no juramento. Ele sabia que presidentes seriam tentados a ignorar leis com as quais discordavam.

Ele estava certo. Tais pessoas não são aptas para ser presidentes. “Fielmente” no juramento presidencial significa de forma equilibrada, independentemente da opinião pessoal do presidente sobre as leis. Se um presidente pudesse aplicar as leis que gosta e desconsiderar aquelas que não gosta, estaria violando seu juramento e se afastando do sistema de freios e contrapesos cuidadosamente elaborado por Madison, em direção ao autoritarismo.

Agora, voltando ao assassinato de pessoas em lanchas.

Trump afirma que as pessoas nos barcos são traficantes e que as drogas estão destinadas aos Estados Unidos. Isso provavelmente não é exatamente o caso de todos os barcos destruídos e todos os homens mortos.

Mesmo que fosse verdade, no entanto, isso não justifica legalmente matar ninguém. Nem as forças armadas nem as forças de segurança domésticas podem legalmente matar pessoas não violentas e não combatentes. Por mais horrível que tenha sido a experiência daqueles para quem as ondas transformaram os minutos em horas, isso é apenas uma pequena parte do autoritarismo inconstitucional que estamos testemunhando.

Todo o programa — “matar todos eles” — é uma violação profunda da Quinta Emenda, que o presidente jurou defender fielmente e que exige julgamento por júri quando o governo quer a vida, liberdade ou propriedade de alguém. Se o presidente realmente se interessasse pela interdição de drogas, apreensões em águas dos EUA, prisões e processos gerariam um caminho muito melhor para a origem das drogas do que assassinar transportadores e destruir qualquer evidência.

O almirante que deu a ordem de “matar todos eles” estava na Flórida quando deu a ordem. Os projéteis que atingiram esses barcos foram enviados por aeronaves que decolaram da Flórida, e os despachantes — as pessoas que puxaram o gatilho (atualmente, apertaram os botões) — estavam na Flórida. Ninguém pode argumentar seriamente que eles não estavam sujeitos à Constituição.

Matar é o negócio mais horrível. Está se tornando perigosamente normalizado devido à demonização das vítimas. Mas matar destrói vidas inocentes e os valores que fundamentam a Constituição. Se o presidente pode demonizar aqueles que odeia e teme, e depois matá-los desafiando a lei e sair impune, de que valor têm nossas leis?

 

 

 

Artigo original aqui

1 COMENTÁRIO

  1. De fato atirar em náufragos extrapola as ações voltadas contra o narcotráfico. Isso precisa ser evidenciado, investigado e devidamente julgado.

    Mas valorizo e aprovou as ações contra o narcotráfico, entendo-as como necessárias. Mesmo que o autor considere os alvos como meros “transportadores”, estes estão a serviço do crime, logo são criminosos. Gostaria de conhecer o contraponto jurídico que permite ao Governo dos EUA as ações, visto que, a despeito do grande colunista, este artigo foi publicado no Ron Paul Institute, um conhecido candidato libertário à Presidência dos EUA.

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