5 – Efeitos da Expansão de Crédito Bancário Sobre o Sistema Econômico
No capítulo anterior, explicamos a forma como o contrato bancário de depósito monetário com reserva fracionária leva à criação de moeda nova (depósitos) e à sua injeção no sistema econômico na forma de concessão de novos créditos não cobertos por um aumento natural da poupança voluntária. Neste capítulo, veremos quais os efeitos da concessão de novos créditos sem cobertura de poupança voluntária por parte do sistema bancário (expansão de crédito) sobre o sistema econômico. Analisaremos as distorções causadas pelo processo de expansão: erros de investimento, contrações de crédito, crises bancárias e, finalmente, desemprego e recessões econômicas. Porém, antes disso, será necessário estudar pormenorizadamente a teoria do capital e da estrutura produtiva numa economia real, uma vez que a compreensão clara de ambas é essencial para o entendimento dos processos espontâneos desencadeados no mercado como reação à concessão bancária de créditos que não decorram de um aumento prévio da poupança voluntária. A presente análise demonstrará que a figura jurídica que temos estudado (o contrato de depósito bancário de moeda com reserva fracionária) dá origem a graves prejuízos para um elevado número de agentes econômicos (e, em geral, para toda a sociedade), visto ser o principal responsável pela aparição recorrente de recessões econômicas. Além disso, mostraremos que, ao provocar crises bancárias e econômicas, a expansão de crédito torna a “Lei dos Grandes Números” inaplicável na sistema bancário, fazendo com que seja tecnicamente impossível assegurar as operações, o que é muito importante diante o inevitável surgimento do banco central como prestamista de última instância. Analisaremos detidamente tal questão em um capítulo mais adiante, e por enquanto, vamos começar por explicar os processos que surgem espontaneamente no sistema econômico quando a concessão de créditos novos tem origem num aumento voluntário da poupança real da sociedade, para depois, por contraste e em comparação, percebermos o que acontece quando os créditos são criados do nada pelo sistema bancário via o processo de expansão de crédito.
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Fundamentos da teoria do capital
Nesta seção vamos definir os princípios essenciais da teoria do capital necessários para compreender os efeitos da expansão de crédito sobre o sistema econômico.[1] Começaremos por dar atenção à concepção subjetivista da ação humana entendida como um conjunto de etapas produtivas dirigidas à consecução de um fim.
A ação humana como um conjunto de etapas subjetivas
Para começar, pode definir-se a ação humana[2] como qualquer comportamento ou conduta deliberada. O homem age para alcançar determinados fins que crê importantes para si mesmo. Chama-se valor à apreciação subjetiva, mais ou menos intensa, que o ator dá à tal finalidade e meio é tudo aquilo que o ator considera subjetivamente adequado para a alcançar. Utilidade é a apreciação subjetiva que o ator dá ao meio, em função do valor do fim que pensa que aquele meio permitirá alcançar. Os meios devem, por definição, ser escassos, uma vez que se o ator não os considerasse escassos para os fins que pretende atingir, nem sequer os teria em conta na hora de atuar. Fins e meios não são “dados”, mas, antes, o resultado da atividade empresarial essencial do ser humano, que consiste em criar, descobrir ou, simplesmente, perceber quais são os fins e meios relevantes para o ator em cada circunstância de sua vida. Quando o ator acredita ter descoberto os fins que valem a pena, começa a ter uma ideia dos meios que se encontram ao seu alcance que o ajudam a alcançá-los. Incorpora-os, quase sempre de forma tácita, num plano de atuação, que decide empreender como resultado de um ato de vontade.
O plano é, portanto, a representação mental, perspectivada pelo ator, das diferentes etapas, elementos e possíveis circunstâncias que podem estar relacionadas com a própria ação. O plano é uma avaliação pessoal da informação prática que o ator possui e que vai sendo descoberto dentro do contexto de cada ação. Além disso, podemos afirmar que toda a ação encerra um processo contínuo de planificação individual ou pessoal pela qual o ator está continuamente concebendo, revendo e modificando os planos, à medida que descobre e cria informação subjetiva nova no que respeita aos fins que se propõe atingir e aos meios que acredita estarem ao seu alcance para tal.[3]
Toda a ação humana é dirigida à obtenção de um fim, ou bem de consumo, que podemos definir como um bem que direta e subjetivamente satisfaça as necessidades do ator humano. Tradicionalmente, chamamosbens econômicos de primeira ordem a estes bens de consumo que, no contexto subjetivo e específico de cada ação, constituem o fim que o ator pretende alcançar.[4] A consecução desses fins, bens de consumo ou bens econômicos de primeira ordem, envolve uma série de etapas intermediárias anteriores, a que podemos chamar “bens econômicos de ordem superior” (segundo, terceiro, quarto e assim sucessivamente). Quanto mais alta for a ordem de cada etapa, mais longe estará do bem final de consumo.
Além disso, a ação humana sempre se desenvolve no tempo, entendido não no sentido determinista ou newtoniano (ou seja, meramente físico ou analógico), mas na sua concepção subjetiva, isto é, tal como o tempo é subjetivamente sentido e experimentado pelo ator dentro do contexto de sua ação. De acordo com essa concepção subjetivista do tempo, o ator sente e experimenta a passagem do tempo precisamente à medida que atua, ou seja, à medida que percebe novos fins e meios, concebe planos de atuação e culmina nas diferentes etapas que constituem cada ação.
Quando age, o ser humano faz, na mente, uma espécie de fusão entre as memórias que guarda de experiências do passado e a projeção simultânea e criativa de imagens mentais e expectativas referentes às diferentes etapas que constituem o processo de ação que desenvolverá no futuro. Este futuro nunca se encontra determinado a priori, antes, vai sendo imaginado, criado e construído passo a passo pelo ator. Por isso, o futuro é sempre incerto, no sentido em que ainda está por construir, sendo que o ator não tem mais do que ideias, imagens ou expectativas sobre ele, que espera tornar realidade por intermédio da finalização das etapas que imaginou e que constituirão o processo de ação pessoal. Além disso, o futuro está aberto a todas as possibilidades criativas do homem e o ator pode modificar, em qualquer ocasião, os fins que persegue ou criar, reordenar e rever as etapas dos processos de ação em que está envolvido.
Assim, o tempo é uma categoria da Ciência Econômica inseparável do conceito de ação humana. Não é possível conceber uma ação que não seja efetuada no tempo ou que não dure tempo. Da mesma forma, o ator pressente o decorrer do tempo à medida que atua e termina as diferentes etapas do processo de ação. A ação humana, que é sempre dirigida à obtenção de um objetivo ou ao fim de um mal-estar, dura sempre tempo, no sentido em que exige a realização e a culminação de um conjunto de etapas sucessivas. Podemos, pois, concluir que aquilo que separa o ator da consecução de um fim é um período de tempo, entendido como o conjunto sucessivo de etapas que constituem o processo de ação.[5]
Pode ser dito que, do ponto de vista prospectivo e subjetivo do ator, existe a tendência de quanto maior o tempo exigido por uma ação (ou seja, o número e complexidade de etapas sucessivas que a constituem), mais elevado se tornará o resultado ou objetivo da ação. Este valor subjetivo mais elevado das ações, pode ser obtido de duas formas, conforme incluam uma série mais ou menos numerosa e complexa[6] de etapas que exijam um período de mais prolongado: fazendo com que seja possível que o ator obtenha resultados que tenham, para ele, um valor mais alto e que não poderiam ser alcançadas com ações humanas de duração mais curta, ou permitindo a obtenção de um número de resultados maior do que aquele que seria possível por meio de processos menos duradouros. É fácil entender este princípio econômico segundo o qual os processos de ação humana tendem a alcançar fins de maior valor se tiverem uma duração mais longa. Na verdade, se assim não fosse, ou seja, se os resultados das ações que duram mais tempo não fossem mais valorizados, o ator não as empreenderia e optaria por ações mais curtas. Ou seja, o que separa um ator de um fim que pretende alcançar é precisamente uma determinado período de tempo (entendido como o conjunto de etapas no seu processo de ação). Assim, é evidente que o ser humano, em circunstâncias idênticas, procurará sempre atingir os seus fins o mais cedo possível, e só estará disponível a adiar a consecução dos mesmos se subjetivamente considerar que dessa forma alcançará fins de maior valor.[7]
Quase sem notar, introduzimos no parágrafo anterior a categoria lógica da preferência temporal, que estabelece que, ceteris paribus, o ator prefere satisfazer as próprias necessidades ou atingir os objetivos o mais cedo possível. Ou, por outras palavras, que, em face de dois objetivos a que atribui valores idênticos, o ator preferirá sempre o que demorar menos tempo. Ou, de forma ainda mais breve, que, nas mesmas circunstâncias, os “bens presentes” são sempre preferíveis aos “bens futuros”. Esta lei da preferência temporal não é senão outra forma de expressar o princípio essencial segundo o qual todo o ator, no processo da própria ação, pretende alcançar os fins o mais cedo possível, estando separado dos mesmos por uma série de etapas intermediárias que encerram um determinado período de tempo. A preferência temporal não é, portanto, uma categoria psicológica ou fisiológica, mas uma exigência da estrutura lógica da ação que se encontra na mente de todo o ser humano. Isto é, a ação humana é orientada para determinados objetivos e seleciona meios para os alcançar. O objetivo é aquilo que se pretende alcançar ou a meta de toda a ação e, na ação, o que separa o ator da meta é o tempo. Por isso, quanto mais perto da meta estiver o ator, mais próximo estará de alcançar os objetivos que, para ele, têm valor. A tendência descrita acima, de acordo com a qual os atores empreendem ações mais duradouras por esperarem atingir objetivos de maior valor, e a lei da preferência temporal que acabamos de enunciar, segundo a qual, em circunstâncias idênticas, se preferem sempre os bens mais próximos no tempo, não são mais do que formas distintas de expressar a mesma realidade.[8]
Assim, não é possível imaginar nenhuma ação humana a que não se aplique o princípio da preferência temporal. Um mundo sem preferência temporal seria absurdo e inconcebível: sugeriria que se preferisse sempre o futuro ao presente, adiando-se os objetivos sucessivamente, mesmo antes de serem alcançados, o que faria com que nunca se alcançasse qualquer fim, e com que a ação humana não fizesse sentido.[9]
Capital e bens de capital
Podemos chamar bens de capital às etapas intermediárias de cada processo de ação, subjetivamente consideradas como tal pelo ator. Ou, caso se prefira, bem de capital será cada uma das etapas intermediárias, subjetivamente considerada como tal, nas quais se concretiza ou materializa todo o processo produtivo empreendido pelo ator. A nossa definição de bens de capital se encontra, portanto, perfeitamente encaixada na concepção subjetivista da economia que apresentamos acima. A natureza econômica de um bem de capital não depende das propriedades físicas, mas sim do fato de haver algum ator que considere que o bem vai lhe ser útil para alcançar ou culminar alguma etapa do processo de ação. Assim, os bens de capital, tal como os definimos, não são mais do que etapas intermediárias pelas quais os ator acha necessário passar antes de alcançar o fim da própria ação. Os bens de capital devem ser concebidos num contexto teleológico, no qual o fim perseguido e a perspectiva subjetiva do ator em relação às etapas necessárias para alcançá-lo são os elementos definidores essenciais.[10]
Assim, os bens de capital são os “bens econômicos de ordem superior” ou fatores de produção que se consubstanciam subjetivamente em cada uma das etapas intermediárias de um processo concreto de ação. Além disso, os bens de capital aparecem como a conjunção de três elementos essenciais: recursos naturais, trabalho e tempo, todos eles combinados ao longo de um processo de ação empresarial criado e empreendido pelo ser humano.[11]
A condição sine qua non para produzir bens de capital é a poupança, entendida como a renúncia ao consumo imediato. De fato, o ator só poderá alcançar uma sucessão de etapas intermediárias de um processo de ação cada vez mais distante no tempo se, antes, tiver renunciado a ações que dessem ensejo a um resultado mais próximo no tempo, ou seja, se tiver renunciado à consecução de fins que satisfazem necessidades humanas imediatas e que são imediatos eles próprios (consumo). Para ilustrar esse importante aspecto, vamos começar por explicar, usando um exemplo de Böhm-Bawerk, o processo de poupança e investimento em bens de capital realizado isoladamente por um ator individual, por exemplo, Robinson Crusoé em sua ilha.[12]
Vamos supor que Robinson Crusoé tenha acabado de chegar à sua ilha e que, como único meio de subsistência coleta amoras diretamente dos arbustos com a mão. Diariamente, dedica todo o empenho à colheita das amoras, recolhendo frutos em quantidade suficiente para subsistir e até comer um pouco mais do que a quantidade estritamente necessária. Após várias semanas nesse regime, Robinson Crusoé descobre, de modo empreendedor, que se usar uma vara de madeira de vários metros de comprimento, pode chegar mais alto e mais longe, bater nos arbustos com força e conseguir as amoras de que precisa com mais rapidez. O único problema é que estima que levará cinco dias completos para encontrar a árvore da qual possa tirar a vara e prepará-la, tirando-lhe os ramos, as folhas e as imperfeições; período em que terá necessariamente de interromper a coleta de amoras. Assim, caso queira fazer a vara, precisa reduzir o consumo de amoras durante uma série de dias e guardar o remanescente numa cesta, até ter o suficiente em amoras para poder subsistir durante os cinco dias que prevê que irá durar o processo de produção da vara de madeira. Depois de planejar a ação, Robinson Crusoé decide empreendê-la, pelo que, antes, deverá, portanto, poupar uma parte da amoras que colhe à mão todos os dias, reduzindo o próprio consumo nessa quantidade. Evidentemente, isso supõe um inevitável sacrifício, que ele considera ser deveras compensador, tendo em conta a ansiada meta que pretende atingir. Desta forma, decide reduzir o consumo (ou seja, poupar) durante algumas semanas e acumular amoras de sobra numa cesta até alcançar a quantidade que estima ser suficiente para o sustentar enquanto produz a vara.
Este exemplo mostra que todo o processo de investimento em bens de capital exige uma poupança anterior, ou seja, a redução do consumo para níveis inferiores ao nível potencial.[13] Assim que tiver poupado amoras suficientes, Robinson, dedicará cinco dias a procurar o ramo do qual fará a vara de madeira, a arrancá-lo e a aperfeiçoá-lo. Como se alimentará durante os cinco dias que dura o processo de elaboração da vara que o força a manter-se distante da colheita diária de amoras? Comerá com moderação as amoras necessárias à sua manutenção, que tinha acumulado no cesto durante as semanas anteriores, passando um pouco de fome. Desta forma, se os cálculos de Crusoé estiverem corretos, decorridos os cinco dias terá uma vara à sua disposição (bem de capital), que representa uma etapa intermediária mais afastada no tempo (em cinco dias de poupança) dos processos de produção imediata de amoras usados até então por Robinson Crusoé. Depois de a vara estar construída, Robinson Crusoé poderá alcançar lugares que eram inacessíveis à mão e bater nos arbustos com força, multiplicando assim por dez a produção de amoras, o que lhe permitirá colher as amoras necessárias para sua manutenção em um décimo do dia. Assim, poderá dedicar o resto do tempo ao ócio ou à consecução de fins ulteriores que têm muito mais valor para ele (como construir uma cabana ou pensar em caçar animais para variar a alimentação e se vestir).
O processo de produção deste exemplo de Robinson Crusoé, como qualquer outro, é o resultado de um ato empresarial por meio do qual o ator nota que obtém benefícios, ou seja, que alcança fins de mais valor para si, empreendendo processos de ação que exigem um período de tempo mais longo (que incluem um número superior de etapas). Assim, os processos de ação ou produção dão origem a bens de capital, que não são mais do que os bens econômicos intermédiários num processo de ação cujo fim ainda não foi alcançado. O ator só estará disposto a sacrificar o consumo imediato (ou seja, a poupar) se considerar que dessa forma conseguirá atingir fins de valor superior (neste caso, uma produção dez vezes superior de amoras do que a que conseguiria se as colhesse à mão). Além disso, Robinson Crusoé deve tentar coordenar tão bem quanto possível o seu comportamento presente em relação ao previsível comportamento futuro. Assim, concretamente, deve evitar empreender processos de ação excessivamente longos tendo em conta as poupanças, uma vez que seria trágico que a meio do processo de elaboração de um bem de capital ficasse sem amoras (ou seja, consumisse o que tinha poupado) sem ter alcançado o fim a que se tinha proposto. Deverá também evitar poupar em excesso tendo em conta as necessidades de investimento que terá mais tarde, uma vez que dessa forma estaria sacrificando desnecessariamente o consumo imediato. É precisamente a estimativa subjetiva da preferência temporal o que permite a Robinson Crusoé poder coordenar ou ajustar adequadamente o comportamento presente em relação às necessidades e comportamentos futuros. O fato de a preferência temporal não ser absoluta lhe permite sacrificar parte do consumo durante algumas semanas com a esperança de ter a possibilidade de produzir a vara. O fato de a sua preferência temporal não ser nula, explica que só dedique o esforço a um bem de capital que pode conseguir num período de tempo limitado e graças a um sacrifício e a uma poupança durante um número não muito elevado de dias. Caso sua preferência temporal fosse nula, nada evitaria que Robinson Crusoé dedicasse todo o esforço para construir uma cabana (o que, por exemplo, lhe levaria no mínimo um mês), o que não poderia fazer sem antes ter poupado um grande número de amoras, posto que morreria de fome ou o projeto, totalmente desproporcionado em relação à poupança que seria capaz de fazer, teria de ser imediatamente interrompido, e não poderia ser terminado. De qualquer maneira, é importante que se compreenda que os recursos reais poupados (as amoras na cesta) são o que permite a Robinson Crusoé subsistir durante o período de tempo em que se dedica a elaborar o bem de capital e se mantém distante da colheita direta de amoras. E, não há dúvida de que Robinson Crusoé com a vara de madeira é muito mais produtivo na colheita de amoras do que se tivesse de as apanhar com as mãos, também ninguém duvida que o processo de produção das amoras com a utilização da vara é claramente mais prolongado em termos de tempo (inclui um número superior de etapas) do que o processo produtivo de colher amoras à mão. Os processos produtivos tendem a ser mais longos e duradouros (ou seja, a ser mais complexos e a incluir um número maior de etapas) como resultado da poupança e da atividade empresarial do ser humano. E quanto mais longos e duradouros se tornarem, mais produtivos tendem a ser.
Numa economia moderna, em que existem muitos agentes econômicos que desenvolvem diferentes funções simultaneamente, denominaremos capitalista o agente econômico cuja função consiste, precisamente, em poupar, ou seja, em consumir menos do que aquilo que cria ou produz, colocando ao dispor dos trabalhadores os recursos que necessitam para subsistir enquanto durar o processo produtivo que participarem (tal como Robinson Crusoé, que atuou como capitalista ao poupar amoras que lhe permitiram, mais tarde, se manter enquanto produzia a vara de madeira). Assim, ao poupar, o capitalista liberta recursos (bens de consumo) que podem ser usados para sustentar os trabalhadores que se dedicam às etapas produtivas mais distantes do consumo final, ou seja, à produção de bens de capital.
Ao contrário do que acontecia com Robinson Crusoé, a estrutura dos processos produtivos de uma economia moderna é extremamente complexa, e, em termos de tempo, muito prolongada. É constituída por uma multiplicidade de etapas, todas elas inter-relacionadas e divididas em múltiplos subprocessos que se desenvolvem nos inúmeros projetos de ação que são continuamente empreendidos pelos seres humanos.
Assim, por exemplo, pode considerar-se que o processo de produção de um automóvel é constituído por centenas, ou até milhares, de etapas produtivas que exigem um período de tempo muito prolongado (até de muitos anos), desde o momento em que se inicia o desenho do veículo (etapa mais distante do consumo final), passando pelas encomendas dos materiais necessários aos fornecedores, as diferentes linhas de montagem, as encomendas das diferentes peças do motor e de todos os acessórios, e assim sucessivamente, até chegar às etapas mais próximas do consumo, como podem ser as do transporte e distribuição para os concessionários, o desenvolvimento de campanhas de publicidade e a exposição e venda ao público. Desta forma, no entanto, quando visitamos a fábrica, e vemos um veículo a sair por minuto, não devemos nos iludir pensando que o processo de produção de cada automóvel dura um minuto. Pelo contrário, devemos estar cientes de que cada automóvel exigiu um processo de produção de vários anos, com um conjunto de várias etapas sucessivas, desde a concepção do modelo até à entrega ao orgulhoso proprietário como um bem de consumo. Por outro lado, há, nas sociedades modernas, uma tendência para que os seres humanos se especializem em diferentes etapas do processo produtivo. E existe uma divisão do trabalho cada vez maior (ou melhor, do conhecimento) tanto do ponto de vista horizontal como do vertical, que dá origem a constante divisão e subdivisão das etapas do processo de produção à medida que o conhecimento se alarga e aprofunda. Em cada uma dessas etapas empresas e agentes econômicos concretos tendem a se especializar. Além disso, o processo pode ser analisado não só diacronicamente, mas também sincronicamente. Em qualquer altura, cada uma das etapas convive com as restantes e, por isso, existem pessoas que se dedicam a projetar veículos (os que estarão disponíveis para o público no prazo de dez anos), e outras que, ao mesmo tempo, se dedicam a encomendar materiais aos fornecedores, outras à cadeia de montagem e outras, enfim, também ao mesmo tempo, já muito próximo do consumo final, ao campo comercial, promovendo a venda dos veículos já produzidos.[14]
Assim, é claro que, tal como a diferença entre o “rico” Robinson Crusoé com a vara e o Robinson Crusoé “pobre” sem tal ferramenta radicava no primeiro dispor de um bem de capital que tinha conseguido obter por meio de uma poupança prévia, a diferença essencial entre as sociedades ricas e as sociedades pobres não advém de as primeiras dedicarem mais esforço ao trabalho, nem tampouco de disporem de maiores conhecimentos tecnológicos, mas sim, basicamente, do fato de as nações ricas possuírem uma rede maior de bens de capital empresarialmente bem investidos, em forma de máquinas, ferramentas, computadores, edifícios, produtos semi-fabricados, etc., que se tornou possível graças à poupança prévia dos cidadãos. Ou, dito de outra forma, do fato de as sociedades comparativamente mais ricas o serem por terem mais tempo acumulado na forma de bens de capital, o que lhes permite estar temporalmente mais próximas da consecução de fins de um valor muito superior. Não há dúvida de que um trabalhador norte-americano ganha um salário muito superior ao de um trabalhador indiano, mas isso acontece basicamente porque o primeiro tem à sua disposição e utiliza um número e qualidade muito maior de bens de capital (tratores, computadores, máquinas, etc.) do que o segundo. Ou, por outras palavras, quanto mais longos são os processos produtivos, mais produtivos tendem a se constituir, como vimos. O trator moderno é muito mais produtivo do que o arado. No entanto, o trator é um bem de capital cuja produção exige um conjunto de etapas muito mais numeroso, complexo e prolongado do que o exigido pela produção de um arado romano.
Os bens de capital da complexíssima rede que constitui a estrutura produtiva real de uma economia moderna não são perpétuos, mas sempre transitórios, no sentido de que se gastam ou consomem fisicamente ao longo do processo produtivo ou se tornam obsoletos. Ou seja, o gasto de equipamento não é apenas físico, mas também tecnológico e econômico (obsolescência). Por isso, é preciso conservar ou manter os bens de capital (no caso de Robinson Crusoé, manter a sua vara e protegê-la do desgaste). Assim, é necessário reparar os bens de capital existentes e, o que é ainda mais importante, ir produzindo constantemente novos bens de capital que sejam capazes de substituir os antigos que forem sendo consumidos. Chama-sedepreciação ao desgaste a que são submetidos os bens de capital no processo produtivo, de forma que é necessário um volume mínimo de poupança para poder fazer frente ao processo, produzindo os bens necessários para substituir os já amortizados ou gastos. Só dessa forma pode se manter intacta a capacidade produtiva do ator. E caso deseje aumentar ainda mais o número de etapas, alargar os processos e torná-los mais produtivos, será preciso acumular poupança num valor superior até ao mínimo necessário para fazer frente à quota de amortização estrita, expressão contabilística da depreciação de bens de capital. A poupança só será possível ao diminuir o consumo em relação à produção efetuada, o que significa, para uma produção constante, a diminuição do consumo efetivo, e no caso de uma produção crescente, será possível poupar e acumular bens de capital, mantendo volumes relativamente constantes de consumo (embora seja certo que, também nesse caso, é necessário renunciar, como em toda a poupança, a volumes crescentes de consumo potencial que um produção cada vez mais elevada permitiria).
Do ponto de vista do tempo, em todo o processo produtivo, entendido como um conjunto sucessivo de etapas ou bens de capital, é possível distinguir as etapas que se encontram mais próximas do bem final de consumo e as que se encontram mais afastadas. Regra geral, podemos dizer que os bens de capital não são facilmente conversíveis e que, quanto mais próximos estão da etapa final de consumo, mas difícil é a conversão. Contudo, o fato de não serem facilmente conversíveis não significa que o ator não se encontre frequentemente na contingência de ter de modificar os objetivos da sua ação e, consequentemente, de rever e readaptar as etapas que já tiver terminado (ou seja, reconverter os próprios bens de capital na medida do possível). Em todo o caso, quando as circunstâncias se alteram, ou o ator muda de opinião e altera o fim da sua ação, os bens de capital que tiver elaborado até esse momento podem se tornar completamente inúteis ou apenas se tornarem passíveis de utilização depois de uma reconversão custosa. O ator podem também perceber uma forma de utilização dos bens, mas sentir que, caso soubesse antes, tais bens acabariam por ser necessários num processo de produção diferente, os teria construído de forma diferente. Por fim, muito raramente, o bem de capital está tão afastado do consumo, ou as circunstâncias são tais, que é perfeitamente utilizável tanto num projeto como noutro.
Nesse momento, fica clara a influência do passado sobre a ação atual. A ação, tal como a definimos, é sempre prospectiva, nunca retrospectiva. E os bens de capital são considerados como tal pelo ator em função da ação futura planejada, não em função da sua entidade material nem de antigos projetos de ação.[15] No entanto, não há dúvida de que o passado tem influência sobre a ação futura, visto que determina as circunstâncias de partida do presente. Os seres humanos cometem inúmeros erros empresariais quando se trata de conceber, empreender e terminar as suas ações, e, logo, partem para ações subsequentes de circunstâncias presentes que procurariam alterar se as tivessem conhecido de antemão. Porém, depois de os acontecimentos terem evoluído de certa forma, o ser humano sempre procura tirar o melhor partido possível das circunstâncias presentes para alcançar objetivos futuros. Além disso, é preciso ter em conta que, embora os bens de capital não sejam fáceis de converter, do ponto de vista institucional, os investidores são capazes de uma importante “mobilidade” graças a instituições jurídicas de direito de propriedade e de direito de contratos que regulam as diferentes formas de transferir esses bens. Assim, a estrutura produtiva (extremamente complexa e muito prolongada) permite uma constante mobilidade de investidores, o que é possível graças ao intercâmbio e à compra e venda de bens de capital no mercado.[16]
Estamos agora em condições de introduzir o conceito de capital, que é distinto, do ponto de vista econômico, do conceito de “bens de capital”. De fato, vamos definir “capital” como o valor a preço de mercado dos bens de capital, valor esse que é estimado pelos atores individuais que compram e vendem bens de capital num mercado livre.[17] Assim, verificamos que o capital é simplesmente um conceito abstrato ou um instrumento de cálculo econômico, ou seja, uma estimativa ou um juízo subjetivo sobre o valor de mercado que os empresários creem que os bens de capital venham a ter e em função do qual os compram e vendem constantemente, tentando alcançar lucros empresariais em cada transação. Daí que numa economia socialista, onde não existem mercados livres nem preços de mercado, embora possamos considerar que há bens de capital, não podemos pensar que existe capital: este exige sempre um mercado e preços livremente determinados pelos agentes econômicos que nele intervêm. Não fossem os preços de mercado e as estimativas subjetivas do valor de capital dos bens que integram as etapas intermediárias dos processos produtivos, seria impossível, numa sociedade moderna, estimar ou calcular[18] se o valor final dos bens que pretendemos produzir juntamente com os bens de capital são compensados ou não no custo inerente aos processos produtivos, bem como dirigir coordenadamente os esforços dos seres humanos que intervêm nos diferentes processos de ação.
Já tentamos demonstrar noutras partes do texto[19] que toda a coação sistemática sobre o livre exercício da função empresarial impede que os seres humanos descubram a informação de que necessitam para as ações que pretendem alcançar. Impede-os ainda de, espontaneamente, transmitir a dita informação e coordenar os comportamentos em função das necessidades dos demais. Isto significa que a intervenção coerciva, própria da essência do socialismo, do intervencionismo do estado na Economia, ou da concessão de privilégios a determinados grupos contra os princípios tradicionais do Direito impossibilita, em maior ou menor medida, o exercício da atividade empresarial e, desta forma, a ação coordenada dos seres humanos, o que tende a gerar desajustes sistemáticos na sociedade. A descoordenação sistemática pode ser intratemporal ou, tal como acontece com as ações humanas relativas às diferentes etapas dos processos de produção ou bens de capital, intertemporal, de forma que os seres humanos que não podem atuar livremente tendem a não ajustar os comportamentos presentes aos comportamentos e necessidades futuros.
Como vimos no processo de produção isolada de Robinson Crusoé, é essencial haver coordenação intertemporal em todas as relações humanas que envolvam tempo e, sobretudo, naquelas que se referem aos bens de capital; daí ser muito importante permitir o livro exercício da função empresarial nesse campo. Portanto, os empresários estão sempre a descobrir oportunidades de lucros no mercado, acreditando ver novas combinações de bens de capital que se encontrem subvalorizadas em relação à estimativa de preço de mercado que acreditam poder vir a obter no futuro pelos bens de consumo que produzam. Trata-se, em síntese, de um processo de constante “recombinação”, de compra e venda e de produção de novos tipos de bens de capital, que gera uma estrutura produtiva dinâmica e muito complexa que sempre tende a se expandir horizontal e verticalmente.[20] Sem liberdade para exercer a função empresarial, nem mercados livres para os bens de capital e moeda, não é possível efetuar o necessário cálculo econômico sobre a extensão horizontal e vertical das diferentes etapas do processo produtivo, o que dá origem a um comportamento generalizadamente descoordenado que provoca desajustes na sociedade e impede o desenvolvimento harmonioso. Nos processos empresariais de coordenação intertemporal, há um importante preço de mercado que tem um papel fundamental, a saber, o dos bens presentes em relação aos bens futuros, mais usualmente designado de taxa de juro, que regula a relação entre o consumo, a poupança e o investimento nas sociedades modernas e que iremos analisar pormenorizadamente na seção seguinte.
A taxa de juro
Como já vimos, o ser humano, perante as mesmas circunstâncias, dá mais valor aos bens presentes do que aos bens futuros. No entanto, a intensidade relativa dessa diferença de valoração subjetiva varia muito de pessoa para pessoa, e pode mesmo variar muito ao longo da vida de uma mesma pessoa em função da mudança de circunstâncias. Assim, há pessoas com alta preferência temporal, que dão muito mais valor ao presente do que ao futuro e, portanto, só estão dispostas a sacrificar a consecução imediata dos seus fins se pensam ou acreditam que podem obter valores subjetivos muito elevados no futuro. Outras pessoas têm uma preferência temporal mais reduzida e, embora continuem a dar mais valor aos bens presentes do que aos bens futuros, estão mais predispostas a renunciar à consecução imediata dos seus objetivos em troca de valores não muito mais elevados amanhã. Essa diferença de intensidade psíquica da valoração subjetiva dos bens presentes em relação aos bens futuros, existente na escala de valores de cada ser humano ator, faz com que, num mercado em que existem muitos agentes econômicos, cada um dotado de uma preferência temporal distinta e variável, surjam múltiplas oportunidades para efetuar intercâmbios mutuamente benéficos.
Assim, as pessoas com preferência baixa estarão dispostas a renunciar a bens presentes em troca de bens futuros com um valor não muito mais elevado e estarão dispostas a efetuar trocas nas quais entregam os bens presentes a outras que tenham uma preferência temporal mais alta e, portanto, valorem mais intensamente o presente do que o futuro. O próprio ímpeto e a criatividade da função empresarial leva a que, na sociedade, tenda a se determinar um preço de mercado dos bens presentes em relação aos bens futuros. Chamaremos taxa de juro ao preço de mercado dos bens presentes em função dos bens futuros. Uma vez que, no mercado, muitas ações são levadas a cabo utilizando a moeda como o meio de troca aceito de forma generalizada, a taxa de juro é o preço a pagar para obter um número determinado de unidades monetárias imediatamente, e reflete o número de unidades que deverão ser devolvidas findo o prazo ou período tempo pré-estabelecido. Geralmente, e por razões consuetudinárias, esse preço é estabelecido em termos de percentagem anual. Assim, por exemplo, uma taxa de juro de 9% indica que as transações no mercado são efetuadas de tal maneira que é possível obter hoje 100 unidades monetárias de imediato (bem presente) em troca de do compromisso de entregar 109 unidades no prazo de um ano (bem futuro).[21]
Assim, a taxa de juro é o preço determinado num mercado em que os fornecedores ou vendedores de bens presentes são, precisamente, os poupadores, ou seja, todos os que estiverem relativamente mais dispostos a renunciar ao consumo imediato em troca de um valor mais elevado de bens no futuro. Os compradores de bens presentes são aqueles que consomem bens e serviços imediatos (sejam trabalhadores, proprietários de recursos naturais, de bens de capital, ou qualquer dessas combinações). De fato, o mercado de bens presentes e de bens futuros, no qual se determina a taxa de juro, é constituído por toda a estrutura produtiva da sociedade, em que os poupadores ou capitalistas renunciam ao consumo imediato e oferecem bens presentes e bens futuros aos proprietários dos fatores originais de produção (trabalhadores e proprietários dos recursos naturais) e aos proprietários dos bens de capital, em troca da aquisição da plena propriedade de um valor pretensamente maior de bens de consumo depois de a produção terminar no futuro. Eliminando o efeito positivo (ou negativo) dos lucros (ou perdas) empresariais puros, essa diferença de valor tende a coincidir precisamente com a taxa de juro.
Do ponto de vista jurídico, as trocas entre bens presentes e bens futuros podem tomar várias formas. Assim, numa cooperativa, são os próprios trabalhadores que atuam, simultaneamente, como trabalhadores e capitalistas, esperando que todo o processo produtivo termine para adquirir a propriedade do bem final e ficar com o valor integral. No entanto, na maior parte das ocasiões, os trabalhadores não estão dispostos a esperar que o processo produtivo termine, nem a assumir os riscos e as incertezas, pelo que, em vez de constituir cooperativas, preferem vender os serviços de sua força produtiva em troca de bens presentes imediatos. Para isso, fazem um contrato (denominado “contrato de trabalho”) em função do qual aquele que lhes adianta os bens presentes (o capitalista, poupador ou fornecedor de bens presentes) recebe a propriedade total do bem final depois deste ser produzido. São, também, possíveis combinações entre os dois tipos distintos de contrato. Aqui não é o lugar adequado para analisar as diferentes formas jurídicas nas quais, numa sociedade moderna, ocorre a troca entre bens presentes e bens futuros. Além disso, estas não afetam o argumento essencial do presente livro, embora sejam, indubitavelmente, muito interessantes do ponto de vista teórico e prático.
É importante realçar que o denominado “mercado de créditos”, no qual é possível obter empréstimos pagando a correspondente taxa de juro, é apenas uma parte relativamente pouco importante do mercado geral em que se trocam bens presentes por bens futuros. Como já vimos, é constituído pela estrutura produtiva da sociedade em que os proprietários dos fatores originais de produção e dos bens de capital atuam como consumidores de bens presentes e os poupadores como fornecedores. Assim, o mercado de empréstimo a curto,[22] médio e longo prazo é não mais do que um subconjunto muito mais alargado desse mercado em que se trocam bens presentes por bens futuros e cujo papel é subsidiário e dependente, embora, para o público em geral, o mercado de créditos seja mais visível e evidente. De fato, seria perfeitamente possível conceber uma sociedade em que não existisse um mercado de créditos e onde, ainda assim, todos os agentes econômicos investissem diretamente as poupanças na produção (por meio de autofinanciamento efetuado por meio das sociedades pessoais, anônimas ou cooperativas). Embora nesse caso não se estabelecesse nenhuma taxa de juro no inexistente mercado de créditos, continuaria a haver a formação de uma taxa de juro que seria determinada pela proporção entre a troca de bens presentes por bens futuros nas diferentes etapas dos processos produtivos. Em tais circunstâncias, a taxa de juro seria determinada pela “taxa de lucro”, que tenderia a ser igual, por unidade de valor e período de tempo, aos lucros líquidos de cada etapa do processo produtivo. Apesar desta taxa de juro não ser diretamente observável no mercado, e embora inclua componentes alheios em cada empresa e processo produtivo específico (como a parte dos lucros ou das perdas empresariais puros e o prêmio de risco), o lucro gerado em cada etapa de todo o sistema econômico tenderia a corresponder à taxa de juro, em razão do típico processo empresarial de equalização dos lucros contábeis ao longo das diferentes etapas dos processos produtivos e assumindo que não se produziriam mais mudanças e que se esgotariam todas as possibilidades de criatividade e ganhos empresariais.[23]
No mundo exterior, os únicos rendimentos diretamente observáveis são aquilo que poderíamos denominar de taxa de juro bruta ou de mercado (que coincide com a taxa de juro do mercado de crédito) e os lucros contábeis brutos da atividade produtiva. O primeiro é constituído pela taxa de juro tal como a definimos (por vezes também denominada taxa de juro original ou natural), mais o prêmio de risco correspondente à operação em questão, mais ou menos um prêmio pela inflação ou deflação esperada, ou seja, pela diminuição ou aumento esperado do poder de compra da unidade monetária em que são efetuadas e calculadas as transações entre bens presentes e bens futuros.
Em segundo lugar, são também diretamente observáveis no mercado os lucros contábeis brutos obtidos na atividade produtiva específica de cada etapa do processo de produção. Estes lucros tendem a coincidir com a taxa de juro bruta ou de mercado, tal como a definimos no parágrafo anterior, mais ou menos os lucros ou perdas empresariais puros.[24] Como em qualquer outro mercado, há uma tendência para que os lucros e as perdas empresariais desapareçam, como resultado da concorrência entre os empresários. Assim, existe uma tendência para que os lucros contábeis de cada atividade produtiva por período de tempo tendam a coincidir com a taxa de juro bruta de mercado. De fato, pode se considerar que, nos lucros contábeis registados em cada empresa num exercício econômico, existe uma componente implícita de taxa de juro, em relação aos recursos poupados ou investidos pelos capitalistas proprietários da empresa. Esta componente implícita, juntamente com a componente de risco e os lucros ou perdas empresariais resultantes da atividade puramente empresarial do negócio, dá lugar a lucros contábeis. A partir deste ponto de vista, é possível que uma empresa, mesmo que registe lucros contábeis, tenha, na verdade, sofrido perdas empresarias, caso os lucros contábeis não tenham sido suficientes para superarem a componente implícita da taxa de juro bruta de mercado aplicada sobre os recursos investidos pelos capitalistas no negócio durante o exercício econômico.
Em todo o caso, e independente de como se manifestem, o mais importante é ter em conta que os juros, como preço de mercado ou taxa social de preferência social, têm um papel fundamental na coordenação do comportamento dos consumidores, poupadores e produtores numa sociedade moderna. Assim como era essencial que Robinson Crusoé atuasse de forma coordenada e não dedicasse à consecução de fins futuros um esforço desproporcionado em relação à sua disponibilidade de bens presentes poupados, o problema dacoordenação intertemporal continuamente se apresenta em nossas sociedades.
Numa economia moderna, o equilíbrio entre comportamentos presentes e futuros se torna possível graças à atividade empresarial no mercado em que se trocam bens presentes por bens futuros e em que os juros são estabelecidos como preço de mercado de uns em função do outros. Desta forma, quanto maior for a poupança, ou seja, quanto mais elevado for o número de bens oferecidos ou vendidos, dadas as mesmas circunstâncias, mais baixo será o preço no que respeita a bens futuros e, logo, mais reduzida será a taxa de juro de mercado. Isto mostrará aos empresários que existe uma maior disponibilidade de bens presentes, o que permite aumentar a duração e a complexidade das etapas do processo produtivo, fazendo com que tais etapas sejam mais produtivas. Ao contrário, quanto menor for a poupança, ou seja, em igualdade de circunstâncias, quanto menos estejam os agentes econômicos dispostos a renunciar ao consumo imediato de bens presentes, mais alta será a taxa de juro de mercado. Assim, uma taxa de juro de mercado alta indica que a poupança é relativamente escassa, o que, por sua vez, é um sinal de que os empresários deverão imprescindivelmente ter em conta, para não alongar indevidamente as diferentes etapas do processo produtivo e gerar descoordenações ou desajustes muito perigosos para o desenvolvimento sustentável,[25]sadio e harmonioso da sociedade. Em suma, a taxa de juro mostra aos empresários quais são as novas etapas de produção ou projetos de investimento que podem e devem empreender e quais as que devem evitar, para manterem, tanto quanto for humanamente possível, a coordenação dos comportamentos de poupadores, consumidores e investidores, e evitarem que as diferentes etapas produtivas fiquem demasiado curtas ou se alonguem em demasia.
Realce-se, por fim, que a taxa de juro de mercado tende a se harmonizar ao longo de todo o mercado de tempo ou estrutura produtiva da sociedade, não apenas intratemporalmente, ou seja, em diferentes áreas do mercado, mas também intertemporalmente, ou seja, de algumas etapas produtivas mais próximas do consumo a outras mais afastadas. De fato, se a taxa de juro que é possível obter por meio do adiantamento de bens em algumas etapas (por exemplo, as mais próximas do consumo) for superior à que se pode obter noutras (por exemplo, as mais afastadas do consumo), então a própria força empresarial movida pela vontade de obter lucros levará ao desinvestimento nas etapas em que a taxa de juro ou taxa de lucro for relativamente mais baixa, e ao investimento naquelas em que a taxa de juro ou a taxa de lucro esperado for mais alta.
A estrutura produtiva
Embora seja quase impossível representar graficamente a complexíssima estrutura de etapas produtivas que constituem a economia moderna, para tornar mais fácil a compreensão dos argumentos teóricos que desenvolveremos adiante, vamos ilustrá-la de forma simplificada no Gráfico V-1.
Além disso, apesar de a representação gráfica proposta não ser estritamente necessária para explicar os argumentos teóricos essenciais e, de fato, autores da estatura de Ludwig von Mises nunca a tenham utilizado na apresentação da teoria do capital e dos ciclos econômicos,[26] existe toda uma tradição de autores teóricos que consideraram conveniente, para melhor compreensão, a utilização de ilustrações gráficas simplificadas das etapas dos processos produtivos reais tal como a que apresentamos no Gráfico V-1.[27]
As etapas da estrutura produtiva que apresentamos no Gráfico V-1 não representam a produção de bens de capital e de bens de consumo em termos físicos, mas sim os valores em unidades monetárias. À esquerda do gráfico indicamos que assumimos que a estrutura produtiva é constituída por cinco etapas, cujo “número de ordem”, seguindo a contribuição clássica de Menger, aumenta em conformidade com o aumento da distância em relação à etapa final de consumo. Assim, a primeira etapa é constituída pelos “bens econômicos de primeira ordem” ou bens de consumo que, no nosso gráfico, se trocam por um valor de cem unidades monetárias. A segunda etapa é constituída pelos “bens econômicos de segunda ordem” ou bens de capital mais próximos do consumo. E assim sucessivamente com as etapas terceira, quarta e quinta, que é a mais afastada do consumo. Para simplificar, consideramos que cada etapa exige um período de duração de um ano, pelo que o processo produtivo do nosso Gráfico V-1 duraria cinco anos, desde o início na quinta etapa (a mais afastada do consumo) até chegar aos bens finais de consumo na primeira etapa. Esta representação esquemática pode não ser considerada apenas do ponto de vista diacrônico, como o conjunto de etapas produtivas pelas quais é preciso passar até chegar ao bem final de consumo cinco anos depois, mas tambémsincronicamente, como uma “fotografia” das etapas que, simultaneamente, se produzem num mesmo exercício econômico. Como assinala Böhm-Bawerk, essa segunda interpretação do gráfico como uma representação sincronizada do processo produtivo tem uma natureza muito semelhante às pirâmides etárias elaboradas com os dados dos censos à população e que são simplesmente cortes transversais da população real classificada por idades, que também podem ser interpretados diacronicamente como a evolução do número de pessoas que vão permanecendo vivas em cada idade (tabela da mortalidade).[28]
As setas do nosso esquema representam os fluxos de rendimento monetário que em cada etapa do processo produtivo chegam aos proprietários dos fatores de produção originais (trabalho e recursos naturais) na forma de salários e rendas e aos proprietários de bens de capital (capitalistas ou poupadores), na forma de juros (ou lucro contábil). De fato, começando pela primeira etapa no nosso exemplo, os consumidores gastam cem unidades monetárias (u.m.) na aquisição de bens de consumo, e esse dinheiro se torna propriedade dos capitalistas proprietários das indústrias de bens de consumo. Um ano antes, estes capitalistas tinham adiantado o pagamento, com base na poupança, de 80 u.m. correspondentes aos serviços dos bens de capital fixo e aos bens de capital circulante produzidos na etapa anterior (a “segunda”) do processo produtivo por outros capitalistas. Tinham ainda pago dez u.m. aos proprietários dos fatores originais de produção (trabalho e recursos naturais) contratados por eles diretamente na última etapa de produção de bens de consumo (esse pagamento aos proprietários dos fatores originais é representado no gráfico pela seta vertical que começa à direita da última etapa de cem unidades monetárias ao correspondente box de dez unidades monetárias no canto superior direito). Uma vez que os capitalistas da etapa de bens de consumo adiantaram oitenta unidades monetárias aos proprietários dos bens de capital da segunda etapa e dez unidades monetárias aos trabalhadores e proprietários dos recursos naturais, ou seja, um total de noventa unidades monetárias, depois de decorrido o período de um ano e da venda dos bens de consumo por cem unidades, obtêm um lucro contábil ou juro decorrente de terem adiantado um ano antes noventa unidades monetárias com base na poupança. Tal diferença entre o total adiantado, noventa unidades monetárias (que podiam ter consumido, mas pouparam e dedicaram ao investimento), e o que recebem decorrido um ano, cem unidades monetárias, é igual a uma taxa de juro aproximada de 11% ao ano (10:90 = 0,11). Contabilmente, esse montante aparece como o lucro da conta de perdas e ganhos da atividade empresarial dos capitalistas da etapa de bens de consumo (representado pelo box do canto inferior direito do Gráfico V-1).
Podemos seguir o mesmo raciocínio no que diz respeito às etapas restantes. Assim, por exemplo, os capitalistas proprietários dos bens de produção da terceira etapa avançaram, no início do período, quarenta unidades monetárias para pagamento dos bens de capital produzidos na quarta etapa e mais catorze unidades monetárias aos proprietários dos fatores originais de produção (trabalho e recursos naturais). Em troca dessas cinquenta e quatro unidades monetárias, os capitalistas se tornam proprietários do produto, que, depois de acabado, vendem por sessenta unidades monetárias a capitalistas da segunda etapa, obtendo um diferencial de seis unidades monetárias. Este é o lucro contábil ou juro, também próximo dos 11%. E o padrão se repete em todas as etapas.
A parte superior do gráfico apresenta os montantes adiantados pelos capitalistas em cada etapa aos proprietários do fatores originais de produção (trabalhadores e proprietários dos recursos naturais) e que perfazem um total de setenta unidades monetárias (18 + 16 + 14 + 12 + 10 = 70 u.m.). Numa coluna do lado direito, apresentam-se os montantes monetários dos lucros contábeis obtidos em cada etapa e que refletem a diferença contábil entre as unidades monetárias adiantadas pelos capitalistas de cada etapa e as que recebem pela venda do produto na etapa seguinte. Como já sabemos, esse lucro contábil tende a coincidir com o juro derivado do montante poupado pelos capitalistas de cada etapa e adiantado tantos aos capitalistas das etapas anteriores como aos proprietários dos fatores originais de produção. O total das diferenças contábeis entre receitas e despesas de cada etapa perfaz trinta unidades monetárias, que, somadas às setenta recebidas pelos proprietários dos fatores originais de produção, totalizam cem unidades monetárias de rendimento líquido, o que coincide exatamente com o montante gasto em bens de consumo final durante o período em questão.
Considerações complementares
Devemos agora fazer uma série de considerações complementares importantes sobre a presente representação esquemática das etapas do processo produtivo:
1. A seleção arbitrária do período de tempo de cada etapa. — Em primeiro lugar, convém assinalar que a seleção de um período de duração de um ano para cada etapa é completamente arbitrária. Podia ter sido escolhido qualquer outro período de duração. A opção por um ano foi por ser esse o exercício econômico mais comummente utilizado do ponto de vista contábil e empresarial, o que facilita a compreensão do esquema ilustrativo de etapas produtivas que propusemos.
2. A não utilização do conceito errôneo de “período médio de produção”. — Em segundo lugar, devemos notar que o fato de o processo produtivo do nosso exemplo ter uma duração de cinco anos também é completamente arbitrário. Os processos produtivos modernos são muito complexos, variando muito de uns setores e empresas para outros quanto ao número de etapas e à duração. Em todo o caso, não é necessário nem faz sentido que nos refiramos a um “período médio de produção”, uma vez que a duração a priori de um processo produtivo dependerá do próprio processo concreto. Como já sabemos, os bens de capital são não mais do que etapas intermediárias do processo de produção iniciado por um empresário. Subjetivamente, um processo de produção tem sempre um princípio, o momento em que pela primeira vez o ator percebe que um determinado fim vale a pena, e um conjunto específico de etapas intermediárias que são imaginadasa priori e depois tentadas, terminando conforme a realização. Por isso, a presente análise não utiliza o conceito de “período médio de produção” e, dessa forma, é imune às críticas de que o conceito já foi alvo.[29] De fato, todos os períodos de produção têm uma origem determinada e não podem remontar-se indefinidamente no tempo. Pelo contrário, cessam precisamente no momento em que determinado empresário assume a consecução de um fim que constitui a imaginada etapa final do processo.[30] Assim, a primeira etapa de produção começa exatamente no momento em que o empresário concebe a etapa final do processo (em forma de bem de consumo ou bem de capital). Para determinar o início desta etapa é completamente irrelevante que sejam utilizados bens de capital ou fatores de produção anteriormente produzidos, e que ninguém ainda havia imaginado acabar por utilizar no processo produtivo em questão. Além disso, não é necessário remontar indefinidamente no tempo à concepção do conjunto de etapas do processo produtivo, uma vez que todos os bens de capital que tenham sido produzidos, mas que não estão sendo utilizados em nenhum intervalo de tempo para um fim concreto, se convertem, em última instância, em mais um recurso “original”, por assim dizer, semelhante, nesse particular, aos demaiss recursos da natureza que geram rendimento, mas que são considerados pelo ator como um fator de partida do próprio curso de ação.[31] Em suma, todos os processos de produção são sempre prospectivos, têm um início determinado e um fim previsto, e a duração varia de acordo com o processo de produção particular, nunca infinita ou indeterminada. Assim, o cálculo retrospectivo de pretensos e fantasmagóricos períodos médios de produção não faz qualquer sentido.
3. Bens de capital fixo e bens de capital circulante. — Outra observação interessante em relação à representação das etapas produtivas que apresentamos relaciona-se com o fato de incluir não só os chamados bens de capital fixo, mas também os bens de capital circulante e os bens de consumo duradouro. Do ponto de vista prospectivo do ser humano ator, a distinção entre bens de capital fixo e bens de capital circulante é irrelevante, uma vez que se baseia, em grande medida, nas características físicas dos bens em questão e, sobretudo, em saber se são considerados já “terminados” ou não. De fato, considera-se que quando participam no processo produtivo, os bens de capital fixo já estão “terminados”, enquanto os bens de capital circulante estão semi-elaborados ou num processo intermediário da produção. No entanto, segundo a concepção subjetivista do processo de produção dirigido ao consumo, tanto os bens de capital fixo como os bens de capital circulante são etapas intermediárias de um processo de ação que só termina quando o bem de consumo final satisfaz o desejo dos consumidores, pelo que, do ponto de vista econômico, não faz sentido distinguir entre uns e outros.
O mesmo pode se dizer em relação aos “bens inventariados” ou estoques de bens intermédios mantidos em armazém em cada uma das etapas de produção. Estes estoques, considerados parte do capital circulante, são um dos componentes mais importantes do valor de cada etapa do processo de produção. Além disso, está demonstrado que, à medida que a economia se desenvolve e avança, estes estoques adquirem uma maior importância ao permitirem que as diferentes empresas minimizem os riscos sempre latentes dos períodos de escassez ou dos efeitos de engarrafamento inesperados que dilatam os períodos de entrega, e ao fazerem com que seja possível que os clientes de todos os níveis (não só no nível do consumo, mas também no dos bens intermediários) disponham de uma variedade crescente de produtos que possam escolher e adquirir imediatamente. Por isso, uma das manifestações do alargamento dos processos produtivos consiste, precisamente, no aumento constante dos inventários ou estoques de bens intermediários.
4. O papel dos bens de consumo duradouro. — Os bens de consumo duradouro permitem a satisfação de necessidades humanas durante um período muito prolongado. Por isso, devemos considerar que ocupam simultaneamente diversos lugares: um na etapa final de consumo e os outros em várias das etapas anteriores, de acordo com a duração. De qualquer forma, para nossos objetivos é irrelevante que seja o próprio consumidor quem tenha de esperar durante um número determinado de anos ou etapas até que possa tirar proveito dos últimos serviços que o bem de consumo duradouro seja capaz de proporcionar. Só é considerado que nos encontramos na última etapa do gráfico, a etapa correspondente ao consumo, quando é possível tirar proveito direto dos referidos serviços. Os anos em que o proprietário trata e mantém o bem de consumo duradouro para que este continue a lhe fornecer os serviços de consumo no futuro corresponde às etapas que aparecem acima — a segunda, a terceira, a quarta e assim sucessivamente — e que estão cada vez mais afastadas do consumo.[32] Desta forma, uma das manifestações do alargamento dos processos de produção e do aumento do número das etapas consiste, precisamente, na produção de um número mais elevado de bens de consumo duradouro de qualidade e duração cada vez maior.[33]
5. A tendência para a harmonização da taxa de lucro contábil ou juro de cada etapa. — Outro aspecto essencial em que devemos insistir agora é que existe no mercado uma tendência, movida pela força empresarial, para a harmonização da taxa de lucro de todas as atividades econômicas. Isto acontece não apenas horizontalmente, dentro de cada etapa de produção, mas também verticalmente, ou seja, entre etapas. De fato, quando existem disparidades nos lucros, os empresários irão dedicar seus esforços, capacidade criativa e investimento às atividades em que seja possível obter lucros relativos mais elevados, e deixar de se dedicar àquelas em que os lucros sejam mais reduzidos. O que interessa agora realçar é que, no nosso exemplo do Gráfico V-1, a taxa de lucro contábil, ou diferença relativa entre os ganhos e os gastos, em cada uma das etapas é a mesma: aproximadamente 11% ao ano. Se assim não fosse, ou seja, caso em alguma das etapas a taxa de lucro contábil ou juro fosse mais elevada, dar-se-ia um desinvestimento e uma retirada dos recursos produtivos das etapas que tivessem tido uma taxa de lucro menor, e um redirecionamento para aquelas que tivessem um taxa de lucro contábil mais elevada. Este redirecionamento teria lugar até que a maior procura de bens de capital e de fatores de produção originais por parte da etapa receptora resultasse num aumento dos custos ou gastos nesses componentes, e a maior afluência de bens finais da etapa em questão tendesse a reduzir os preços, até que o diferencial entre receitas e custos se reduzisse, dando lugar a uma taxa de lucro igual à existente nas outras etapas produtivas. Esse raciocínio microeconômico é um elemento essencial para entender as modificações de tamanho e de duração das etapas de produção que vamos analisar mais adiante.
6. O investimento e a poupança em termos brutos e líquidos. — Apesar de, no nosso exemplo, a totalidade de rendimento líquido recebido pelos proprietários dos fatores de produção originais e pelos capitalistas na forma de lucros ou juros, ou seja, 100 unidades monetárias, coincidir exatamente com o montante que se gasta durante o período em bens de consumo (pelo que a poupança líquida é nula), existe, um significativo volume bruto de poupança e de investimento. De fato, a poupança e o investimento são apresentados, em termos brutos, no Quadro V-1, que, no lado esquerdo, indica, para cada uma das etapas, a oferta de bens presentes feita pelos poupadores em troca de bens futuros. No lado direito, encontra-se a correspondente procura de bens presentes efetuada pelos fornecedores de bens futuros, basicamente os proprietários dos fatores originais de produção (trabalho e recursos naturais) e os capitalistas das etapas anteriores. No Quadro V-1, podemos observar que a poupança, ou oferta de bens presentes, é de 270 unidades monetárias — poupança bruta global efetuada no sistema econômico e que é 2,7 vezes superior ao montante gasto anualmente em bens finais de consumo. Esta poupança bruta é idêntica ao investimento bruto do exercício em forma de gastos efetuados pelos capitalistas em recursos naturais, serviços do fator trabalho e bens de capital procedentes de etapas anteriores do processo produtivo.[34]
7. Rendimento bruto e rendimento líquido do exercício. — Podemos considerar que a representação esquemática das diferentes etapas do processo produtivo que expusemos no Gráfico V-1 apresenta quer o movimento dos bens de capital, quer o movimento da moeda. De fato, os bens de capital “movem-se para baixo”, ou seja, das etapas mais afastadas do consumo até às mais próximas e as unidades monetárias se move na direção oposta. Ou seja, as unidades monetárias são usadas em primeiro lugar para pagar os bens finais de consumo e, daí, vão subindo na escala de etapas de produção até alcançar as que estão mais afastadas do consumo. Assim, o rendimento monetário bruto do período é igual à soma de todas as transações em termos de unidades monetárias ocorridas de baixo para cima nesse período e cujos detalhes podem ser observados no Quadro V-2.
Neste quadro, podemos observar que o rendimento bruto durante o período é de 370 unidades monetárias, das quais 100 correspondem ao rendimento líquido, que é gasto integralmente em bens de consumo final, e 279 à oferta total de bens presentes ou poupança, que coincide com a demanda bruta total de bens presentes durante o período. A proporção existente entre o rendimento bruto e a rendimento líquido do período é de que aquela é 3,7 vezes maior do que esta, de acordo com os cálculos que realizamos no Quadro V-2. Ou seja, existe uma relação entre a quantidade de unidades monetárias gastas em bens de consumo e a quantidade muito superior que se gasta em bens de capital, que é representada, precisamente, pela proporção existente entre a área descoberta correspondente à etapa final de bens de consumo e a área coberta correspondente às etapas apresentadas no Gráfico V-1 (incluindo a parte superior representativa da rendimento monetário líquido dos fatores de produção). Assim, é fato inquestionável que a quantidade de moeda que se gasta em bens de produção durante qualquer período de tempo é, de longe, muito superior à quantidade de moeda que se gasta durante esse mesmo período em bens e serviços de consumo. E é curioso observar que até mentes brilhantes como a de Adam Smith erraram de modo lamentável na apreciação desse fato econômico fundamental. De fato, para Adam Smith: “the value of the goods circulated between the different dealers, never can exceed the value of those circulated between the dealers and consumers; whatever is bought by the dealers, being ultimately destined to be sold to the consumers.”[35]
Crítica dos indicadores utilizados pela Contabilidade Nacional
O valor do rendimento bruto, tal como a definimos e calculamos, bem como a distribuição entre as diferentes etapas do processo produtivo, é de capital importância para a compreensão adequada do processo econômico que ocorre na sociedade. De fato, a estrutura de etapas de bens de capital e o valor em unidades monetárias não é uma medida que, depois de obtida, possa ser mantida de forma automática e indefinida independentemente das decisões humanas dos empresários, que, deliberada e continuadamente, passam por aumentar, manter ou reduzir as etapas de produção iniciadas no passado. Ou seja, a manutenção de uma determinada estrutura de etapas de produção ou sua alteração, por estreitamento ou alargamento depende única e exclusivamente da decisão subjetiva dos empresários de cada etapa sobre ser benéfico reinvestir a mesma proporção de rendimentos monetários que vinham recebendo ou se, pelo contrário, acreditar ser mais benéfico modificar tal proporção, aumentando-a ou diminuindo-a. Nas palavras de Hayek:
The money stream which the entrepreneur representing any stage of production receives at any given moment is always composed of net income which he may use for consumption without disturbing the existing method of production, and of parts which he must continuously re-invest. But it depends entirely upon him whether he re-distributes his total money receipts in the same proportions as before. And the main factor influencing his decisions will be the magnitude of the profits he hopes to derive from the production of his particular intermediate product.[36]
Não existe, portanto, qualquer lei natural que obrigue os empresários a investirem o rendimento na mesma proporção em que investiram os bens de capital. Essa, proporção dependerá das circunstâncias específicas de cada momento e, em particular, das expectativas quanto aos lucros que esperam obter em cada etapa do processo de produção. Isto significa que, do ponto de vista analítico, é muito importante o enfoque na evolução das quantidades brutas de rendimento que o diagrama apresenta, e não apenas, como é habitual, no valor líquido. Assim, verificamos que mesmo com uma poupança líquida igual a zero, é mantida uma estrutura de produção com poupança e investimento brutos muito dispendiosos, muitas vezes superior até ao que se gasta em bens e serviços de consumo durante cada período produtivo. Desta forma, o verdadeiramente importante é o estudo da poupança e do investimento bruto, ou seja, do valor agregado, em termos monetários, das etapas de bens intermédios anteriores ao consumo final, um montante que se mantém oculto caso nos centremos exclusivamente no estudo da evolução dos indicadores contábeis em termos líquidos.
É por isso que devemos ser especialmente críticos dos indicadores tradicionais da contabilidade nacional. Assim, por exemplo, a definição tradicional de “Produto Nacional Bruto” (PNB), apesar de conter a palavra “bruto”, não reflete de forma alguma o verdadeiro rendimento bruto que é gasto ao longo do exercício em toda a estrutura produtiva. Por um lado, os números do PNB escondem a existência de diferentes etapas no processo produtivo e, por outro, o que é ainda mais grave e significativo, o Produto Nacional Bruto, apesar de ser classificado como “bruto”, não reflete o gasto bruto monetário total de todas as etapas ou setores produtivos da economia, uma vez que no cálculo só é levada em conta a produção de bens e serviços entregues aos usuários finais. De fato, ao tomar por base um estrito critério contábil de valor agregado alheio às realidades fundamentais da Economia, adiciona apenas o valor dos bens e serviços de consumo e dos bens de capital finais que são terminados durante o exercício, sem incluir os demais produtos intermediários que fazem parte das etapas do processo produtivo e que passam de uma etapa a outra ao longo do exercício econômico.[37] Assim, somente uma pequena proporção do total de bens de capital se encontra incluída nos valores do Produto Nacional Bruto. De fato, o PNB inclui o valor das vendas de bens de capital fixo e duradouro, como os imóveis os veículos industriais, o maquinário, a ferramentas, os computadores, etc. que são terminados e vendidos aos usuários finais durante o exercício, sendo, pois, considerados, bens finais. No entanto, não inclui, de forma nenhuma, o valor dos bens de capital circulante, dos produtos intermediários não duradouros, nem dos bens de capital ainda não terminados ou que, tendo já sido terminados, passem de uma etapa para outra ao longo do processo de produção. Como é óbvio, esses bens são diferentes dos bens intermediários concretos que, durante o mesmo período, se incorporam em cada bem final (por exemplo, o carburador “bem intermediário” não é a mesma coisa que o carburador já montado no veículo “bem final”). Ou seja, o Produto Nacional Bruto tem apenas em conta o capital fixo ou duradouro terminado, mas não o circulante, sendo que, contabilmente, se efetua uma distinção entre ambos, que, do ponto de vista econômico, carece de sentido. Em contraste, os números de Rendimento Social Bruto do Quadro V-2 incluem a produção bruta de todos os bens de capital, terminados ou não, duradouros ou circulantes, bem como de todos os bens e serviços de consumo produzidos durante o exercício econômico.
Em suma, o Produto Nacional Bruto é um indicador agregado de valores agregados que exclui a parte mais importante dos bens intermediários. A única razão apontada pelos teóricos de contabilidade nacional para utilizar tal indicador reside no fato de que com este descritor evitam o problema da “contagem dupla”. Contudo, do ponto de vista da teoria econômica, este argumento tem por base uma concepção muito estreita de contabilidade e é muito perigoso, uma vez que exclui do cálculo o enorme volume de esforço empresarial que todos os anos é dedicado à produção de bens intermediários, a parte mais importante da atividade econômica, que, ainda assim e de acordo com os números do Produto Nacional Bruto, não se considera valer a pena avaliar de alguma forma. Para ficarmos com uma ideia dos montantes envolvidos, podemos indicar que o Rendimento Social Bruto, calculado de acordo com o nosso critério, de um país avançado como o Estados Unidos da América supera em mais do dobro o total do seu Produto Nacional Bruto oficial.[38]
Assim, os valores tradicionais da contabilidade nacional tendem a eliminar de uma penada a importância central das etapas intermediárias no processo de produção e, concretamente, ignoram o fato inquestionável de que tal manutenção não está garantida, resultando, antes, de um conjunto contínuo e contingente de decisões concretas de tipo empresarial que dependem dos lucros contábeis esperados e da taxa social de preferência temporal ou taxa de juro. A utilização do Produto Nacional Bruto na contabilidade nacional supõe, quase inevitavelmente, que a produção é instantânea e não exige tempo, ou seja, que não existem etapas intermediárias do processo de produção e que a preferência temporal é irrelevante para determinar a taxa de juro. Em suma, os valores do rendimento nacional eliminam totalmente a parte mais significativa e importante do processo produtivo e, além disso, fazem-no de forma camuflada, uma vez que, paradoxalmente e embora incluam na designação o qualificativo “bruto”, fazem com que os peritos e não peritos na matéria não se apercebam da parte mais importante da estrutura de produção de cada país.[39]
Caso os indicadores da contabilidade nacional fossem modificados, de forma a se tornarem realmente “brutos” e a incluírem, assim, todos os produtos intermediários, seria possível seguir a proporção do montante gasto anualmente em bens e serviços de consumo em relação ao montante gasto em todas as etapas intermediárias. Esta proporção é determinada, em última instância, pela taxa social de preferência temporal, que estabelece a relação existente entre a poupança ou o investimento bruto e o consumo. É evidente que quanto mais reduzida for a preferência temporal, e, logo, maior for a poupança gerada na sociedade, maior será a proporção representada pela poupança e pelo investimento bruto em relação ao consumo final. Pelo contrário, uma preferência temporal elevada indica que as taxas de juro serão altas e que a proporção entre a poupança ou o investimento bruto e o consumo diminuirá. Uma coordenação intertemporal adequada das decisões dos agentes econômicos numa sociedade moderna exige que este processo de adaptação da estrutura de produção às diferentes taxas sociais de preferência temporal se efetue rápida e eficientemente, o que é algo que o próprio espírito empresarial de busca de lucros acaba por garantir, uma vez que, como já referimos, existe a tendência de harmonização dos mesmos ao longo das etapas. Caso se pretenda obter um indicador estatístico que, em vez de esconder, esclareça o tanto quanto possível esse importante processo de coordenação intertemporal, torna-se necessária a substituição do atual cálculo do Produto Nacional Bruto por outro que inclua o Rendimento Social Bruto, tal como o definimos.[40]
2
Efeito sobre a estrutura de produção
do aumento do crédito financiado com base
num aumento prévio da poupança voluntária
As três formas diferentes do processo de poupança voluntária
Na presente seção, vamos analisar detidamente o que acontece com a estrutura produtiva quando, por qualquer motivo, os agentes econômicos diminuem a taxa de preferência temporal, ou seja, quando decidem aumentar a poupança ou oferta de bens presentes. Isto pode ser verificado de qualquer das seguintes formas:
Em primeiro lugar, é possível que os capitalistas das diferentes etapas da estrutura produtiva decidam, a partir de determinado momento, modificar a proporção em que vinham reinvestindo os rendimentos derivados da atividade produtiva. Ou seja, como já sabemos, nada garante a continuidade, de um período para outro, da proporção que os capitalistas de uma etapa produtiva voltam a gastar de rendimentos que recebem de tal etapa, em bens de capital de etapas anteriores, em mão-de-obra e em recursos naturais. Pelo contrário, pode muito bem acontecer que os capitalistas decidam aumentar a oferta de bens presentes. Isto é, que decidam gastar uma proporção maior dos rendimentos que recebem por período no reinvestimento em aquisição de serviços e de bens de capital, bem como de fatores de produção originais (trabalho e recursos naturais). Nesse caso, a margem de lucro contábil diminuirá a curto prazo, o que equivale, como sabemos, a uma tendência para a diminuição da taxa de juro de mercado. A margem de lucro baixa como resultado do aumento dos custos monetários em relação aos rendimentos. Os capitalistas estão dispostos a assumir esta diminuição dos lucros contábeis temporariamente, uma vez que esperam assim alcançar, num futuro mais ou menos longínquo, lucros totais maiores do que os que obteriam se não tivessem alterado o seu comportamento.[41] Uma vez que o mercado em que se trocam bens presentes por bens futuros é constituído, como já sabemos, por toda a estrutura de etapas de produção da sociedade, este processo de aumento da poupança e da materialização em novos investimentos constitui, frequentemente, a área onde se dá o aumento da poupança e do investimento na sociedade.
Em segundo lugar, é possível que os proprietários dos fatores de produção originais (trabalhadores e proprietários dos recursos naturais) decidam não consumir, como no passado, o montante integral do seu rendimento social líquido (e que no nosso exemplo do Gráfico V-1 era de setenta unidades monetárias). Em vez disso, podem, a partir de determinado momento, decidir-se por uma redução do consumo, investido as unidades monetárias que já não dediquem à compra de bens e serviços de consumo final nas etapas produtivas que decidam empreender diretamente como capitalistas (incluindo nesta categoria os membros de cooperativas). Embora exista a possibilidade de que este procedimento se verifique no mercado, em termos quantitativos, a importância não costuma ser muito elevada na vida real.
Em terceiro lugar, é possível que não só os proprietários dos fatores de produção originais (trabalhadores e recursos naturais), mas também os capitalistas, à proporção que recebem rendimentos líquidos em forma de lucros contábeis ou juros de mercado, decidam, a partir de determinado momento, não consumir o montante integral dos rendimentos líquidos, dedicando uma parte das mesmas a empréstimos aos capitalistas das diferentes etapas do processo de produção, para que estes ampliem as atividades, comprando mais bens de capital de etapas anteriores e um volume mais elevado de fatores de produção originais. Este terceiro procedimento é levado a cabo por intermédio do mercado de créditos que, como já indicamos, embora não seja o mais conspícuo e chamativo na vida econômica real, tem uma importânciasecundária e um papel subsidiário em relação ao mercado mais geral no qual se compram e vendem bens presentes em troca de bens futuros, por meio de auto-financiamento ou reinvestimento de bens presentes efetuado diretamente pelos capitalistas nas etapas produtivas (primeiro e segundo procedimento de poupança-investimento referidos atrás). Embora importante, o sistema de poupança tem habitualmente uma relevância secundária em relação à dos primeiros procedimentos de aumento de poupança que descrevemos acima. No entanto, é preciso reconhecer que a existe uma relação muito estreita entre os fluxos de poupança e investimento dos dois procedimentos, e que, de fato, ambos os setores do “mercado de tempo” — o setor geral da estrutura produtiva e o particular do mercado de créditos — se comportam como verdadeiros vasos comunicantes.
A contabilidade da poupança canalizada para empréstimos
Do ponto de vista econômico, qualquer destes três procedimentos de aumento de poupança têm as seguintes consequências: um aumento na oferta de bens presentes por parte dos poupadores, que transferem os bens presentes para os proprietários dos recursos originais e dos fatores materiais de produção (bens de capital) provenientes de etapas produtivas anteriores. Concretamente, seguindo o mesmo exemplo de contabilidade que apresentamos no capítulo IV, os lançamentos de contabilidade do terceiro procedimento que vimos seriam os seguintes:
Em primeiro lugar, aquele que tivesse poupado e emprestado os recursos em forma de bens presentes faria o seguinte lançamento:
(74)
Ativo | x
a
x |
Passivo |
1.000.000 Empréstimo concedido | Caixa 1.000.000 | |
Como podemos verificar, este lançamento é o registo contábil do fato de que o poupador oferece um milhão de unidades monetárias de bens presentes, às quais renuncia, assim perdendo a total disponibilidade das mesmas e transferindo-a para um terceiro, por exemplo, o empresário de uma determinada etapa de produção, que recebe as unidades monetárias como um empréstimo, cujo diário de contabilidade se faria o seguinte lançamento:
(75)
Ativo | x
a
x |
Passivo |
1.000.000 Caixa | Empréstimo recebido 1.000.000 | |
O empresário que recebe tais bens presentes os usará para adquirir: (1) bens de capital das etapas produtivas anteriores; (2) serviços do fator trabalho; (3) recursos naturais. Graças a este terceiro procedimento, os poupadores que não pretenderem se envolver diretamente na atividade de qualquer uma das atividades produtivas podem poupar e investir via mercado de créditos realizando um contrato de empréstimo. Indiretamente, o resultado deste processo acaba por ser idêntico ao já visto nos dois primeiros procedimentos de aumento voluntário de poupança.
A problemática do empréstimo ao consumo
Poderia argumentar-se que, por vezes, os empréstimos não são concedidos aos empresários das etapas de produção, para lhes permitir alargar os processos produtivos por meio de investimento, mas antes aos consumidores que compram os produtos finais. Em relação a esse aspecto, é preciso notar, em primeiro lugar, que a própria natureza dos dois primeiros procedimentos de aumento de poupança já descritos exclui o uso dos recursos poupados em consumo. Só é possível conceber o empréstimo ao consumo num mercado de créditos, que, como já sabemos, tem um papel subsidiário e uma importância secundária em relação ao mercado total no qual se oferecem e compram bens presentes em troca de bens futuros. Em segundo lugar, na maior parte das vezes o empréstimo ao consumo é concedido para financiar a aquisição de bens de consumo duradouro que, como já vimos em seções anteriores,[42] em última análise, podem sem comparados a bens de capital que se mantêm ao longo de um número sucessivo de etapas de produção enquanto dura a capacidade do bem de consumo duradouro para garantir serviços ao seu proprietário. Nestas circunstâncias, as mais comuns no que respeita ao crédito ao consumidor, os efeitos econômicos no que toca ao estímulo ao investimento e alargamento das etapas produtivas são idênticos aos de qualquer outro aumento da poupança diretamente investido em bens de investimento de qualquer etapa da estrutura produtiva, não se podendo deles distinguir. Assim, só um hipotético empréstimo ao consumo destinado a financiar a despesa corrente em bens de consumo não duradouros de uma economia doméstica teria o efeito de aumentar direta e imediatamente o consumo corrente final. No entanto, e ainda que possa se considerar muito pouco importante, a existência de crédito destinado ao consumo corrente final no mercado indica que existe uma certa procura latente de crédito por parte dos consumidores. Dada a ligação existente entre todos os setores do mercado de bens presentes e futuros, uma vez satisfeita esta procura residual de crédito ao consumo corrente, libertam-se a maior parte dos recursos reais poupados para serem investidos nas etapas de produção mais afastadas do consumo.
Efeitos da poupança voluntária sobre a estrutura produtiva
Vamos agora passar a explicar de que forma o sistema de preços e a capacidade de coordenação da função empresarial de um mercado livre fazem espontaneamente com que a diminuição na taxa social de preferência temporal, e o correspondente aumento da poupança, se consubstancie numa modificação da estrutura de etapas produtivas da sociedade, que tende a tornar-se mais complexa e duradoura e, a longo prazo, significativamente mais produtiva. Em síntese, explicaremos um dos mais importantes processos de coordenação de toda a economia. Infelizmente, como resultado da influência das teorias monetarista e keynesiana (que iremos estudar criticamente no capítulo VII), este processo foi, durante pelo menos duas gerações de economistas, quase completamente ignorado nas generalidade dos livros de texto e dos programas de estudo de economia, o que levou a que a maioria dos economistas atuais desconheçam o funcionamento de um dos processos de coordenação mais importantes da economia de mercado.[43]
Para efeitos de análise, vamos começar por considerar uma situação extrema que, porém, vai ser de grande utilidade para ilustrar graficamente e compreender melhor os processos envolvidos. Esta situação consiste em supor que, de repente, os agentes econômicos decidem poupar 25 por cento dos seus rendimentos. Partindo do exemplo gráfico e numérico da seção anterior, no qual supúnhamos que cem unidades monetárias constituíam o rendimento líquido, correspondente aos fatores originais de produção e aos juros recebidos dos capitalistas, que era gasto integralmente em bens de consumo, vamos agora considerar que, como consequência de uma diminuição da preferência temporal, os agentes econômicos decidem renunciara 25%, ou seja, uma quarta parte, do consumo que vinham a efetuar, poupando os correspondentes recursos e oferecendo o excesso de bens presentes a potenciais clientes. Depois deste aumento de poupança voluntária, surgem três consequências simultâneas que, pela sua grande importância, vamos agora estudar separadamente.[44]
Primeiro: o efeito decorrente da disparidade de lucros entre as diferentes etapas produtivas
Se existir um aumento da poupança social em um quarto do rendimento líquido, é evidente que a oferta monetária total de bens de consumo será reduzida na mesma proporção. No gráfico V-2, ilustramos o efeito deste processo sobre a etapa final do consumo e sobre os lucros contábeis das empresas dedicadas a essa etapa.
Como se pode observar no gráfico V-2, antes do aumento da poupança, eram consumidas cem unidades monetárias de rendimento líquido em empresas dedicadas a vender bens de consumo final que, anteriormente, tinham incorrido num total de gastos de noventa unidades monetárias: oitenta unidades correspondentes à aquisição de bens de capital da etapa imediatamente anterior e dez unidades monetárias pagas pelos fatores de produção originais contratados na última etapa (trabalhadores e recursos naturais). Isto determinava um lucro contábil de dez unidades monetárias, equivalente a uma taxa de juro próxima dos 11%, que, como vimos na seção anterior, era a taxa de juro de mercado com a qual tendiam a harmonizar-se os lucros contábeis de todas as etapas produtivas, tanto das mais próximas como das mais afastadas do consumo final.
Ora, supondo que há um aumento de poupança na ordem dos 25% do rendimento líquido, a situação na etapa final do consumo é a que descrevemos no Gráfico V-2 no momento t + 1. Logo depois do aumento da poupança, é possível observar que a demanda monetária de bens de consumo final se reduz, em cada período, de cem para setenta e cinco unidades monetárias. No entanto, esta diminuição nos rendimentos monetários das empresas dedicadas à etapa final do processo de produção não é acompanhada por uma diminuição imediata dos gastos. Pelo contrário, na contabilidade, tais empresas registam gastos invariáveis de noventa unidades monetárias correspondentes, tal como no caso anterior, a oitenta unidades despendidas em bens de capital da etapa anterior (maquinário, fornecedores, produtos intermediários, etc.) e dez unidades monetárias em pagamento dos fatores de produção originais (trabalho e recursos naturais). Como resultado do aumento da poupança se dá, pois, um perda contábil de quinze unidades monetárias nas empresas dedicadas à etapa final do consumo. Este valor sobe para vinte e cinco se tivermos em conta o custo de oportunidade decorrente do fato de os empresários não só sofrerem da referida perda contábil, mas também de deixarem de ganhar as dez unidades monetárias que os capitais investidos noutras etapas produtivas geram como juros. Assim, podemos concluir que todo o aumento da poupança gera perdas relativas significativas ou diminuições dos lucros contábeis nas empresas que exercem a atividade mais perto do consumo final.
No entanto, é preciso recordar que o setor do consumo é apenas uma parte relativamente pequena da estrutura produtiva total da sociedade e que o montante de unidades monetárias gastas no consumo final é apenas uma fração do rendimento social bruto de todas as etapas do processo produtivo. Assim, o fato de haver perdas contábeis na etapa final não afeta imediatamente as etapas anteriores ao consumo, que continuam a apresentar uma diferença positiva entre as receitas e as despesas, semelhante à que tinham antes do aumento da poupança. Só depois de um período alargado de tempo o efeito depressor do aumento da poupança sobre a etapa final dos bens de consumo começará a ser sentido nas etapas mais próximas do mesmo, tornando-se mais fraco à medida que nos elevemos para etapas produtivas relativamente mais afastadas do consumo final. Em todo o caso, os lucros contábeis das etapas mais afastadas do consumo tenderão a ser constantes, como se mostra no Gráfico V-2, quinta etapa, momento t. Pode verificar-se que esta etapa continua a manter um lucro contábil de 11%, resultado de um total de receitas de vinte unidades monetárias e um total de despesas de dezoito unidades monetárias. Assim, é evidente que o aumento da poupança leva a uma grande disparidade entre os lucros contábeis obtidos pelas empresas que se dedicam à primeira etapa de bens de consumo e os obtidos pelas que exercem a atividade na etapas mais afastadas do consumo final (no nosso exemplo, a quinta etapa da estrutura produtiva). O setor de bens de consumo apresenta uma perda contábil como resultado do aumento da poupança, ao passo que as indústrias da quinta etapa, mais afastadas do consumo, continuam a obter lucros na ordem dos 11% do capital investido.
Esta disparidade de lucros funciona como sinal indicador e como incentivo para que os empresários restrinjam os investimentos nas etapas próximas do consumo e os dediquem a outras etapas que ainda possibilitem a obtenção de lucros relativamente mais elevados e que são, dadas as circunstâncias, as mais afastadas do consumo final. Assim, os empresários tenderão a transferir uma parte da procura de recursos produtivos, em forma de bens de capital e de fatores de produção originais, da etapa final de consumo e das mais próximas dela, para as etapas mais afastadas, onde descobrem que podem obter uma rentabilidade muito maior. O aumento do investimento ou da procura de mais recursos produtivos nas etapas mais afastadas do consumo provoca o efeito que apresentamos para o momento t +1 na quinta etapa do gráfico V-2. De fato, os empresários da quinta etapa aumentam o volume de investimento em fatores de produção originais e recursos produtivos, que passa de 18 para 31,71 unidades monetárias (21,5 na compra de serviços produtivos de bens de capital e 10,21 na aquisição de serviços do fator trabalho e de recursos naturais).[45] O resultado é um aumento na produção de bens da etapa quinta, que, monetariamente, sobe de 20 para 32,25 u.m., o que dá origem a um lucro contábil de 0,54 unidades monetárias, que, embora em termos percentuais seja inferior ao que se obtinha anteriormente (de 1,7% contra 11%), em termos comparativos é um lucro muito superior ao que obtêm as indústrias de bens de consumo final (que, como vimos, incorrem em perdas absolutas de 15 unidades monetárias).
Como conclusão, vemos que o crescimento da poupança dá origem a uma disparidade entre as taxas de lucro das diferentes etapas da estrutura produtiva, o que leva a que os empresários a diminuam a produção imediata de bens de consumo e a aumentem nas etapas mais afastadas. Desta forma, existe uma tendência para um alargamento temporal dos processos produtivos até que a nova taxa de preferência temporal da sociedade ou taxa de juro, agora significativamente mais reduzida devido ao grande aumento da poupança, se estenda, na forma de diferenciais entre receitas e despesas contabilísticas de cada etapa, uniformemente ao longo de toda a estrutura produtiva.[46]
Refira-se que os empresários da quinta etapa foram capazes de aumentar a sua oferta de bens presentes de 18 unidades no momento t para 31,71 unidades no momento t+1, graças à maior poupança ou oferta de bens presentes produzida pela sociedade. Os empresários financiam este aumento de oferta, em parte, com um aumento da própria poupança, ou seja, investindo uma parte do que recebiam antes em forma de juros e gastavam em consumo, e em parte recebendo uma nova poupança do mercado de crédito, em forma de empréstimos, integralmente cobertos por um aumento prévio da poupança voluntária. Ou seja, o aumento do investimento na quinta etapa materializa-se por meio de qualquer dos três procedimentos que já apresentamos na seção anterior.
Refira-se ainda que o aumento que, em condições normais, seria de esperar nos preços de produção dos fatores (bens de capital, fator trabalho e recursos naturais) como consequência da maior demanda na quinta etapa não tem por que se verificar (a não ser no caso dos fatores de produção mais específicos). De fato, cada aumento da demanda de fatores de produção nas etapas mais afastadas do consumo é neutralizado ou compensado maioritária ou até completamente pelo aumento paralelo da oferta desses recursos produtivos, que tem lugar à medida que os mesmos se libertam nas etapas mais próximas do consumo, onde os empresários incorrem em perdas contábeis e, por isso, se veem obrigados a restringir os gastos de investimento nesses fatores. Assim, para a coordenação empresarial entre as etapas da estrutura de produção de uma sociedade imersa num processo de aumento de poupança e de crescimento econômico é muito importante que os mercados de fatores de produção e especialmente os dos fatores de produção originais (trabalho e recursos naturais) sejam muito flexíveis e permitam, com um custo econômico e social mínimo, a transferência gradual de umas para outras etapas de produção.
Por fim, é necessário compreender que a diminuição do investimento no setor de bens de consumo, que tende a ter origem nas perdas contábeis provocadas pelo aumento da poupança voluntária, explica que comece um certo abrandamento na chegada ao mercado de novos bens de consumo (independentemente do aumento nos seus estoques). Este abrandamento continuará até que comece a aumentar de forma significativa a quantidade de bens de consumo, decorrente do aumento da complexidade e do número de etapas do processo de produção, que gera uma produtividade indubitavelmente maior. Poderíamos pensar que tal diminuição temporária na oferta de bens de consumo provocaria, ceteris paribus, um aumento do preço. Contudo, o aumento de preços não chega a se materializar, precisamente porque a diminuição na oferta é mais do que compensada, logo desde o início, pela diminuição paralela da demanda de bens de consumo, resultado do aumento prévio da poupança voluntária que desde o início assumimos ter se verificado.
Em síntese, o aumento da poupança voluntária é investido na estrutura produtiva, quer por meio de investimentos diretos, quer por meio de créditos concedidos aos empresários das etapas produtivas relativamente mais afastadas do consumo, créditos esses que têm uma cobertura de poupança voluntária real e que se dirigem a aumentar a procura monetária de fatores de produção originais e de bens de capital usados nas etapas referidas. Uma vez que, como vimos no início deste capítulo, os processos de produção tendem a ser mais produtivos à medida que incluem um maior número de etapas mais afastadas do consumo e que estas são mais complexas, esta estrutura mais capital-intensiva acabará por gerar um aumento significativo na produção de bens de consumo, assim que os processos correspondentes empreendidos de novo atinjam o fim. Por isso, o crescimento da poupança, juntamente com o exercício livre da função empresarial, é a condição necessária e o motor que estimula todo o processo de desenvolvimento econômico.
Segundo: o efeito da diminuição da taxa de juro sobre o preço de mercado dos bens de capital
Como já referimos, em igualdade de circunstâncias, o aumento da poupança voluntária, ou seja, da oferta de bens presentes, dá origem a uma descida da taxa de juro do mercado. E, como sabemos, esta taxa de juro tende a consubstanciar-se na diferença contábil entre receitas e despesas nas diferentes etapas de produção, tornando-se também visível na taxa de juro a que se concedem os empréstimos no mercado de créditos. Ora, é importante realçar que a diminuição da taxa de juro causada pelo aumento da poupança voluntária afeta de forma significativa o valor dos bens de capital, sobretudo, todos os utilizados nas etapas relativamente mais afastadas do consumo final e que têm uma duração maior, contribuindo mais para o processo produtivo.
Imaginemos um bem de capital de grande duração, como o imóvel de uma empresa, uma instalação industrial, um barco ou avião dedicados ao transporte, um alto-forno, um computador ou aparelho de comunicação de alta tecnologia etc., que foi produzido e que proporciona os serviços nas diferentes etapas da estrutura de produção, todas elas relativamente afastadas do consumo. O valor de mercado deste bem de capital tende a ser igual ao valor do fluxo futuro das receitas esperadas, descontado pela taxa de juro, valor esse que aumenta à medida que a taxa de juro baixa. Desta forma, e para nos ajudar a perceber, uma diminuição na taxa de juro de 11 para 5%, motivada por um aumento da poupança, faz com que o valor atual de um bem de capital de muita longa duração seja mais de o dobro (o valor atual de um rendimento unitária perpétua a 11% de juros é 1/0,11 = 9,09; e o valor atual de um rendimento perpétuo a 5% de juros é igual a 1/0,05 = 20). Se o bem de capital durar, por exemplo, vinte anos, uma diminuição na taxa de juro de 11 para 5% provoca um aumento de 56% no valor de mercado ou capitalizado do bem.[47]
Por isso, se as pessoas começarem a dar relativamente menos valor aos bens presentes, o preço de mercado dos bens de capital e dos bens de consumo duradouros tenderá a aumentar. E esse aumento será tão mais elevado quanto maior a duração, ou seja, se for usado num maior número de etapas do processo produtivo e se estas se encontrarem mais afastadas do consumo. Assim, os bens de capital que já eram usados e que vêem o preço aumentar de forma significativa como consequência da diminuição da taxa de juro serão produzidos em maior quantidade, o que dará origem a um alargamento horizontal na estrutura de bens de capital (ou seja, a um aumento na produção dos bens de capital já existentes). Ao mesmo tempo, a diminuição da taxa de juro mostrará que muitos processos produtivos ou bens de capital que até então não eram considerados rentáveis começam a ser e, logo, os empresários começarão a dedicar-se a eles. De fato, muitas inovações tecnológicas e projetos novos não eram empreendidos, porque os empresários estimavam que o custo iria ser superior ao valor de mercado (que tende a tornar-se igual ao valor das rendas futuras de cada bem de capital, descontado pela taxa de juro). No entanto, com a redução da taxa de juro, esses projetos de alargamento da estrutura produtiva, com etapas novas e mais modernas mais afastadas do consumo, começa a ter um valor de mercado mais elevado, que pode até ser superior ao custo de produção, pelo que vale a pena começar a empreendê-los. Assim, a segunda consequência da diminuição da taxa de juro decorrente de um aumento da poupança voluntária é a da maior profundidade da estrutura de bens de investimento, na forma de um alongamento vertical com etapas novas de bens de capital cada vez mais afastados do consumo.[48]
Quer o alargamento quer ao aprofundamento da estrutura de bens de capital surgem como consequência da capacidade criativa e coordenadora da função empresarial, que é capaz de notar oportunidades de ganho e de uma potencial margem de lucros, quando se verifica uma diferença entre o preço de mercado dos bens de capital (determinada pelo valor presente da seu rendimento futuro esperado, que, aumenta de forma significativa quando se dá uma baixa na taxa de juro) e o custo necessário para produzi-los (custo que se mantém constante, ou pode até diminuir, dada a maior oferta de fatores de produção originais no mercado provenientes da etapa de consumo final, que inicialmente se contraiu ao aumentar a poupança).
Verificamos assim que este segundo efeito também provoca um alargamento da estrutura de bens de capital, como acontecia com o primeiro efeito que vimos anteriormente.
A flutuação no valor dos bens de capital, que resulta das variações da poupança e da taxa de juro, tende a alargar-se também ao títulos de valores representativos desses bens e, assim, aos mercados secundários em que estes são trocados e negociados. Desta forma, um aumento da poupança voluntária, que leva à diminuição na taxa de juros, fará subir em maior escala o preço das ações das empresas das etapas de bens de capital mais afastadas do consumo e, e geral, de todos os títulos representativos de bens de capital. Só os títulos que representam a propriedade das empresas mais próximas do consumo irão experimentar uma diminuição relativa do preço, como consequência do impato negativo imediato da diminuição da procura de bens de consumo gerada pelo aumento da poupança. Assim, é claro que, por oposição à ideia mais popular, e na ausência de outras distorções de tipo monetário que ainda não foram abordadas aqui, não há razão para que a Bolsa reflita os lucros das empresas em especial. Pelo contrário, os lucros contábeis das empresas das diferentes etapas tendem a se harmonizar com a taxa de juro, pelo que é num ambiente de elevada poupança e baixos lucros relativos, ou seja, com uma taxa de juro reduzida, que se dará um maior crescimento do valor em Bolsa dos títulos representativos dos bens de capital. Além disso, quanto mais afastados os bens de capital estiverem do consumo final, maior será o preço em Bolsa dos títulos correspondentes.[49] Em oposição, um crescimento dos lucros contábeis relativos ao longo de toda a estrutura produtiva, e, logo, da taxa de juro de mercado, dará origem, em igualdade de circunstâncias, a uma diminuição do valor dos títulos e, portanto, a uma queda do valor em Bolsa. Assim se explicam, do ponto de vista teórico, muitas reações gerais da Bolsa que a maioria das pessoas, e também muitos especialistas em Economia, não é capaz de compreender, uma vez que aplicam única e exclusivamente a ingênua teoria de que a Bolsa deve ser apenas um reflexo automático e fiel do nível alcançado pelos lucros contábeis indiscriminados de todas as empresas do processo produtivo e sem ter em conta as etapas em que os lucros são obtidos nem a evolução da taxa social de preferência temporal.
Terceiro: o chamado “Efeito Ricardo”
Um efeito muito importante de qualquer aumento de poupança voluntária é o que ocorre imediatamente sobre o nível de salários reais. Se observarmos de novo o exemplo do Gráfico V-2 que a demanda monetária de bens de consumo se reduz em um quarto (de cem unidades monetárias para setenta e cinco), como consequência do aumento da poupança, facilmente compreenderemos a razão por que, em geral, quando se dá um aumento da poupança, os preços dos bens de consumo final tendem a baixar.[50] E se, como costuma acontecer, os salários ou rendimentos do fator original trabalho se mantiverem constantes desde o início em termos nominais, uma diminuição do preço dos bens de consumo final provocará um aumento no salário real dos trabalhadores empregados em todas as etapas da estrutura de produção. Com os mesmos rendimentos monetários em termos nominais, os trabalhadores poderão adquirir uma quantidade e qualidade maior de bens e serviços finais de consumo a novos preços mais reduzidos.
Esta melhoria dos salários reais, que resulta do aumento da poupança voluntária, faz com que, em termos relativos, seja interessante para os empresários de todas as etapas do processo produtivo, substituir mão-de-obra por bens de capital. Ou, dito de outra forma, o aumento da poupança voluntária, via aumento dos salários reais, estabelece uma tendência em todo o sistema econômico que provoca o alongamento da estrutura produtiva, tornando-as mais capital-intensiva. Para os empresários é mais interessante utilizar, em termos relativos, mais bens de capital do que mão-de-obra, o que constitui um terceiro e poderoso efeito adicional em direção ao alongamento das etapas da estrutura produtiva, que se adiciona e sobrepõe aos efeitos enunciados anteriormente.
O primeiro a se referir explicitamente a tal terceiro efeito foi David Ricardo na obra On the Principles of Political Economy and Taxation, cuja primeira edição foi publicada em 1817 e onde Ricardo conclui que:
Every rise of wages, therefore, or, which is the same thing, every fall of profits, would lower the relative value of those commodities which were produced with a capital of a durable nature, and would proportionally elevate those which were produced with capital more perishable. A fall of wages would have precisely the contrary effect.[51]
E no conhecido anexo “On Machinery”, que foi acrescentado na terceira edição de 1821, Ricardo conclui que:“machinery and labour are in constant competition, and the former can frequently not be employed until labour rises”.[52]
A mesma ideia foi mais tarde recuperada e profusamente utilizada por F. A. Hayek a partir de 1939 nas obras sobre ciclos econômicos, e utilizamo-la pela primeira vez aqui para explicar os efeitos que o aumento da poupança voluntária exerce sobre a estrutura produtiva e para desvirtuar as teorias elaboradas a respeito da chamado “paradoxo da poupança” e dos pretensos efeitos negativos sobre a demanda efetiva. Hayek nos dá uma explicação muito concisa do “Efeito Ricardo” quando diz que:
with high real wages and a low rate of profit investment will take highly capitalistic forms: entrepreneurs will try to meet the high costs of labour by introducing very labour-saving machinery— the kind of machinery which it will be profitable to use only at a very low rate of profit and interest.[53]
Assim, o “Efeito Ricardo” é uma terceira explicação de natureza microeconômica para o fato de os empresários reagirem a um aumento da poupança voluntária aumentando a sua procura de bens de capital e investindo em novas etapas mais afastadas do consumo final.
É importante não esquecer que todo o aumento da poupança voluntária e do investimento gera, inicialmente, uma redução na produção de novos bens e serviços de consumo em relação ao potencial máximo que a curto prazo se poderia alcançar caso não fossem desviados fatores produtivos das etapas mais próximas do consumo final. Esta redução cumpre a função de libertar os fatores produtivos necessários para alongar as etapas de bens de capital mais afastadas do consumo.[54] Além disso, os bens e serviços de consumo que não são vendidos como consequência da poupança voluntária cumprem um papel muito semelhante ao que tinha a acumulação de amoras no nosso exemplo de Robinson Crusoé. As amoras permitiam que ele se sustentasse durante o número de dias necessários à produção do equipamento capital (a vara de madeira), período durante o qual não pôde dedicar-se a colher amoras “à mão”. Numa economia moderna, os bens e serviços de consumo que não são vendidos quando aumenta a poupança cumprem o importante papel de tornar possível a manutenção dos diferentes agentes econômicos (trabalhadores, proprietários dos recursos naturais e capitalistas) nos períodos de tempo seguintes, em que, como consequência do recentemente iniciado alongamento da estrutura produtiva, é forçoso que se dê um abrandamento na chegada de novos bens e serviços de consumo ao mercado. Este abrandamento durará enquanto não forem terminados todos os processos mais capital-intensivos que tiverem sido começados. Não fossem esses bens e serviços de consumo não vendidos devido à poupança, a diminuição temporária na oferta de novos bens de consumo existentes no mercado provocaria um crescimento significativo dos preços e o aparecimento de dificuldades de abastecimento.[55]
Conclusão: o aparecimento de uma nova estrutura de produção mais capital-intensiva
Como consequência da combinação dos três efeitos que acabamos de estudar, e que são provocados pelo processo empresarial de busca de lucros, haverá a tendência para se estabelecer uma nova estrutura de bens de capital mais “estreita” e “alongada”. Além disso, o diferencial entre as receitas e os custos de cada etapa, que constitui o lucro contábil ou taxa de juro, tenderá a igualar-se ao longo de todas as etapas da nova estrutura produtiva a um nível mais reduzido (como naturalmente corresponde a um maior volume de poupança e a uma taxa social de preferência temporal mais baixa). Assim, a estrutura produtiva terá uma forma muito semelhante à que apresentamos no Gráfico V-3.
No Gráfico V-3 podemos verificar que o consumo final caiu para setenta e cinco unidades monetárias. Esta redução afetou também o valor do produto da segunda etapa, que é a etapa anterior mais próxima do consumo e que diminuiu de oitenta unidades monetárias no Gráfico V-1 para 64,24 u.m. no Gráfico V-3. Acontece também uma redução na terceira etapa, embora dessa vez proporcionalmente menor, de 60 para 53,5 unidades monetárias. No entanto, a partir da quarta etapa, a procura em termos monetários cresce. O crescimento é ligeiro na quarta etapa, de 40 para 42,75 u.m., e começa depois a ser proporcionalmente muito maior na quinta etapa, que cresce de 20 para 32,25 unidades monetárias, como vimos no Gráfico V-2. Além disso, aparecem duas novas etapas na parte mais afastada do consumo, a sexta etapa e a sétima, que anteriormente não existiam.
Depois de feitos todos os ajustes necessários, a taxa de lucro das diferentes etapas tende a harmonizar-se a um nível sensivelmente mais baixo do que o do Gráfico V-1. Este fenômeno decorre do fato de que o aumento da poupança voluntária gera uma taxa de juro de mercado mais reduzida, e a taxa de lucro contábil de cada etapa (no nosso exemplo, próxima de 1,70% anual) aproxima-se desse número. O rendimento líquido recebido pelos fatores de produção originais (trabalho e recurso naturais) e a taxa de juro ou diferencial líquido recebidos pelos capitalistas de cada etapa são de 75 unidades monetárias, o que coincide com a rendimento monetário gasto em bens e serviços de consumo. Realce-se que embora só sejam gastas 75 u. m. em bens e serviços de consumo, ou seja, menos 25 unidades do que no Gráfico V-1, depois de todos os processos produtivos terem terminado, a produção de novos bens e serviços de consumo final aumentará muito em termos reais, uma vez que à medida que se tornam mais capital-intensivos, os processos produtivos tendem a se tornar também, e passe a redundância, mais produtivos. Dado que uma maior produção, em termos reais, de bens e serviços de consumo só pode ser vendida em troca de um número total de unidades monetárias inferior (no nosso exemplo, 75), se o preço unitário dos novos bens e serviços que chegam ao mercado diminui de forma substancial, verifica-se um aumento real muito significativo dos rendimentos dos fatores de produção originais, concretamente dos salários e do nível de vida dos trabalhadores.
Nos quadros V-3 e V-4, apresentamos a oferta e a procura de bens presentes bem como a composição do rendimento social bruto do exercício, depois de todos os ajustamentos provocados pelo aumento da poupança voluntária. Como podemos verificar, a oferta e a procura de bens presentes está estabelecida em 295 unidades monetárias, ou seja, mais vinte e cinco unidades monetárias do que no caso do Quadro V-1, uma vez que a poupança e o investimento brutos crescem, precisamente, as 25 unidades monetárias de poupança líquida adicional voluntariamente levada a cabo no caso do Gráfico V-1. Porém, como se pode verificar no Quadro V-4, o rendimento social bruto do exercício mantém-se inalterado no valor de 370 unidades monetárias, das quais 75 correspondem à procura final de bens de consumo e 295 à oferta total de bens presentes. Isto é, embora o rendimento social bruto seja, em termos monetários, idêntico ao do caso anterior, distribui-se agora de uma forma radicalmente diferente: ao longo de uma estrutura produtiva mais estreita e alongada, ou seja, mais capital-intensiva e com um número de etapas superior.
A diferença entre a distribuição da mesma Rendimento Social Bruto em termos monetários numa e noutra estrutura produtiva pode ser observada no Gráfico V-4.
O Gráfico V-4 mostra o impacto do aumento de 25 unidades da poupança líquida voluntária sobre a estrutura produtiva e resulta simplesmente da sobreposição do Gráfico V-1 (em linha contínua) e do Gráfico V-3 (em linha tracejada). Assim, podemos observar os seguintes efeitos, como consequência do aumento voluntário da poupança:
Primeiro: um aprofundamento da estrutura de bens de capital, que se manifesta no “alongamento” verticalda estrutura produtiva por intermédio de novas etapas (no nosso exemplo, a sexta e sétima etapas, que não existiam anteriormente).
Segundo: um alargamento na estrutura de bens de capital, consubstanciado numa ampliação das etapas já existentes (como acontece nas etapas quarta e quinta).
Terceiro: um estreitamento relativo nas etapas de bens de capital mais próximas do consumo.
Quarto: na etapa final de bens e serviços de consumo, o aumento da poupança voluntária dá origem, num primeiro momento, a uma diminuição do consumo em termos monetários. No entanto, depois de terminado o alongamento da estrutura produtiva, verifica-se, como já explicamos, um aumento real substancial na produção de bens e serviços de consumo. Uma vez que a demanda monetária por tais bens é invariavelmente mais baixa e dada a combinação combinação destes dois efeitos, o aumento da produção dá origem a uma diminuição muito significativa dos preços de mercado dos bens de consumo, o que acaba por fazer com que seja possível haver um crescimento significativo dos salários reais e, em geral, de todas os rendimentos dos fatores de produção originais.[56]
Em suma, verificamos que, embora não tenha havido qualquer diminuição na oferta monetária (e, logo, em termos estritos, qualquer fenômeno externo de deflação) nem qualquer aumento na procura de dinheiro (supondo, pois, que ambos estes fatores se mantêm constantes), dá-se uma diminuição geral no preço dos bens e serviços de consumo que decorre, única e exclusivamente, do aumento da poupança e da melhoria da produtividade provocada por uma estrutura produtiva mais capital-intensiva. Acresce que isso leva a um crescimento substancial dos salários reais, uma vez que, embora mantenham o valor nominal, ou até o reduzam um pouco, permitem adquirir uma quantidade crescente de bens e serviços de consumo de qualidade cada vez maior: a diminuição do preço destes bens é proporcionalmente muito maior do que a possível redução dos salários. Este é, em síntese, o processo de crescimento e desenvolvimento econômico mais saudável e mais sustentável que se pode imaginar, ou seja, aquele que apresenta menos desajustes, tensões e conflitos econômicos e sociais e que, historicamente, se verificou em várias ocasiões, tal como já demonstraram os estudos mais fiáveis.[57]
A solução teórica do “paradoxo da poupança”[58]
A nossa análise permitiu-nos também resolver os problemas expostos pelo pretenso dilema ou paradoxo da poupança ou da frugalidade. Segundo tal paradoxo, embora a poupança individual seja positiva no sentido em que permite aumentar o rendimento, do ponto de vista social, a diminuição da procura agregada de bens de consumo acabará por afetar negativamente o investimento e a produção.[59] Nós, pelo contrário, apresentamos os argumentos teóricos que demonstram que esta interpretação, baseada no velho mito do subconsumo, é errada. De fato, mostramos que, com o mesmo rendimento social bruto e embora a oferta monetária de bens de consumo diminua, a sociedade cresce e desenvolve, ocorrendo um aumento dos salários reais. Demonstramos também que, na ausência de intervenções estatais e de aumentos de oferta monetária, existe uma força muito poderosa no mercado que, estimulada pela busca de lucro por parte dos empresários, leva a que a estrutura produtiva se alongue e se torne cada vez mais complexa. Em suma, apesar da diminuição inicial relativa da procura de bens de consumo como consequência do crescimento da poupança, a produtividade do sistema econômico se eleva e com ela a produção final de bens e serviços de consumo e os salários reais.[60]
O caso de uma economia em regressão
O raciocínio que seguimos até ao momento pode inverter-se, mutatis mutandis, para explicar os efeitos que teria a diminuição da poupança voluntária da sociedade. Partindo de uma estrutura produtiva como a apresentada no Gráfico V-3, se a sociedade como um todo decide poupar menos, dar-se-á um aumento, por exemplo de 25 unidades monetárias, da procura monetária de bens e serviços de consumo, fazendo com que esta aumente de 75 para 100 unidades monetárias. Isto provocará uma tendência de crescimento muito elevado nas indústrias e empresas das etapas mais próximas do consumo e, por conseguinte, um aumento dos lucros contábeis. Embora, aparentemente, tenham os efeitos de um boom sobre o consumo, a logo prazo, estes aumentos provocam um “achatamento” da estrutura produtiva, uma vez que serão retirados recursos produtivos das etapas mais afastadas do consumo e transferidos para as mais próximas. De fato, os elevados lucros contábeis das etapas mais próximas do consumo final desencorajam a produção nas mais afastadas, em termos relativos, o que tende a provocar um menor investimento nas mesmas. Além disso, a redução da poupança faz com que a taxa de juro de mercado se eleve e que o correspondente valor atual dos bens de capital duradouro baixe, o que tenderá a provocar uma retração no investimento. Por fim, o “Efeito Ricardo” atua em sentido contrário: um crescimento dos preços dos bens e serviços de consumo implica uma diminuição imediata dos salários reais e dos rendimentos dos restantes fatores originais, o que incentiva a substituição de equipamento capital por mão-de-obra, agora relativamente mais barata.
O resultado combinado de todos esses efeitos é um achatamento da estrutura produtiva, que passa a se assemelhar à descrita no Gráfico V-1, que, embora em termos monetários apresente uma procura de bens e serviços de consumo superior, em termos reais provoca um empobrecimento generalizado da sociedade. De fato, a estrutura produtiva menos capital-intensiva fará com que menos bens e serviços de consumo cheguem à etapa final, que, não obstante, experimenta um crescimento substancial na demanda monetária. Assim, dá-se uma diminuição na produção de bens e serviços de consumo e um considerável crescimento do preço, consequência dos efeitos anteriores combinados. O resultado de tudo isto é um empobrecimento generalizado da sociedade, sobretudo dos trabalhadores, que vêem o seu salário real diminuir, uma vez que, embora monetariamente se mantenham constantes ou cheguem até a crescer, esse aumento é sempre inferior ao crescimento do preço monetário dos bens e serviços de consumo.
De acordo com John Hicks, Bocaccio foi quem descreveu pela primeira vez, numa curiosa passagem da Introdução a Decameron, datada aproximadamente de 1360, e em termos muito precisos, um processo muito semelhante ao que acabamos de analisar, quando relatou o impacto da Grande Peste do século XIV sobre a população de Florença. De fato, a epidemia fez com que as pessoas pensassem que a esperança de vida ia reduzir drasticamente, pelo que os empresários e trabalhadores, em vez de poupar e “alongar” as etapas do processo produtivo trabalhando nas terras e cuidando do gado, começaram a aumentar o consumo presente.[61] Depois de Bocacio, o primeiro economista a analisar seriamente os efeitos da diminuição da poupança e o consequente retrocesso econômico é Böhm-Bawerk na sua obra Capital and Interest,[62] onde explica pormenorizadamente que, se as pessoas em geral decidem consumir mais e poupar menos, dá-se um fenômeno de consumo do estoque de bens de capital que, em última instância, diminui a capacidade produtiva e a produção de bens e serviços de consumo, provocando um empobrecimento generalizado da sociedade.[63]
3
EFEITOS DA EXPANSÃO DE CRÉDITO BANCÁRIO NÃO COBERTO PELO AUMENTO DA POUPANÇA: A TEORIA AUSTRÍACA OU TEORIA Da Circulação dos Créditos do ciclo empresarial
Nesta seção, vamos analisar que efeitos tem sobre a estrutura produtiva a criação de créditos, sem a cobertura de um aumento prévio da poupança voluntária, por parte dos bancos. Trata-se, pois, de um caso radicalmente diferente do estudado na seção anterior, em que a concessão de créditos era completamente coberta pelo correspondente aumento da poupança voluntária. Em consonância com o processo de expansão de crédito provocado pelo negócio bancário exercido com um coeficiente de reserva fracionário que analisamos pormenorizadamente no capítulo IV, a criação de crédito por parte de um banco daria origem a um lançamento contábil que na versão mais elementar teria, como já sabemos, a seguinte estrutura:
Ativo | x
a
x |
Passivo |
1.000.000 Caixa | Depósitos à vista 1.000.000 | |
900.000 Empréstimos concedidos | Depósitos à vista 900.000 |
(76)
(77)
Estes lançamentos, idênticos aos números (17) e (18) do capítulo IV, apresentam, de forma simplificada e sintética, o fato inquestionável de que o banco é capaz de gerar do nada novas unidades monetárias em forma de depósitos ou meios fiduciários que são concedidos ao público como empréstimos ou créditos sem que tenha previamente decidido aumentar o volume de poupança.[64] A seguir estudaremos os efeitos desse importante fato sobre os processos de coordenação e interação econômica que ocorrem na sociedade.
Efeitos da expansão de crédito sobre a estrutura produtiva
A criação de moeda por parte do sistema bancário e a materialização em forma de créditos tem efeitos reais sobre a estrutura produtiva da economia, que é preciso distinguir muito claramente dos que estudamos na seção anterior a propósito do créditos concedidos cobertos por poupança. Mais concretamente, a geração de créditos a partir do nada (ou seja, sem aumento de poupança) aumenta a oferta de crédito ao sistema econômico e, sobretudo, às diferentes etapas de bens de capital da estrutura produtiva. Deste ponto de vista, a maior oferta de créditos resultante da expansão de crédito bancário tenderá, de início, a exercer um efeito muito semelhante ao gerado pelo fluxo de novos créditos procedentes da poupança que analisamos detidamente na seção anterior: tenderá a causar um alargamento e alongamento das etapas da estrutura de produção.
O “alargamento” das diferentes etapas é fácil de entender, uma vez que os créditos são concedidos basicamente aos processos produtivos que constituem cada um delas. Da mesma forma, o crédito concedido para o financiamento de bens de consumo duradouro tem como efeito o alargamento e o alongamento da estrutura produtiva, dado que, como dissemos atrás, os bens de consumo duradouro são economicamente comparáveis aos bens de capital ao longo de todo o período durante o qual podem continuar a prestar os serviços. Assim, mesmo no caso da concessão de empréstimos ao consumo (como financiamento de bens de consumo duradouro), o maior fluxo de créditos tenderá a aumentar a quantidade e a qualidade desse tipo de bens.
O “alongamento” da estrutura produtiva tem origem no fato de os bancos só serem capazes de introduzir no sistema econômico a nova moeda que criam do nada e concedem como créditos reduzindo temporária e artificialmente a taxa de juro do mercado de crédito, bem como facilitando e suavizando as outras condições econômicas e contratuais que exigem dos clientes para lhes concederem empréstimos. Esta redução da taxa de juro do mercado de crédito não se manifesta necessariamente sempre como uma diminuição em termos absolutos. Basta que se verifique pelo menos em termos relativos, ou seja, em relação à taxa de juro que teria predominado no mercado na ausência de expansão de crédito.[65] Por isso, é até compatível com uma subida da taxa de juro em termos absolutos, se essa subida for inferior à que se verificaria num ambiente sem expansão de crédito (por exemplo, se coincidir com um diminuição generalizada do poder de compra do dinheiro); ou ainda com uma redução da taxa de juro, se for ainda mais significativa do que a que se verificaria sem uma expansão de crédito (por exemplo, num processo em que, pelo contrário, o poder de compra da moeda esteja aumentando). Assim, a redução da taxa de juro a que nos referimos é uma realidade que nos explica a teoria e que deverá ser interpretada historicamente tendo em conta as circunstâncias particulares de cada caso.
A redução relativa da taxa de juro causada pela expansão de crédito dá origem a um aumento do valor atual dos bens de capital, uma vez que o fluxo de rendimentos que se espera que produzam sobe de valor ao descontar-se utilizando uma taxa de juro de mercado mais baixa. Da mesma forma, a redução da taxa de juro faz com que surjam como rentáveis projetos de investimento que não o eram até esse momento, dando ocasião ao aparecimento de novas etapas mais afastadas do consumo, isto é, mais capital-intensivas, num processo muito semelhante ao que vimos suceder quando efetivamente se aumentava a poupança voluntária da sociedade. Não obstante, é preciso realçar que embora os efeitos iniciais sejam muito semelhantes aos que vimos no caso do aumento da poupança voluntária, neste caso, o alongamento e alargamento[66] das etapas de produção se verifica, única e exclusivamente, como consequência das maiores facilidades de crédito que a sistema bancário concede a taxas de juro relativamente mais baixas, mas sem qualquer tipo de poupança voluntária prévia. Recordemos que o alongamento sustentado da estrutura produtiva só é possível se anteriormente tiver sido feita a poupança necessária na forma de diminuição na procura final de bens de consumo que faça com que seja possível a manutenção dos diferentes agentes produtivos, com base nos bens e serviços de consumo que ficam por vender, enquanto são terminados os novos processos empreendidos e o resultado mais produtivo comece a chegar ao mercado na forma de bens de consumo.[67]
Resumindo, os empresários decidem se lançar em novos projetos de investimento, alargando e alongando as etapas de bens de capital da estrutura produtiva, ou seja, atuando como se a poupança da sociedade tivesse crescido, quando, na verdade, isso não aconteceu. Isto significa que, tal como no caso do aumento da poupança voluntária analisado na seção anterior, os comportamentos individuais dos diferentes agentes econômicos tendem a se coordenar, tornando-se compatíveis entre si, pelo que os recursos reais que se deixava de consumir e eram poupados permitiam a manutenção e o alongamento da estrutura produtiva. Agora o fato de os empresários responderem à concessão de novos empréstimos na forma de expansão de crédito, se comportando como se tivesse havido poupança, fomenta um processo de desajustamento ou descoordenação no comportamento dos diferentes agentes econômicos. De fato, os empresários começam a investir e a alargar lateral e longitudinalmente a estrutura produtiva real sem que os agentes econômicos tenham decidido aumentar a poupança num volume necessário para financiar os novos investimentos. Trata-se, em suma, de um exemplo típico de indução dos empresários em erro maciço de cálculo econômico ou de estimativa sobre qual deverá ser o resultado dos diferentes cursos de ação. Este erro de cálculo econômico decorre do fato de um dos indicadores essenciais levado em conta pelos empresários para atuar, a taxa de juro (e as maiores ou menores facilidades do mercado de crédito), ser temporariamente manipulado e artificialmente reduzido pelos bancos no processo de expansão de crédito por eles iniciado.[68] Nas palavras de Ludwig von Mises:
But now the drop in interest falsifies the businessman’s calculation. Although the amount of capital goods available did not increase, the calculation employs figures which would be utilizable only if such an increase had taken place. The result of such calculations is therefore misleading. They make some projects appear profitable and realizable which a correct calculation, based on an interest rate not manipulated by credit expansion, would have shown as unrealizable. Entrepreneurs embark upon the execution of such projects. Business activities are stimulated. A boom begins.[69]
A descoordenação manifesta-se, em primeiro lugar, com o aparecimento de um período de otimismo exagerado e desproporcionado, justificado pelo fato de os agentes econômicos se sentirem capazes de expandir a estrutura produtiva sem ao mesmo tempo terem de se sacrificar reduzindo o consumo para gerar poupança. Na seção anterior, vimos que o alongamento da estrutura produtiva era possível graças ao sacrifício prévio exigido para aumentar a poupança. Agora, verificamos que os empresários começam a alargar e alongar as etapas dos processos produtivos sem ter havido essa poupança prévia. A descoordenação não pode ser mais patente nem o excesso de otimismo inicial mais justificado, uma vez que parece ser possível empreender processos de produção mais longos sem qualquer sacrifício ou acumulação prévia de capital. Em suma, existe um equívoco enorme dos empresários que assumem e iniciam processos produtivos que consideram rentáveis, quando, na verdade, não o são. Este equívoco dá azo a um otimismo generalizado, que se baseia na crença de que é possível alargar e alongar as etapas dos processos produtivos sem que ninguém seja obrigado a poupar. A descoordenação intertemporal torna-se cada vez maior: por um lado, os empresários investem como se a poupança da sociedade não parasse de crescer; por outro lado, os consumidores continuam a consumir a um ritmo inalterado sem se preocuparem com aumentar a poupança.[70]
Para ilustrar o efeito inicial da expansão de crédito sobre a estrutura produtiva real, vamos apresentar, seguindo o mesmo sistema utilizado na seção anterior, um conjunto de esquemas que registam graficamente o impacto da expansão de crédito sobre a estrutura produtiva. Advirta-se, no entanto, que é praticamente impossível representar de forma gráfica os complexos efeitos ocorridos no mercado quando a expansão de crédito dá origem ao processo generalizado de descoordenação que estamos descrevendo. Assim, é preciso ter muita cautela em relação à apreciação dos esquemas gráficos que vamos apresentar, que devem ser vistos única e exclusivamente como forma de ilustrar o argumento econômico essencial e facilitar a compreensão. É praticamente impossível apresentar em gráficos tudo o que não seja uma situação estritamente estática, uma vez que os gráficos escondem inevitavelmente processos dinâmicos que se produzem entre os dois tipos de situação. Contudo, feita esta advertência, a representação gráfica das etapas da estrutura produtiva que propomos pode indubitavelmente ajudar a ilustrar o argumento teórico essencial e facilitar muito a compreensão.[71]
No Gráfico V-5, está representado, de forma simplificada, o efeito exercido sobre a estrutura de etapas produtivas pela expansão de crédito provocada pelo sistema bancário sem o necessário aumento prévio da poupança da sociedade. Quando o comparamos com o Gráfico V-1 apresentado neste capítulo, verificamos que o consumo final se mantém inalterado em 100 unidades monetárias, em consonância com o nosso pressuposto de que não se deu qualquer tipo de poupança líquida. Não obstante, é criada nova moeda (depósitos ou meios fiduciários) que entra no sistema por meio de expansão de crédito e da redução relativa da taxa de juro (juntamente com a típica suavização das condições contratuais e de concessão de crédito) necessária para que os agentes econômicos decidam aceitar receber os novos créditos criados. Assim, a taxa de lucro das diferentes etapas produtivas, que, como sabemos, tende a coincidir com a taxa de juro obtida em cada etapa pelo adiantamento de bens presentes em troca de bens futuros, baixa agora dos 11% do nosso exemplo do Gráfico V-1 para pouco mais do que 4% ao ano. Além disso, os novos créditos permitem que os empresários de cada etapa produtiva estejam dispostos a pagar mais pelos fatores de produção originais correspondentes, bem como pelos bens de capital provenientes das etapas anteriores e que servem para os próprios processos produtivos.
No Quadro V-5, apresentamos a oferta e a demanda de bens presentes após uma expansão de crédito bancário sem cobertura de poupança. Podemos verificar que a oferta de bens presentes aumenta das 270 unidades monetárias do exemplo do Quadro V-1 para um pouco mais de 380 unidades, que, por seu lado, são compostas pelas mesmas 270 unidades monetárias do exemplo da seção anterior e que tinham origem em recursos reais de poupança, mais um pouco mais de 113 unidades monetárias criadas pela expansão de crédito dos bancos sem qualquer tipo de cobertura de poupança. Assim, a expansão de crédito provoca o aumento artificial da oferta de bens presentes, que são procurados a taxas de juro mais reduzidas pelos proprietários dos fatores de produção originais e pelos capitalistas das etapas anteriores mais afastadas do consumo. Além disso, o Quadro V-5 mostra que o rendimento bruto do exercício é superior a 483 unidades monetárias, mais 113 unidades do que as do rendimento bruto do exercício antes da expansão de crédito apresentada no Quadro V-2.
O Gráfico V-6 mostra uma representação simplificada do efeito do aumento da expansão de crédito por parte dos bancos (não coberto por um aumento prévio da poupança voluntária) sobre a estrutura produtiva. No nosso exemplo, este efeito se consubstancia no alongamento da estrutura produtiva por meio do aparecimento de novas etapas, a sexta e a sétima, que não existiam antes da expansão de crédito e que estão agora mais afastadas do consumo final. Da mesma forma, dá-se um alargamento das etapas produtivas já existentes (da segunda à quinta). A soma das unidades monetárias que constituem a demanda monetária de cada novo alargamento ou alongamento de etapas produtivas, e que está representada no gráfico pelo sombreado, é precisamente igual às 113,75 u.m. que constituem o acréscimo de rendimento monetário bruto do exercício e que têm origem exclusiva na criação de moeda nova via expansão de crédito gerada pelos bancos.
Ora, não nos deixemos enganar pelo conteúdo do Gráfico V-5, pois a nova estrutura de etapas produtivas que aí apresentamos é baseada numa descoordenação intertemporal generalizada, consequência do grande erro empresarial provocado pelo aparecimento de um volume significativo de novos créditos concedidos a taxas de juro artificialmente reduzidas sem que exista uma poupança prévia real. Esta situação de descoordenação anômala não poderá se manter, e na seção seguinte vamos explicar pormenorizadamente em que consiste a reação inevitável do mercado em relação à expansão de crédito. Isto é, vamos explicar quais são as razões de teoria microeconômica pura que vão pôr fim à descoordenação “macroeconômica” que revelamos e revertê-la.
Analisaremos, pois, as razões pelas quais o processo de descoordenação intertemporal causado inicialmente pela expansão de crédito se irá reverter. Qualquer ataque ao processo social, seja por meio de intervenção, coação sistemática, manipulação dos indicadores essenciais (tais como o preço dos bens presentes em função dos bens futuros ou taxa de juro de mercado), ou concessão de privilégios contrariando os princípios tradicionais do Direito causa espontaneamente processos de interação social que, movidos precisamente pela capacidade de coordenação da função empresarial, tendem a deter e reverter as descoordenações e os erros cometidos. Cabe a Ludwig von Mises o grande mérito de ter sido o primeiro a demonstrar, já em 1912, que a expansão de crédito tem como consequência o boom e otimismo que, mais tarde ou mais cedo, terá de reverter. Segundo o autor:
The increased productive activity that sets in when the banks start the policy of granting loans at less than the natural rate of interest at first causes the prices of production goods to rise while the prices of consumption goods, although they rise also, do so only in a moderate degree, namely, only insofar as they are raised by the rise in wages. Thus the tendency toward a fall in the rate of interest on loans that originates in the policy of the banks is at first strengthened. But soon a countermovement sets in: the prices of consumption goods rise, those of production goods fall. That is, the rate of interest on loans rises again, it again approaches the natural rate.[72]
Embora, como poderemos ver mais adiante, antes de Mises, vários teóricos da Escola de Salamanca (Saravia de la Calle), sobretudo da denominada Escola Monetária ou Currency School, tivessem já intuído que osbooms gerados pela expansão de crédito acabariam por reverter de forma espontânea dando origem a crises econômicas, foi Mises o primeiro a formular e explicar corretamente as razões de teoria econômica pelas quais isso necessariamente acontece. Apesar da importantíssima contribuição inicial de Mises, foi preciso esperar até aos trabalhos do seu mais brilhante aluno, F. A. Hayek,[73] para obtermos uma análise completamente articulada dos diferentes efeitos econômicos da reação do mercado à expansão de crédito e que analisaremos pormenorizadamente na seção seguinte.[74]
A reação espontânea do mercado à expansão de crédito
Vamos agora analisar as razões de natureza microeconômica que vão travar o processo de otimismo exagerado e de expansão econômica artificial que advém da concessão de créditos bancários sem cobertura de um aumento prévio da poupança voluntária. Desta forma, conseguiremos plenamente trazer fenômenos tipicamente macroeconômicos (boom, crise econômica, depressão e desemprego) de volta às raízes e causas microeconômicas fundamentais. De seguida, analisaremos, um a um, os seis efeitos microeconômicos que explicam a reversão do processo de boom precipitado por qualquer expansão de crédito:
1. A subida do preço dos fatores de produção originais. — O primeiro efeito temporário da expansão de crédito é o do aumento do preço relativo dos fatores de produção originais (trabalho e recursos naturais). Esta subida decorre de duas causas distintas que se reforçam mutuamente. Por um lado, a maior demanda monetária de recursos originais por parte dos capitalistas das diferentes etapas do processo produtivo e que é possível graças aos novos créditos que lhes são concedidos pelo sistema bancário. Por outro lado, no que respeita à poupança, é preciso ter em conta que, quando se dá a expansão de crédito sem a cobertura de um aumento prévio da poupança, não são libertados fatores de produção originais das etapas mais próximas do consumo, como acontecia no processo iniciado por um aumento real da poupança voluntária que analisamos anteriormente. Assim, o resultado do aumento da procura de fatores originais de produção nas etapas mais afastadas do consumo, não acompanhado por um aumento da oferta, é uma inevitável subida gradual do preço de mercado dos fatores de produção. Em última instância, esta subida tende a acelerar em razão da própria concorrência entre os empresários das diferentes etapas do processo produtivo, que, pretendendo atrair recursos originais para os projetos, se dispõem a pagar preços cada vez mais altos pelos referidos fatores, preços esses que podem oferecer devido à nova liquidez que acabam de receber do sistema bancário em forma de créditos que esta criou do nada. Tal subida no preço dos fatores originais de produção faz com que os preços dos novos projetos de investimento acabados de iniciar comece a subir para lá do que estava originalmente previsto em orçamento. Porém, este efeito, por si só, ainda não é suficiente para acabar com a onda de otimismo, pelo que os empresários, que ainda se sentem seguros e cobertos pela sistema bancário, costumam seguir em frente com os projetos de investimento sem qualquer receio.[75]
2. Subsequente subida do preço dos bens de consumo. — Mais cedo ou mais tarde, o preço dos bens de consumo começa a subir de forma gradual, enquanto o preço dos serviços dos fatores de produção originais aumenta a ritmo mais lento (ou, por outras palavras, começa a cair em termos relativos). A razão para este fenômeno pode ser encontrada na combinação das três causas seguintes:
a) Em primeiro lugar, o crescimento do rendimento monetário dos fatores de produção originais. De fato, se, como estamos admitindo, a taxa de preferência temporal dos agentes econômicos se mantiver estável e, logo, a proporção dos rendimentos que estes dedicam à poupança, a procura monetária de bens de consumo aumenta como resultado do acréscimo do rendimento monetário recebido pelos fatores de produção originais. Não obstante, este efeito explicaria apenas um aumento semelhante do preço dos bens de consumo se não fosse o caso de se combinar com os efeitos b) e c) seguintes.
b) Em segundo lugar, é preciso ter em conta que o alongamento dos processos produtivos e a maior demanda de fatores de produção originais nas etapas mais afastadas do consumo final dão origem, a curto e médio prazo, a um abrandamento da produção de novos bens e serviços de consumo. Esta diminuição do ritmo de chegada de novos bens de consumo à etapa final do processo produtivo pode ser explicada pelo fato de se retirarem fatores de produção originais das etapas mais próximas do consumo, o que provoca uma escassez relativa dos referidos fatores que afeta a produção e entrega imediata de bens e serviços de consumo final. Além disso, como explica a teoria do capital que esboçamos no início do capítulo, o alongamento generalizado dos processos produtivos e a incorporação nos mesmos de um maior número de etapas mais afastadas do consumo levará inevitavelmente a uma diminuição a curto prazo do ritmo de produção de novos bens de consumo, que durará todo o período necessário para completar os novos processos de investimento recentemente iniciados. É evidente que quanto mais longos forem os processos produtivos, mais etapas irão incluir, tornando-se mais produtivos. Mas, é também claro, que enquanto não terminarem, os novos processos de investimento não permitirão a chegada de um maior número de bens de consumo à etapa final. Por isso, o efeito do aumento do rendimento dos fatores de produção originais e, logo, da procura monetária de bens de consumo, combinado com o efeito do abrandamento ou da diminuição a curto prazo da chegada de novos bens de consumo ao mercado, explica que o preço dos bens e serviços de consumo acabe por crescer mais do que proporcionalmente, ou seja, mais rapidamente do que o aumento da rendimento dos proprietários dos fatores de produção originais.
c) Em terceiro lugar, temos de nos referir ao aumento da demanda monetária por bens de consumo que é provocada pelo aparecimento de lucros empresariais artificiais resultantes do processo de expansão de crédito. A criação de créditos por parte do sistema bancário acarreta, em última instância, um acréscimo da oferta monetária e um aumento do preço dos fatores de produção e dos bens de consumo que acaba por distorcer o cálculo empresarial de perdas e ganhos. De fato, os empresários tendem a calcular os custos em função do custo histórico e do poder de compra das unidades monetárias antes do início do processo inflacionário. No entanto, computam os ganhos com base em rendimentos compostos por unidades monetárias com um poder de compra mais reduzido. Tudo isto leva a que surjam lucros substanciais completamente fictícios, o que cria uma ilusão de prosperidade empresarial que carece de sustentação e explica que os empresários comecem a usar lucros que, na verdade, não existiram, o que aumenta ainda mais a pressão da demanda monetária sobre os bens de consumo final.[76]
É importante ressaltar o efeito do aumento mais do que proporcional do preço dos bens de consumo em relação ao aumento do preço dos fatores de produção originais. Este é o fenômeno que passou mais despercebido a muitos teóricos, que, ao não compreenderem completamente a teoria do capital, não incluíram na análise o fato de que, quando se dedicam mais recursos produtivos a processos mais afastados do consumo que somente após um prolongado período de tempo começam a produzir resultados, se gera um efeito de diminuição do ritmo de chegada de novos bens de consumo à última etapa do processo de produção. Além disso, é um dos fenômenos distintivos mais importantes entre o processo de aumento da poupança voluntária que estudamos anteriormente (e que, por definição, dava origem a um aumento dosestoques de bens de consumo que ficavam por vender, tornando possível o sustento dos proprietários de recursos de produção originais enquanto se esperava pelo término dos novos processos produtivos) e o caso que estamos agora analisando, em que o alongamento dos processos produtivos é financiado pelos créditos criados do nada pela sistema bancário. Quando não existe um aumento prévio da poupança e, assim, não são libertados bens e serviços de consumo para permitir a manutenção da sociedade durante o processo de alongamento das etapas de produção e da transferência dos fatores originais das etapas mais próximas do consumo para as mais afastadas, o preço relativo dos bens de consumo tende a aumentar.[77]
3. Aumento relativo substancial dos lucros contábeis das empresas das etapas mais próximas do consumo final. — O aumento do preço dos bens de consumo a um ritmo mais rápido do que o do preço dos fatores de produção originais faz com que, em termos relativos, os lucros contábeis das empresas das etapas mais próximas do consumo cresçam mais do que os das empresas que desenvolvem a atividade nas etapas mais afastadas. De fato, nas etapas mais próximas do consumo, o preço relativo dos bens e serviços vendidos aumenta a um ritmo muito rápido, ao passo que os custos, embora também subam, não crescem a um ritmo tão elevado. Desta forma, o lucro contábil ou o diferencial entre rendimento e custos aumenta nas últimas etapas. Ao contrário, nas etapas mais afastadas do consumo, o preço dos bens intermediários produzidos em cada etapa não varia de forma significativa, ao passo que o custo dos fatores de produção originais empregados em cada etapa aumenta de forma contínua devido a maior demanda monetária por tais fatores, que, por sua se originam diretamente da expansão do crédito. Assim, o lucro das empresas dedicadas às etapas mais afastadas do consumo tende a diminuir, como resultado contábil de um aumento dos custos mais rápido do que o correspondente aumento das receitas. A combinação destes dois fatores tem por consequência começar a tornar evidente, ao longo de toda a estrutura produtiva, que os lucros contábeis nas etapas mais próximas do consumo são relativamente mais elevados do que os das etapas mais afastadas. Isto inicia um movimento espontâneo dos empresários para reconsiderar os investimentos e até duvidar de sua solidez. Retiram-nos dos projetos de capital-intensivo, que pouco antes haviam empreendido, para os direcionar novamente para as etapas mais próximas do consumo.[78]
4. “Efeito Ricardo”. — Além disso, o aumento mais do que proporcional do preço dos bens de consumo em relação ao crescimento dos rendimentos dos fatores de produção originais faz com que, em termos relativos, os rendimentos reais destes fatores e, concretamente, os salários de trabalho, comecem a baixar. Esta redução dos salários reais ativa o “Efeito Ricardo”, que já explicamos pormenorizadamente, mas que atua agora em sentido contrário ao que o vimos quando havia um aumento real da poupança voluntária. De fato, no caso da poupança voluntária, a diminuição temporária da demanda por bens de consumo dava origem a um aumento dos salários reais que tendia a impulsionar a substituição de trabalhadores por máquinas e, assim, a alongar as etapas produtivas, afastando-as do consumo e tornando-as mais capital-intensivas, mas agora o efeito é exatamente o oposto: o aumento do preço dos bens de consumo numa proporção mais elevada do que o acréscimo dos rendimentos dos fatores de produção faz com que estes últimos, e especialmente os salários, diminuam em termos relativos, o que dá aos empresários um poderoso incentivo econômico para substituir, de acordo com o “Efeito Ricardo”, máquinas e equipamento capital por trabalhadores. Dá-se assim uma diminuição relativa da demanda por bens de capital e de produtos intermédios das etapas mais afastadas do consumo, o que vem agravar ainda mais o problema latente de diminuição dos lucros contábeis (e até de perdas) que se tinha começado a fazer sentir nas etapas mais afastadas do consumo e que mencionamos no número anterior.[79]
Em suma, neste caso, o “Efeito Ricardo”[80] atua num sentido contrário ao que tinha no caso do aumento da poupança voluntária. Nesse caso, vimos que um aumento da poupança dava origem a uma diminuição a curto prazo da procura e do preço dos bens de consumo e, logo, a um aumento dos salários reais que estimulava a substituição de trabalhadores por máquinas, o aumento da procura de bens de equipamento e um alongamento das etapas produtivas. Agora, vemos que o aumento, mais do que proporcional, do preço dos bens de consumo provoca uma diminuição dos salários reais, que encoraja os empresários a substituir máquinas por trabalhadores, o que baixa a procura de bens de equipamento e faz com que os lucros das empresas das etapas mais afastadas do consumo se reduzam ainda mais.[81]
5. Aumento das taxas de juro dos créditos para um nível que chega a ser superior ao que tinham antes do início da expansão de crédito. — O último efeito temporário é o aumento das taxas de juro do mercado de crédito. Este aumento ocorre, mais tarde ou mais cedo, quando o ritmo da expansão de crédito, sem cobertura de poupança real, deixa de crescer. Quando isto acontece, a taxa de juro tenderá a retomar os níveis mais elevados que tinha antes do começo da expansão de crédito. De fato, se, antes do início da expansão de crédito a taxa de juro se situava em cerca de 10 % e os novos créditos criados do nada pelo sistema bancário são colocados nos setores produtivos por meio da redução da taxa de juro a, digamos, 4% e facilitando os restantes requisitos “periféricos” para a concessão de créditos (garantias contratuais, etc.), é evidente que quando a expansão de crédito abrandar, dando-se o caso de não ter havido um aumento da poupança voluntária (como supomos), as taxas de juro voltarão a subir para o nível anterior (ou seja, no nosso exemplo, subirão de 4 para 10 %). Subirão até acima do nível que tinham antes do início da expansão de crédito (ou seja, acima da percentagem original de 10 %) como consequência da combinação dos efeitos dos dois fenômenos seguintes:
a) Por um lado, a expansão de crédito e o consequente aumento da oferta monetária tenderão,ceteris paribus, a elevar o preço dos bens de consumo, ou seja, a diminuir o poder de compra da unidade monetária. Assim, se os prestamistas pretenderem cobrar as mesmas taxas de juro em termos reais, terão de acrescentar uma componente por inflação, ou, por outras palavras, pela diminuição prevista do poder de compra da unidade monetária, à taxa de juro anterior ao início do processo de expansão de crédito.[82]
b) Além disso, há outra importante razão para que as taxas de juro voltem não só ao valor anterior mas até a um nível superior: na medida em que tenham comprometido recursos substanciais em novos projetos de investimento, os empresários que tenham começado o alongamento dos processos produtivos, apesar da elevação das taxas de juro, estarão dispostos a pagar taxas de juro muito altas, desde que possam obter os fundos necessários terminar os projetos que por erro empreenderam. Este é um aspecto importante que tinha passado completamente despercebido até ser estudado ao pormenor por Hayek em 1937.[83] Hayek demonstrou que o processo de investimento em bens de capital gera uma procura autônoma de bens de capital ulteriores, precisamente daqueles que têm um caráter complementar em relação aos já produzidos. Além disso, este fenômeno durará até que acabem as expectativas de que os processos de produção poderão ser terminados. Desta forma, os empresários irão dedicar-se à procura de novos créditos, independentemente do custo, antes de se verem forçados a reconhecer o fracasso e a abandonar definitivamente projetos de investimento nos quais comprometeram o próprio prestígio e quantidades substanciais de recursos. Como consequência de tudo isto, o aumento da taxa de juro no mercado de crédito que tem lugar no final do boom não é devido apenas a fenômenos monetários, como se pensava antes de Hayek, mas também a fatores reais que afetam a procura de novos créditos.[84] Em síntese, os empresários, empenhados em completar as novas etapas mais capital-intensivas que iniciaram e que começam a ver perigar, recorrem aos bancos procurando doses adicionais de créditos, que são oferecidos a juros cada vez mais elevados. Começam assim um “combate mortal” para obter financiamento adicional.[85]
6. O aparecimento de perdas contabilísticas nas empresas das etapas relativamente mais afastadas do consumo: o inevitável advento da crise.— A combinação dos cinco efeitos anteriores faz com que, mais cedo ou mais tarde, comecem a surgir perdas contábeis substanciais nas empresas que desenvolvem a atividade nas etapas relativamente mais afastadas do consumo. Tais perdas contábeis, comparadas com os lucros que se obtêm nas etapas mais próximas do consumo revelam final e inquestionavelmente os graves erros empresariais cometidos, bem como a necessidade imperiosa de os reconverter, por meio da paralisação e posterior liquidação dos projetos de investimento erroneamente empreendidos, retirando recursos produtivos das etapas mais afastadas do consumo para transferi-los de volta para as mais próximas.
Em suma, os empresários começam a notar que é necessário efetuar um reajustamento maciço da estrutura produtiva. Isto é, uma reconversão ou “reestruturação” por intermédio da qual saiam do projetos que empreenderam nas etapas industriais de bens de capital e que não conseguiram completar com sucesso, transferindo o remanescente dos recursos para as indústrias mais próximas do consumo. Torna-se necessário liquidar os projetos de investimento que não se revelaram rentáveis e transferir de forma maciça os recursos produtivos correspondentes, em especial a mão-de-obra, para as etapas mais próximas do consumo. Surge, assim, a crise e a depressão econômica, basicamente por falta de poupança de recursos reais para completar projetos de investimento que, como se tornou claro, eram demasiado ambiciosos. A crise manifesta-se numexcesso de investimento nas etapas mais afastadas do consumo, ou seja, nas indústrias de bens de capital (altos-fornos, estaleiros, construção, comunicações, novas tecnologias, etc.) e nas demais etapas que alargaram a estrutura de bens de capital; bem como numa paralela escassez relativa de investimento nas indústrias mais próximas do consumo. A combinação dos dois erros tem como resultado o mau investimento generalizado dos recursos produtivos, ou seja, um investimento com um estilo, uma qualidade, uma quantidade e uma distribuição geográfica e empresarial próprios de uma situação em que a poupança voluntária é muito maior do que a que realmente havia. Em suma, os empresários investiram de forma inadequada, um montante indevido em lugares errados da estrutura produtiva, porque pensavam, iludidos pela expansão de crédito do sistema bancário, que a poupança da sociedade seria muito maior. Os agentes econômicos dedicaram-se a alargar as etapas mas intensivas em capital com a esperança de que, depois de terminados os novos processos de investimento, haveria um aumento muito significativo do fluxo final de bens e serviços de consumo. No entanto, o processo de alongamento da estrutura produtiva exige um período de tempo muito prolongado até que a sociedade possa beneficiar do correspondente aumento da produção de bens e serviços de consumo. Na verdade, os agentes econômicos não se estão dispostos a esperar tanto tempo, e mostram-no por intermédio de suas ações procurando os bens e serviços de consumoagora, ou seja, muito mais cedo do que seria de exigir para o término do alongamento iniciado na estrutura produtiva.[86]
A poupança da sociedade pode ser bem ou mal investida. A expansão de crédito criado a partir do nada pelo sistema bancário faz com que os empresários atuem como se a poupança da sociedade tivesse aumentado muito, precisamente o volume criado pelo sistema bancário na forma de novos créditos ou meios fiduciários. Os processos microeconômicos que analisamos nos pontos anteriores revelam, espontânea e inevitavelmente, o erro cometido. Este erro decorre do fato de que, durante muito tempo, os agentes econômicos acreditaram que a poupança disponível era muito maior do que a existente de fato. Esta situação é muito semelhante àquela em que se encontraria o nosso Robinson Crusoé da seção 1 se, ao poupar um cesto de amoras, que lhe permitiria construir um bem de capital durante um máximo de cinco dias sem ter de dedicar-se à colheita das mesmas, pensasse, por um erro de cálculo,[87] que com essa poupança poderia começar a construção da sua cabana. Depois de cinco dias a escavar os alicerces e a recolher os materiais, teria consumido as amoras do cesto sem ter sido capaz de terminar o seu ilusório projeto de investimento. Ou, seguindo um exemplo de Mises, o erro cometido é, em traços gerais muito semelhante aquele em que cairia um construtor se, calculando mal a quantidade de materiais à disposição, os usasse todos na construção dos alicerces, sendo assim forçado a deixar o imóvel inacabado.[88] Trata-se, portanto, como refere Hayek, de uma crise de excesso de consumo ou, por outras palavras, de escassez de poupança, que se revelou não ser suficiente para completar os investimentos mais capital-intensivos começados por erro. A situação seria semelhante à dos habitantes imaginários de uma ilha perdida que, tendo começado a construção de uma enorme máquina capaz de cobrir por completo as necessidades da população, tivessem esgotado todas as poupanças e o capital antes de a terminar ficando sem outro remédio a não ser abandonar temporariamente a construção e dedicar de novo toda a energia à procura dos alimentos diários necessários à sua subsistência, ou seja, sem contar com qualquer tipo de equipamento capital.[89] Como consequência de tudo isto, muitas fábricas acabam por fechar, especialmente nas etapas mais afastadas do consumo, uma grande quantidade de projetos de investimento começados errôneamente são paralisados e muitos trabalhadores despedidos. Além disso, o pessimismo se alastra por toda a sociedade e a ideia de que se está perante uma crise econômica inexplicável, pouco tempo depois de se ter começado a acreditar que o boome o otimismo, longe de ter alcançado o auge, iriam ter uma duração ilimitada, desmoraliza até os que mais otimistas.[90]
No Gráfico V-7, está representado estado da estrutura produtiva depois da crise e da recessão econômica provocadas pela expansão de crédito (sem cobertura de um aumento prévio da poupança voluntária) terem se tornado evidentes e depois de efetuados os reajustamentos necessários. Como podemos verificar, trata-se de uma estrutura produtiva mais achatada, em que existem apenas cinco etapas, uma vez que as duas etapas mais próximas do consumo desapareceram. Como vimos nos Gráficos V-5 e V-6, a expansão de crédito tinha permitido a sua edificação. Além disso, o Quadro V-6 mostra que, embora o rendimento bruto do exercício seja idêntico ao apresentado no Quadro V-5 (483,7 unidades monetárias), a distribuição entre a parte dedicada à procura direta de bens e serviços de consumo final e a procura de bens intermediários de produção variou em favor da primeira. De fato há agora 132 unidades monetárias de demanda monetária de bens de consumo, um terço mais do que as 100 unidades de demanda monetária que existiam no exemplo do Gráfico V-5 e do Quadro V-5. Entretanto, a demanda monetária global de bens intermédiários de produção baixou, passando de 383 para 351 unidades. Em suma, há uma estrutura mais “achatada” que, por ser menos capital-intensiva, dá origem a uma produção de bens e serviços de consumo mais baixa, que, ainda assim, tem uma demanda monetária mais elevada. Tudo isto gera um forte aumento do preço dos bens e serviços de consumo e um empobrecimento generalizado da sociedade. Esta situação torna-se evidente devido à descida, em termos reais, do preço dos diferentes fatores de produção, que, apesar do aumento nominal dos rendimentos monetários, acabam por perder substancialmente em termos reais, dado o crescimento mais rápido do preço dos bens de consumo. Além disso, a taxa de juro, ou taxa de lucro contábil que cada etapa tende atingir aumentou acima dos 13,5%, ou seja, para um nível que chega a ser superior à taxa de juro existente no mercado de crédito antes de sua expansão. Esta taxa reflete os efeitos do prêmio para compensar a diminuição do poder de compra do dinheiro, da maior concorrência existente entre os diferentes empresários, que precisam desesperadamente de novos empréstimos e do aumento dos componentes de risco, e da incerteza empresarial que influencia a taxa de juro sempre que o pessimismo e a desconfiança econômica se propagam.
É importante realçar que a estrutura produtiva com que se fica depois do ajuste necessário, e que quisemos ilustrar com o Gráfico V-7, não pode continuar a ser igual à que havia antes da expansão de crédito. Isto porque as circunstâncias se alteraram significativamente. Por um lado, houve irremediáveis e significativas perdas de capital, visto que os escassos recursos da sociedade foram, em muitas ocasiões, canalizados em investimentos que não podem ser reestruturados e, portanto, destituídos de valor econômico. Isto provoca um empobrecimento generalizado da sociedade, que se manifesta numa diminuição do equipamento essencial per capita, o que provoca uma diminuição da produtividade do trabalho e, consequentemente, uma redução ainda maior dos salários reais. Além disso, ocorre uma mudança na distribuição do rendimento entre os diferentes fatores de produção, assim como uma reestruturação de todos os processos de investimento que, tendo sido empreendidos por erro, conservavam ainda algum uso e valor econômico. Todas estas novas circunstâncias fazem com que a estrutura produtiva seja qualitativamente muito distinta e quantitativamente muito mais achatada e empobrecida do que a que existia antes dos bancos iniciarem a expansão de crédito.[91]
Em resumo, explicamos os fundamentos microeconômicos da reação espontânea que o mercado tende a produzir sempre que se verifica uma expansão de crédito sem cobertura de um aumento da poupança voluntária e que dá origem a ciclos sucessivos de auge e depressão que regularmente afetam as economias ocidentais desde há quase dois séculos (e até muito antes, como vimos no Capítulo II). Demonstramos ainda que não existe qualquer possibilidade teórica que um aumento dos créditos pelo sistema bancário, que não seja coberto pelo correspondente aumento prévio da poupança voluntária, permita reduzir os sacrifícios exigidos por qualquer processo de crescimento econômico e promova e acelere esse crescimento sem que os cidadãos decidam voluntariamente sacrificar-se e poupar.[92] Uma vez que estas conclusões são muito importantes, vamos dedicar a seção seguinte a analisar os efeitos específicos que têm sobre o setor bancário e, em especial, de que forma explicam que este não possa funcionar de forma autônoma (ou seja, sem a existência de um banco central) utilizando um coeficiente de reserva fracionário. Assim, terminaremos a análise teórica iniciada no capítulo III para demonstrar teoricamente que era impossível ao próprio sistema bancário se assegurar contra a suspensão de pagamentos e as falências por intermédio do coeficiente de reserva fracionário, uma vez que o pretenso seguro (o coeficiente de reserva fracionário) é precisamente o que aciona o processo de expansão de crédito, boom, crise e recessão econômica que acaba sempre por prejudicar a solvência e capacidade de pagamento dos bancos.
4
A SISTEMA BANCÁRIO, O COEFICIENTE DE RESERVA FRACIONÁRIO
E A LEI DOS GRANDES NÚMEROS
A análise que fizemos até este ponto permite que nos pronunciemos sobre se é possível, como defende um setor da doutrina, aplicar a Lei dos Grandes Números para assegurar o exercício do sistema bancário com um coeficiente de reserva fracionário. Trata-se, afinal, de responder ao argumento de que os bancos, de acordo com a Lei dos Grandes Números, não precisam de mais do que de dispor, como reserva de caixa, de uma fração do dinheiro que recebem em depósito para fazer frente aos pedidos de liquidez feitos pelos clientes. Este argumento constitui o cerne das doutrinas jurídicas que procuram justificar o contrato bancário de depósito monetário irregular com reserva fracionária e que já estudamos criticamente no capítulo III.
A referência à Lei dos Grandes Números nesta área equivale a pretender aplicar os princípios da técnica dos seguros para cobrir o risco de levantamento dos depósitos, risco esse que se considera a priori é possível quantificar e que, por isso, é perfeitamente assegurável. No entanto, esta crença é teoricamente errada e baseia-se, como vamos ver, numa concepção equívoca sobre a natureza dos fenômenos que nos ocupam. De fato, os fenômenos relacionados com a atividade bancária, longe de constituírem o tipo de fenômenos que correspondem ao mundo real e cujo risco é assegurável, encontram-se dentro da órbita da ação humana, imersos, portanto, numa situação de incerteza (não de risco), que não é, pela sua própria natureza, tecnicamente assegurável.
Na verdade, no campo da ação humana, o futuro é sempre incerto, no sentido em que ainda está por construir e em que os atores que vão ser os protagonistas têm sobre ela apenas certas ideias, imagens mentais ou expectativas que esperam tornar realidade por intermédio da ação pessoal e da interação com os outros atores. Além disso, o futuro está aberto a todas as possibilidades criativas do homem, pelo que cada ator o enfrenta com uma incerteza inevitável, que poderá ser minorada graças aos comportamentos padronizados próprios e alheios (instituições) e ao bom exercício da função empresarial, mas nunca poderá ser eliminada totalmente.[93] A natureza aberta e inevitável da incerteza de que falamos faz com que não possam ser aplicadas ao campo da interação humana as noções tradicionais da probabilidade objetiva e subjetiva, nem tampouco a concepção bayesiana desenvolvida em torno desta última. Com efeito, o teorema de Bayes exige uma estrutura estocástica subjacente de natureza estável que é incompatível com a capacidade criativa do ser humano.[94] Isto acontece não só porque não se conhecem sequer todas as alternativas ou casos possíveis, mas também porque, além disso, o ator possui apenas determinadas crenças ou convições subjetivas — denominadas por Mises probabilidades de casos ou eventos únicos[95] — que à medida que sofrem modificações ou ampliações tendem a variar por surpresa, ou seja, de forma radical e não convergente, todo o mapa de crenças e conhecimentos do ator. Desta forma, o ator descobre continuamente situações completamente novas que antes não teria sequer sido capaz de intuir.
Esta concepção da incerteza, correspondente a fenômenos próprios do mundo da ação humana e, portanto, da economia é radicalmente diferente do conceito de risco que se dá no mundo da física e da ciência natural e pode resumir-se no Quadro V-7 seguinte:
Quadro V-7
Mundo da Ciência Natural | Mundo da Ação Humana |
1. Probabilidade de classe: É conhecido ou pode ser conhecido o comportamento da classe, mas não o comportamento individual dos elementos. | 1. “Probabilidade” de caso ou evento único: não existe classe, mas são conhececidos alguns fatores que afetam o evento único e não outros. A própria ação pode provocar ou criar o evento. |
2. Existe uma situação de risco, assegurávelpara toda a classe. | 2. Há incerteza inevitável, devido ao caráter criativo da ação humana. A incerteza não é, portanto, assegurável. |
3. A probabilidade pode ser expressa emtermos matemáticos. | 3. A probabilidade não pode ser expressa em termos matemáticos. |
4. Chega-se à probabilidade por meio da lógica e da investigação empírica. O teorema de Bayes permite aproximar a probabilidade de classe, à medida que aparece informação nova. | 4. Descobre-se por meio da compreensão eestimativa empresarial. Cada nova informação modifica ex novo todo o mapa de crenças e expectativas (conceito desurpresa). |
5. É objeto de investigação por parte docientista natural. | 5. Conceito típico utilizado pelo ator-empresário, ou pelo historiador. |
É evidente que os fenômenos relativos ao levantamento mais ou menos maciço e imprevisto dos depósitos de um banco por parte dos clientes correspondem à esfera da ação humana e estão imersos numa situação de incerteza que, pela sua natureza, não é tecnicamente assegurável. A razão técnico-econômica da impossibilidade de assegurar a incerteza radica, basicamente, no fato de que a própria ação humana provoca ou cria os eventos que se pretende assegurar. Ou seja, os fenômenos de levantamento de depósitos são inexoravelmente afetados pela existência do próprio seguro, pelo que não existe a necessária independência estocástica entre a existência do “seguro” (coeficiente de reserva fracionária pretensamente estabelecido em função da Lei dos Grandes Números e da experiência dos banqueiros) e a ocorrência do fenômeno (crise e pânico bancário que dão origem à retirada massiva de depósitos) que precisamente se pretende assegurar.[96]
A demonstração detalhada da estreita relação existente entre a tentativa de aplicar a Lei dos Grandes Números mantendo um coeficiente de reserva fracionário e o fato de que este “seguro” gera e fomenta, inevitavelmente, processos de levantamento de depósitos é simples e tornou-se possível graças ao desenvolvimento da teoria austríaca ou teoria monetária dos ciclos econômicos que vimos neste capítulo. De fato, a atividade bancária com reserva fracionária permite a concessão em massa de créditos sem a cobertura de um aumento prévio da poupança (expansão de crédito) e dá origem, como vimos, num primeiro momento, a um alargamento e alongamento artificial da estrutura produtiva (ilustrado no sombreado do Gráfico V-6). No entanto, mais cedo ou mais tarde, e por razões microeconômicas que analisamos detidamente na seção anterior, ativam-se processos sociais que tendem a reverter os erros empresariais cometidos, voltando-se a uma estrutura de produção como a que ilustramos no Gráfico V-7. Neste gráfico, não só desaparecem por completo as novas etapas com as quais se tinha tentado alongar a estrutura produtiva (etapas sexta e sétima do Gráfico V-6), como são liquidados os “alargamentos” das etapas segunda a quinta, o que gera um empobrecimento geral da sociedade provocado pelo mau investimento dos escassos recursos reais guardados em poupança. Como consequência disso, um número significativo de receptores de empréstimos provenientes da expansão de crédito acabam por não ser capazes de os devolver e se convertem em devedores em mora, o que dá início a um processo em que se multiplicam quer as suspensões de pagamento quer as falências. A mora passa a afetar, assim, uma proporção substancial dos empréstimos concedidos pelos bancos. Com efeito, o valor de mercado dos projetos de investimento iniciados por erro se reduz a uma fração do inicial ou chega a desaparecer por completo, depois da emergência da crise e da demonstração de que esses projetos não deveriam ter sido iniciados.
Esta diminuição generalizada do valor de muitos bens de capital transfere-se para os ativos dos bancos num volume que pode ser ilustrado graficamente com o montante dos empréstimos correspondentes à zona sombreada do Gráfico V-6. Este gráfico apresenta, em termos monetários, o alongamento e alargamento errôneo da estrutura produtiva que se procurou efetuar nas fases expansivas do ciclo econômico, graças ao financiamento fácil e barato dos créditos concedidos pela sistema bancário (sem qualquer cobertura de um aumento prévio da poupança real voluntária). Assim como se tornam evidentes os erros cometidos e se abandonam, liquidam ou reestruturam os “alongamentos” e os “alargamentos” da estrutura produtiva, o valor dos ativos de todo o sistema baixa. Além disso, esta diminuição do valor dos ativos do sistema bancário é gradualmente acompanhada por um processo de contração do crédito que já analisamos do ponto de vista contábil no fim do capítulo IV e que tende a agravar ainda mais os efeitos negativos da recessão sobre os ativos do sistema bancário. De fato, os empresários que felizmente conseguem salvar as próprias empresas da suspensão de pagamentos e da falência reestruturam os processos de investimento que iniciaram, paralisando-os, liquidando-os e acumulando liquidez necessária para devolver os empréstimos que obtiveram do sistema bancário. Acresce que o pessimismo e a desmoralização dos agentes econômicos[97]faz com que a solicitação e a concessão de novos créditos não seja capaz de compensar o ritmo a que estes são liquidados ou devolvidos. O resultado é uma grande contração de crédito.
Assim, a conclusão a tirar é a de que a depressão econômica provocada pela expansão de crédito promove uma diminuição generalizada do valor dos ativos contábeis do sistema bancário, precisamente no momento em que o otimismo e a confiança dos depositantes são menores. Ou seja, o valor dos empréstimos e de outros ativos do sistema bancário diminui devido à recessão e à falta de pagamento, ao passo que o passivo correspondente, os depósitos agora em poder de terceiros, permanece inalterado. Contabilisticamente, a situação patrimonial de muitos bancos se torna problemática e difícil, pelo que se começa a anunciar suspensões de pagamentos e falências. Como é lógico, do ponto de vista teórico, não é possível determinara priori quais serão os bancos mais afetados em termos relativos. No entanto, é possível prever com segurança que aqueles que forem marginalmente menos solventes terão grandes dificuldades de liquidez e estarão à beira da suspensão de pagamentos e até da falência. Esta situação pode, muito facilmente, criar uma crise generalizada de confiança em todo o sistema bancário que pode levar a que os particulares decidam, em massa, levantar os depósitos, não apenas dos bancos com maiores dificuldades relativas, mas também, por um efeito de contágio, de todos os outros. Com efeito, todos os bancos que operam com reserva fracionária são inerentemente insolventes, sendo as diferenças entre uns e outros apenas de grau e relativamente pequenas. Assim, a contração de crédito e financeira é inevitável. Este tipo de contração repetiu-se um várias ocasiões ao longo da história, desde que existem bancos que operam com reserva fracionária, como já vimos quando analisamos a crise econômica produzida pela sistema bancário em Florença no século XIV. Em todo o caso, ficou demonstrado que o sistema de reserva fracionária ativa, de forma endógena, processos que impossibilitam que se assegure a sistema bancário por meio da aplicação da Lei dos Grandes Números, provocando crises sistemáticas no sistema bancário, que, mais tarde ou mais cedo, lhes crias dificuldades insuperáveis. Assim, deixa de fazer sentido um dos argumentos mais usados para justificar tecnicamente a existência de um contrato que, tal como o de depósito bancário de dinheiro com reserva fracionária, possui, como vimos no capítulo III, uma natureza jurídica inadmissível, uma vez que tem origem única e exclusivamente na concessão de um privilégio por parte dos poderes públicos aos bancos privados.
Poderia pensar-se, errôneamente, que o significativo descumprimento bancário e a destruição generalizada de valores no ativo dos balanços dos bancos, resultado da crise econômica, poderiam ser compensados, sem nenhum problema contábil, pela correspondente eliminação dos depósitos que equilibram os referidos empréstimos no passivo. Não foi em vão que demonstramos no capítulo IV que a sistema bancário cria depósitos no processo de expansão de crédito. No entanto, economicamente, este argumento não é válido. Embora seja certo que a criação de oferta monetária em forma de depósitos por parte dos bancos se efetua, num primeiro momento, juntamente com a criação de créditos (e ambos sejam concedidos aos mesmos atores), não é menos verdade que os receptores dos empréstimos se desfazem imediatamente das unidades monetárias recebidas, usando-as para pagar aos proprietários dos fatores de produção originais e aos fornecedores. Desta forma, os receptores diretos mantêm uma dívida para com o banco no valor dos empréstimos, mas os depósitos trocam de titulares logo de seguida. Aqui radica, precisamente, a insolvênciainerente dos bancos que põe em perigo a sobrevivência durante as etapas de crise econômica aguda. De fato, os empresários titulares dos empréstimos cometem erros empresariais de forma generalizada que se tornam evidentes durante a crise. Esses erros consubstanciam-se em processos de investimento em bens de capital em que se materializam os empréstimos, cujo valor baixa drasticamente ou se perde totalmente, o que gera um substancial descumprimento e a perda de valor de grande parte dos ativos dos bancos. No entanto, ao mesmo tempo, os titulares dos depósitos, que já são outros, mantêm os direitos intactos contra os bancos que iniciaram originalmente a expansão de crédito, pelo que o passivo dos bancos não pode ser eliminado ao mesmo ritmo da diminuição de valores no ativo. O resultado é um desajustamento contábil que leva à suspensão de pagamentos e à falência das instituições bancárias marginalmente menos solventes. Se o pessimismo e a falta de confiança se generalizam, a situação de insolvência pode chegar a afetar todos os bancos, gerando-se assim a terrível falência do sistema bancário e do sistema monetário baseado na sistema bancário com um coeficiente de reserva fracionário. Esta instabilidade inerente ao sistema bancário baseado na reserva fracionária é o fator que torna inevitável a existência de um banco central como prestamista de última instância, bem como que o sistema de completa liberdade bancária exija o regresso aos princípios tradicionais do Direito para o seu correto funcionamento e, logo, a manutenção de um coeficiente de caixa de 100%.
Ora, se a utilização de um contrato de depósito bancário de dinheiro que não cumpre a obrigação de manter um coeficiente de caixa de 100% pode até levar à ruína do sistema bancário (e de muitos dos clientes), como é que é possível que ao longo da história os banqueiros tenham insistido nesta forma de atuação? Os motivos e as circunstâncias que deram origem ao contrato de depósito bancário com reserva fracionária foram estudados nos três primeiros capítulos deste livro. Aí vimos que este tipo de contrato teve origem na concessão de um privilégio por parte dos governos aos banqueiros de forma a que estes pudessem utilizar os dinheiro dos depositantes em benefício próprio, a maior parte das vezes em forma de créditos concedidos ao próprio outorgante do privilégio, ou seja, o governo ou estado, sempre submetido a pressões de tipo financeiro. Se os governos tivessem definido e defendido adequadamente os direitos de propriedade dos depositantes, cumprindo assim a sua função essencial, esta tão anômala instituição nunca teria surgido.
Vamos agora tecer algumas considerações adicionais sobre o aparecimento do contrato de depósito bancário de moeda com reserva fracionária. Neste âmbito, realcemos a grande dificuldade teórica que, dada a natureza abstrata e difícil dos processos sociais relacionados com o crédito e a moeda, faz com que muito poucos cidadãos, até os mais envolvidos na matéria, não tenham sido capazes de analisar e compreender os efeitos que a expansão de crédito acaba por gerar. Pelo contrário, em geral, ao longo da história, sempre foram mais as vozes que consideraram positivos os efeitos da expansão de crédito sobre a economia, concentrando-se única e exclusivamente nos resultados mais visíveis e a curto prazo (ondas de otimismo,boom econômico). Mas, que dizer dos próprios banqueiros que, ao longo da história, experimentaram várias crises e pânicos bancários que repetidamente puseram em perigo e chegaram até a pôr fim à sua atividade? Uma vez que os banqueiros sofreram no próprio corpo as consequências do exercício da sua atividade com um coeficiente de reserva fracionário, poderíamos ser levados a pensar que é de próprio interesse alterar a atividade, adaptando-a aos princípios tradicionais do Direito (ou seja, utilizando um coeficiente de caixa de 100%). Até Ludwig von Mises defendeu, num primeiro momento esta ideia,[98] que, no entanto, não encontra justificação na experiência histórica, em que os bancos reincidiram, uma e outra vez, na reserva fracionária (apesar dos graves riscos que implica), nem na análise teórica. De fato, mesmo quando os banqueiros têm consciência de que o desenvolvimento do sistema utilizando uma reserva fracionária está, no longo prazo, condenado ao fracasso, a verdade é que a possibilidade de criar dinheiro do nada decorrente de qualquer expansão de crédito gera lucros exorbitantes, o que faz com que a tentação de reincidir na prática da reserva fracionária se torne insuportável. Além disso, o banqueiro individual não têm a certeza absoluta de que o seu banco será um dos bancos marginais que acabarão por sofrer um suspensão de pagamentos ou uma falência, uma vez que tem sempre a esperança de poder se retirar do processo antes do início da crise, solicitando a devolução dos empréstimos e evitando devedores. Ativa-se assim um processo típico de tragédia de bens comuns, que analisaremos mais detidamente no capítulo VIII e que, como se sabe, surge sempre que não são definidos adequadamente os direitos de propriedade de terceiros, tal como no caso que aqui nos ocupa. Por tudo isto, não surpreende que os bancos sintam uma tentação insuportável de expandir o crédito antes dos outros, tirando total proveito dos lucros dessa expansão e fazendo recair sobre os restantes bancos, de forma diluída, as muito perniciosas consequências da expansão de crédito.[99]
Por último, a impossibilidade teórica de assegurar o risco de levantamento de depósitos via um coeficiente de reserva fracionário explica também que, como veremos no capítulo VIII, tenham sido os próprios banqueiros os principais defensores da existência de um banco central que, como prestamista de última instância, pudesse garantir-lhes a sobrevivência durante as fases de sufoco, que a experiência já tinha demonstrado que surgiam recorrentemente.[100] Desta perspectiva, o nascimento da instituição do banco central aparece na história como uma consequência inevitável do próprio privilégio em virtude do qual se permite que os bancos emprestem a maior parte do dinheiro que recebem em forma de depósitos mantendo um coeficiente de reserva fracionário. É evidente que enquanto não for restabelecido o princípio tradicional do Direito, e, portanto, o coeficiente de reserva de 100%, será impossível prescindir do banco central e instaurar um verdadeiro sistema de sistema bancário livre submetida ao Direito e que não afete de forma negativa o curso da economia gerando regularmente etapas desestabilizadoras de expansão artificial e de crise econômica.[101]
[1] A teoria do capital que vamos apresentar é a chave para entender a forma como a expansão de crédito do sistema bancário distorce a estrutura produtiva real da economia. De fato, geralmente os críticos da teoria austríaca ou dos ciclos econômicos que apresentamos neste capítulo erram por não terem em conta a teoria do capital. É o que acontece com, por exemplo, Hans-Michael Trautwein e os dois trabalhos: “Money, Equilibrium, and the Business Cycle: Hayek’s Wicksellian Dichotomy”, History of Political Economy, vol. 28, n.º 1, Primavera de 1996, pp. 27-55, e “Hayek’s Double Failure in Business Cycle Theory: A Note”, cap. 4 de Money and Business Cycles: The Economics of F.A. Hayek, M. Colonna e H. Hagemann (eds.), Edward Elgar, Aldershot 1994, vol. I, pp. 74-81.
[2] Sobre os conceitos de ação humana, plano de atuação, a concepção subjetiva do tempo e a ação entendida como um conjunto de etapas sucessivas, pode consultar-se Jesus Huerta de Soto, Socialismo, cálculo econômico y función empresarial, ob. cit., pp. 43 e ss.
[3] O desenvolvimento de uma Ciência Econômica sempre baseada no ser humano entendido como ator criativo e protagonista de todos os processos e eventos sociais (concepção subjetivista) é, indubitavelmente, a contribuição mais importante e definidora da Escola Austríaca de Economia, fundada por Carl Menger. De fato, Menger considerou imprescindível abandonar o objetivismo estéril da escola clássica anglo-saxônica, obcecada pela suposta existência de entes externos de caráter objetivo (classes sociais, agregados, fatoresmateriais de produção, etc.), defendendo que o cientista de Economia devia sempre se pôr na perspetiva subjetivista do ser humano que atua, sendo que essa perspetiva influi determinante e inevitavelmente na forma de elaboração de todas as teorias econômicas, quer seja no conteúdo científico quer seja nas conclusões e resultados práticos. Sobre o tema, ver Jesu?s Huerta de Soto, “Ge?nesis, esencia y evolucio?n de la Escuela Austriaca de Economi?a”, em Estudios de economi?a poli?tica, ob. cit., cap. I, pp. 17-55.
[4] Esta classificação e terminologia é originalmente de Carl Menger, cuja teoria sobre os bens econômicos de ordem distinta é umas das mais importantes consequências lógicas da concepção subjetivista da Economia. Carl Menger, Grundsatze der Volkswirthschaftslehre, ed. Wilhelm Braumuller, Viena 1871. A expressão utilizada por Menger para referir-se aos bens de consumo ou de primeira ordem é “Güter der ersten Ordnung” (p. 8 da edição original alemã).
[5] Sobre a concepção subjetiva, experimental e dinâmica do tempo como a única aplicável à ação humana na Ciência Econômica, consultar o cap. IV da obra de Gerald P. O’Driscoll e Mario J. Rizzo, The Economics of Time and Ignorance, Basil Blackwell, Oxford 1985, pp. 52-70.
[6] Como referiu corretamente Ludwig M. Lachmann, o desenvolvimento econômico encerra não só um aumento do número de etapas produtivas, mas também um aumento na complexidade de cada uma delas e, portanto, uma mudança na sua composição. Ludwig M. Lachmann, Capital and its Struture, Sheed, Andrews & McMeel, Kansas City 1978, p. 83. Ver, ainda, Peter Lewin, “Capital in Disequilibrium: A ReexaminAction of the Capital Theory of Ludwig M. Lachmann”, History of Political Economy, vol. 29, n.º 3, Outono de 1997, pp. 523-548; e Roger W. Garrison, Time and Money: The Macroeconomics of Capital Struture, Routledge, Londres e Nova York 2001, pp. 25-26.
[7] Como refere, e bem, José Castañeda: “Cuantos más medios auxiliares se introducen en el proceso de la produción, más largo se hace éste y, en general, se admite que resulta más produtiva. Claro es que pueden existir procesos más indiretos, esto es, más largos o con mayor rodeo, que no sean más produtivos, pero éstos no se toman en consideración, porque no se aplican, y la introdución de un proceso de mayor duración sólo se efetúa cuando eleva el rendimiento.” José Castañeda Chornet, Leciones de teoría econômica, Editorial Aguilar, Madrid 1972, p. 385. A tradução dessa passagem poderia ser: “Quanto mais meios auxiliares forem introduzidos no processo de produção, mais longo este se torna, em geral, admitidamente mais produtiva. É, no entanto, evidente, que podem existir processos mais indiretos, ou seja, mais longos e difíceis, que não sejam mais produtivos. Contudo, estes não são levados em conta porque não se aplicam, e a introdução de um processo de maior duração só é efetuada com eleva o rendimento.”
[8] A lei da preferência temporal pode remontar à São Tomás de Aquino, e foi já expressamente enunciada por um dos seus mais brilhantes discípulos, Giles Lessines, para quem: “res futurae per tempora non sunt tantae existimActionis, sicut eadem colletae in instanti nec tantam utilitatem inferunt possidentibus, propter quod oportet quod sint minoris existimActionis secundum iustitiam”, ou seja, “os bens futuros não são tão valorizados como os mesmos bens disponíveis num momento imediato do tempo, nem têm a mesma utilidade para os proprietários, pelo que deve se considerar que têm um valor mais reduzido de acordo com a justiça” (Aegidius Lessines, De usuris in communi et de usurarum contratibus, opusculum LXVI, 1285, p. 426; citado por Bernard W. Dempsey, Interest and Usury, American Council of Public Affairs, Washington D.C. 1943, nota 31 da p. 214). Esta ideia foi posteriormente apresentada por São Bernardino de Siena, Conrad Summenhart e Marti?n Azpilcueta em 1431, 1499 e 1556, respetivamente (ver Murray N. Rothbard, An Austrian Perspetive on the History of Economic Thought, vol. I, Economic Thought before Adam Smith, ob. cit., pp. 85, 92, 106-107 e 399-400.). Mais tarde, Turgot, Rae, Böhm-Bawerk, Jevons, Wicksell, Fisher e, sobretudo, Frank Albert Fetter e Ludwig von Mises desenvolveram as suas sugestões no âmbito da teoria econômica.
[9] Num mundo sem preferência temporal nunca nada seria consumido, tudo seria poupado e, assim, o ser humano morreria de fome e a civilização desapareceria. As “exceções” à lei da preferência temporal são apenas aparentes e, em todos os casos, resultam da não consideração da condicionante ceteris paribusinerente à mesma. Desta forma, basta apenas um exame detalhado do pretenso “contra-exemplo” em questão para nos apercebermos de que não existe absoluta igualdade de circunstâncias nos casos propostos de preferência temporal. É o que acontece, por exemplo, com os bens que não podem ser desfrutados simultaneamente ou com os que, mesmo existindo um paralelismo aparente quanto à sua presença física, não são iguais do ponto de vista subjetivo do ator (como é o caso do sorvete que preferimos consumir no verão em vez de num inverno mais próximo). Sobre a teoria da preferência temporal, consultar Ludwig von Mises, Human Action, ob. cit., pp. 483–90.
[10] “The principal point to be emphasized is that capital goods, thus defined, are distinguished in that they fall neatly into place in a teleological framework. They are the interim goals aimed at in earlier plans; they are the means toward the attainment of still further ends envisaged by the earlier plans. It is here maintained that the perception of this aspet of tangible things now available provides the key to the unravelling of the problems generally attempted to be elucidated by capital theory.” Israel M. Kirzner, An Essay on Capital, Augustus M. Kelley, Nova York 1966, p. 38; em Israel M. Kirzner, Essays on Capital and Interest: An Austrian Perspetive, Edward Elgar, Aldershot, Inglaterra, 1996, pp. 13-122.
[11] Isto explica que tradicionalmente se tenha afirmado que existem três fatores de produção: os recursos naturais, o fator trabalho e os bens de capital ou bens econômicos de ordem superior. Estes fatores são criados empresarialmente e combinados pelo ator em cada processo de ação ou produção que, à medida que é terminada dá origem a quatro tipo diferentes de rendimentos no mercado: os lucros empresariais puros, resultado da criatividade e perspicácia empresarial do ator; rendimento dos recursos naturais, em função da capacidade de produção dos mesmos; os rendimentos do fator trabalho ou salários; e, por fim, o rendimento derivado serviços dos bens de capital. Embora em última instância sejam combinações de recursos naturais e trabalho, todos os bens de capital incluem também, além do necessário engenho empresarial para os conceber e gerar, o fator tempo necessário para os levar a efeito. Por fim, realce-se que, economicamente, no que diz respeito à sua materialização, bens de capital e recursos naturais não podem ser diferenciados. Só um critério puramente econômico, como o da permanência inalterada do bem face à consecução de fins sem necessidade de exigir nenhum tipo de atuação por parte do ator, permite distinguir perfeitamente o fator terra (ou recurso da natureza), que é sempre permanente, dos bens de capital que, em sentido estrito, não são permanentes e que se gastam e consomem ao longo do processo produtivo, tornando necessário fazer frente ao seu processo de depreciação. Por isso, Hayek afirmou que, apesar das aparências, “permanent improvements in land is land“. F.A. Hayek, The Pure Theory of Capital (1941), Routledge & Kegan Paul, Londres 1976, p. 57. Ver ainda a p. 238 e a nota 30.
[12] Este é o exemplo clássico de Eugen von Böhm-Bawerk, Kapital und Kapitalzins: Positive Theorie des Kapitales, Verlag der Wagner’schen Universitäts-Buchhandlung, Innsbruck 1889, pp. 107-135. Este segundo volume da obra de Böhm-Bawerk foi publicado em espanhol por Ediciones Aosta em 1998. Em inglês, existe a tradução de Hans F. Sennholz intitulada de Capital and Interest: Positive Theory of Capital, Libertarian Press, South Holland, Illinois, 1959, pp. 102-118.
[13] Deve ficar entendido que toda a poupança se materializa sempre em bens de capital, embora, inicialmente, estes sejam constituídos por bens de consumo (no nosso exemplo as “amoras”) que ficam por vender (ou consumir). Depois, gradualmente, os bens de capital (as amoras) são substituídos por outros (a vara de madeira), à medida que os trabalhadores (Robinson Crusoé) misturam o trabalho com os recursos naturais por intermédio de um processo que envolve tempo e que os seres humanos podem suportar graças ao sustento proporcionado pelos bens de consumo não vendidos (as amoras poupadas). Assim, a poupança começa por se materializar em um bem de capital (os bens de consumo não vendidos que se mantêm em estoque), que é gasto de forma gradual e substituído por outro bem de capital (a vara de madeira). Ver: especialmente, Richard von Strigl, Capital and Prodution, Mises Institute, Auburn, Alabama, 2000, pp. 27 e 62.
[14] Na sua obra The Struture of Prodution (New York University Press, Londres e Nova York 1990), Mark Skousen reproduz um esquema simplificado das etapas do processo produtivo da indústria têxtil e do setor de petróleos dos Estados Unidos da América (pp. 168-169), ilustrando detalhadamente a complexidade, o grande número de etapas e a muito longa duração de ambos os processos produtivos. Uma descrição simplificada deste tipo de organogramas pode ser efetuada para qualquer outro setor ou indústria. Skousen usa os organogramas das indústrias mencionadas no livro de Alderfer, E.B. e Michel, H.E., Economics of American Industry, McGraw-Hill, Nova York, 3.ª edição 1957.
[15] Por isso, Hayek é especialmente critico da definição tradicional de bem de capital como bem de produção produzido pelo homem e que considera: “a remnant of the cost of prodution theories of value, of the old views which sought the explanation of the economic attributes of a thing in the forces embodied in it […] Bygones are bygones in the theory of capital no less than elsewhere in economics. And the use of concepts which see the significance of a good in past expenditure on it can only be misleading.” F. A. Hayek,The Pure Theory of Capital, ob. cit., p. 89. Hayek conclui que: “For the problems conneted with the demand for capital, the possibility of producing new equipment is fundamental. And all the time concepts used in the theory of capital, particularly those of the various investment periods, refer to prospetive periods, and are always ‘forward-looking’ and never ‘backward-looking’.” Ibidem, p. 90.
[16] Um empresário desmoralizado que pretenda abandonar o seu negócio e instalar-se noutro lugar pode conseguir uma mobilidade efetiva e constante no mercado: graças aos contratos jurídicos poderá pôr o seu negócio à venda, liquidá-lo e dedicar a sua nova liquidez a adquirir outra empresa. Desta forma consegue uma mobilidade real e efetiva muito superior à exclusiva mobilidade física ou técnica do bem de capital (e que, como vimos, costuma ser bastante reduzida).
[17] Ainda assim, em diversas ocasiões, ver-nos-emos forçados a utilizar o termo capital num sentido menos estrito para referirmos o conjunto de bens de capital que constituem a estrutura produtiva. Este sentido pouco preciso do termo capital é o utilizado, entre outros, por F.A. Hayek em The Pure Theory of Capital, ob. cit., p. 54 e por Ludwig M. Lachmann em Capital and its Struture, ob. cit., em cuja página 11 se define “capital” como “the heterogeneous stock of material resources”.
[18] Este é, precisamente, o argumento essencial de Mises sobre a impossibilidade do cálculo econômico numa economia socialista. Ver, sobre este tema, Jesús Huerta de Soto, Socialismo, cálculo econômico y función empresarial, ob. cit., caps. III a VII.
[19] Jesús Huerta de Soto, Socialismo, cálculo econômico y función empresarial, ob. cit., caps. II y III, pp. 41-155.
[20] Esta é a terminologia utilizada, por exemplo, por Knut Wicksell nas suas Lectures on Political Economy, vol. I, Routledge & Kegan Paul, Londres 1951, p. 164, onde se refere expressamente a uma “horizontal-dimension” e a uma “vertical-dimension” da estrutura de bens de capital.
[21] De fato, a taxa de juro pode ser interpretada de duas formas distintas. Ou como um proporção de preços atuais (um correspondente ao bem disponível hoje e outro correspondente ao mesmo bem disponível amanhã); ou como o preço dos bens presentes em função dos futuros. O resultado é o mesmo. A primeira é a utilizada por Ludwig von Mises, para quem a taxa de juro: “is a ratio of commodity prices, not a price in itself” (Human Action, ob cit., p. 526). A segunda é a que preferimos utilizar no texto (seguindo Murray N. Rothbard) Uma análise detalhada de como se forma a taxa de juro como preço de mercado dos bens presentes em função dos bens futuros pode ser encontrada, entre outros estudos, na obra de Murray N. Rothbard Man, Economy, and State: A Treatise on Economic Principles, Ludwig von Mises Institute, Auburn University, 3.ª edição, 1993, caps. V-VI, pp. 273-387. Em todo o caso, a taxa de juro é determinada tal como qualquer outro preço de mercado. A única diferença deriva do fato de que em vez de fixar o preço de cada bem ou serviço em termos de unidades monetárias, se fixa na compra e venda de bens presentes em troca de bens futuros, todos materializados em unidades monetárias. Embora defendamos que os juros são determinados única e exclusivamente pela preferência temporal, ou seja, pelas valorações subjetivas de utilidade relacionadas com a preferência temporal, o fato de haver outra teoria aceita (por exemplo, a de que os juros são determinados em maior ou menor grau pela produtividade marginal do capital) não afeta o argumento essencial deste livro em relação aos efeitos de distorção provocados pela criação expansiva de créditos por parte do sistema bancário sobre a estrutura produtiva. Ver, nesse mesmo sentido, Charles E. Wainhouse, para quem: “Hayek establishes that his monetary theory of economic flutuActions is consistent with any of the ‘modern interest theories’ and need not be based on any particular one. The key is the monetary causes of deviActions of the current from the equilibrium rate of interest.” “Empirical Evidence for Hayek’s Theory of Economic FlutuActions”, cap. II de Money in Crisis: The Federal Reserve, the Economy and Monetary Reform, Barry N. Siegel (ed.), Pacific Institute for Public Policy Research, San Francisco 1984, p. 40.
[22] O coloquialmente chamado “mercado de moeda” não é mais do que um mercado de créditos a curto prazo. O verdadeiro mercado de moeda é constituído por todo o mercado em que se trocam bens e serviços por unidades monetárias e em que se determina o preço ou poder de compra do dinheiro e os preços em termos monetários de cada bem e serviço. Por isso, Marshal induz a graves erros quando afirma que: “The ‘money market’ is the market for command over money: ‘the value of money’ in it at any time is the rate of discount, or of interest for short period loans charged in it.” Alfred Marshall, Money Credit and Commerce, Macmillan, Londres 1924, p. 14. Mises esclarece esta confusão terminológica de Marshal de forma perfeita Marshall em Human Action, ob. cit., p. 403.
[23] Por isso, strito sensu, o conceito de “taxa de lucro” não faz sentido na vida real e só o introduzimos para efeitos ilustrativos e para facilitar a compreensão da nossa teoria do ciclo. Como diz Mises: “it becomes evident that it is absurd to speak of a ‘rate of profit’ or a ‘normal rate of profit’ or an ‘average rate of profit’… There is nothing ‘normal’ in profits and there can never be an ‘equilibrium’ with regard to them.”Ludwig von Mises, Human Action, ob. cit., p. 297.
[24] De fato, a taxa de juro acordada para os empréstimos no mercado de crédito inclui uma componente empresarial que não referimos no texto. Esta taxa deriva da incerteza inescapável (que não é “risco”) relativa à possibilidade de se produzirem mudanças sistemáticas na taxa social de preferência temporal ou outras perturbações próprias do ciclo econômico que não podem ser garantidas: “The granting of credit is necessarily always an entrepreneurial speculaction which can possibly result in failure and the loss of a part of the total amount lent. Every interest stipulated and paid in loans includes not only originary interest but also entrepreneurial profit.” Ludwig von Mises, Human Action, ob. cit., p. 536.
[25] Depois da primeira edição deste livro, reparamos que Roger Garrison desenvolve a mesma ideia no seu novo livro Time and Money: The Macroeconomics of Capital Struture, Routledge, Londres 2001, pp. 33-34.
[26] Ludwig von Mises, The Theory of Money and Credit, ob. cit. e também Human Action: A Treatise on Economics, ob. cit.
[27] O primeiro teórico a propor uma representação basicamente igual à que apresentamos no Gráfico V-1 foi William Stanley Jevons no seu livro The Theory of Political Economy, cuja primeira edição foi publicada em 1871. Aqui usamos uma reimpressão da 5.ª edição publicada em 1957 em Nova York por Kelley and Millman, em cuja página 230 encontramos um diagrama onde, segundo Jevons, “line ox indicates the duraction of investment and the height attained at any point, i, is the amount of capital invested“. Mais tarde, em 1889, Eugen von Böhm-Bawerk aprofunda a questão teórica da estrutura de etapas sucessivas de bens de capital e de sua representação gráfica, propondo uma representação baseada num conjunto sucessivo de círculos concêntricos anuais (a expressão usada por Böhm-Bawerk é koncentrischer Jahresringe), cada um dos quais representando uma etapa produtiva e se sobrepondo a outros maiores. Esta representação gráfica e a explicação de Böhm-Bawerk podem ser consultadas nas pp. 114-115 da obra Kapital und Kapitalzins, vol. II,Positive Theorie des Kapitales, ob. cit.. As páginas correspondentes da edição inglesa, Capital and Interest,são as 106-107 do volume II. O problema mais significativo da representação gráfica proposta por Böhm-Bawerk é que representava a passagem do tempo de forma grosseira, pelo que faltava uma um segunda dimensão (a vertical). Böhm-Bawerk poderia ter evitado esta dificuldade facilmente substituindo os “anéis concêntricos” por um conjunto de cilindros colocados uns em cima dos outros, de forma a que cada cilindro tivesse uma base menor do que a do inferior. Esta dificuldade foi ultrapassada mais tarde, em 1931, na primeira edição do já clássico livro de F. A. Hayek Prices and Prodution (1.ª edição com “Foreword” de Lionel Robbins, Routledge, Londres 1931; 2.ª edição, revista e ampliada em 1935); pp. 36 da primeira edição e 39 da segunda. Doravante, salvo indicação em contrário, todas as citações desse livro serão retiradas da segunda edição. O livro contém uma representação muito semelhante à que propusemos no Gráfico V-1. Este tipo de representação volta a ser utilizado por Hayek em 1941 (mas agora em termos contínuos) em The Pure Theory of Capital (ver, por exemplo, a p. 109). Além disso, em 1946, Hayek desenvolve também uma representação gráfica prospetiva das diferentes etapas do processo produtivo num gráfico tridimensional que ganha em exatidão, precisão e elegância, mas perde em inteligibilidade (p. 117 da edição inglesa de 1941). Em 1962, N. Rothbard (Man, Economy and State: A Treatise on Economic Principles, ob cit., caps. VI-VII) propõe uma representação semelhante e, em muitos aspectos, superior à de Hayek, que é seguida muito de perto por Mark Skousen no notável The Struture of Prodution, New York University Press, Nova York 1990. Em espanhol, introduzi pela primeira vez a representação gráfica da estrutura produtiva há quase vinte anos no meu artigo “La teoría austriaca del ciclo econômico”, publicado originalmente em Moneda y crédito, n.º 152, Março de 1980, pp. 37-55 (reeditado em Estudios de economía política, ob. cit., cap. XIII, pp. 160-176). Embora também pudessem ser interpretados como uma representação da estrutura produtiva, deixamos deliberadamente de fora desta breve resenha histórica da representação gráfica das etapas do processo produtivo os gráficos triangulares propostos por Knut Wicksell, Letures on Political Economy, Routledge, Londres 1951, vol. I, p. 159. Ver, finalmente, M. A. Alonso Neira, “Hayekian Triangle”, em An Eponymous Ditionary of Economics: A Guide of Laws and Theorems Named after Economists, J. Segura e C. Rodríguez Braun (eds.), Edward Elgar, Cheltenham, Inglaterra 2004.
.[28] “The inventory of capital constitutes, so to speak, a cross setion of the many processes of prodution which are of varying length and which began at different times. It therefore cuts across them at very widely differing stages of development. We might compare it to the census which is a cross section through the paths of human life and which encounters and which arrests the individual members of society at widely varying ages and stages.” Eugen von Böhm-Bawerk, Capital and Interest: Positive Theory of Capital, ob. cit., p. 106. O texto desta passagem em alemão encontra-se na p. 115 da já citada edição original desta obra.
[29] John B. Clark, “The Génesis of Capital”, Yale Review, n.º 2, novembro de 1893, pp. 302-315; e “Concerning the Nature of Capital: A Reply”, Quarterly Journal of Economics, Maio de 1907. Frank H. Knight, “Capitalist Prodution, Time and the Rate of Return”, em Economic Essays in Honour of Gustav Cassel, George Allen & Unwin, Londres 1933.
[30] Ludwig von Mises afirma muito claramente que “The length of time expended in the past for the prodution of capital goods available today does not count at all. These capital goods are valued only with regard to their usefulness for future satisfaction. The ‘average period of prodution’ is an empty concept.”Ludwig von Mises, Human Action: A Treatise on Economics, ob cit., p. 489. Murray N. Rothbard segue a mesma direção em Man, Economy and State, ob. cit., pp. 412-413.
[31] Murray N. Rothbard, com natural perspicácia, acrescenta que “land that has been irrigated through canals or altered by the chopping down of forests has become a present, permanent given. Because it is a present given, not worn out in the process of prodution, and not needing to be replaced, it becomes a landfator under our definition”, concluindo que uma vez que “the permanent are separated from the non-permanent alteractions, we see that the struture of prodution no longer stretches back infinitely in time, but comes to a close within a relatively brief span of time.” Ver Man, Economy and State, ob. cit., p. 414 (grifos acrescentados).
[32] Como foi explicado por F.A. Hayek: “the different instalments of future services which such goods are expeted to render will in that case have to be imagined to belong to different ‘stages’ of prodution corresponding to the time interval which will elapse before these services mature.” Ver Prices and Prodution, ob. cit., p. 40, nota de rodapé da página 2. Este tipo de paralelismo entre os bens de consumo duradouro e os bens de capital já tinha sido demonstrado anteriormente por Eugen von Böhm-Bawerk, para quem, “the value of the remoter instalments of the renditions of service is subjet to the same fate as is the value of future goods.” Capital and Interest: Positive Theory of Capital, ob. cit., pp. 325-337, e em especial a p. 337. Na edição alemã deve ser consultado o capítulo dedicado a “Der Zins aus ausdauernden Gütern”, nas pp. 361-382 da edição de 1889 já citada. Böhm-Bawerk expressa tais princípios em alemão da seguinte forma:“In Folge davon verfällt der Werth der entlegeneren Nutzleistungsraten demselben Schicksale, wie der Werth künftiger Güter.” Ver Kapital und Kapitalzins, vol. II, Positive Theorie des Kapitales, ob. cit., p. 365. Na Espanha, talvez tenha sido José Castañeda Chornet quem melhor compreendeu essa ideia essencial ao afirmar que: “los bienes de consumo duradero, generadores de un flujo de servicios de consumo en el tiempo, pueden considerarse incluidos en el capital fijo de una economía. En sentido estrito, constituyen capital fijo consuntivo, no produtivo. De esta forma el capital, en sentido amplio, está formado por el capital produtivo o propiamente dicho, y también por el capital consuntivo o de uso.” José Castañeda,Leciones de teoría económica, ob. cit., p. 686.
[33] Roger W. Garrison aduziu, ainda, o argumento de que todos os bens de consumo em relação aos quais existiria um mercado de segunda mão deve ser classificados, do ponto de vista econômico, como bens de investimento. De fato, os bens de consumo qualificado de “duradouro” ocupam simultaneamente um lugar em sucessivas etapas do processo produtivo, embora juridicamente sejam propriedade dos “consumidores”, um vez que os cuidam, conservam e mantêm na sua capacidade produtiva para proporcionar serviços diretos de consumo ao longo de um período prolongado de anos. Roger Garrison, “The Austrian-Neoclassical RelAction: A Study in Monetary Dynamics”, Tese de Doutoramento apresentada na Universidade de Virginia, 1981, p. 45. Ver, também, Roger Garrison, Time and Money: The Macroeconomics of Capital Struture, ob. cit., pp. 47-48.
[34] Tabelas como a apresentada no Quadro V-1, que comentamos no texto, já foram realizadas com o mesmo objetivo por Eugen von Böhm-Bawerk (Capital and Interest, ob. cit., pp. 108-109, onde em 1889 recolheu, pela primeira vez, para cada etapa da produção o valor em “números de anos de trabalho” dos produtos da etapa correspondente). Posteriormente, em 1929, F. A. Hayek retomou a mesma tarefa mais explicitamente no artigo “Gibt es einen ‘Widersinn des Sparens’?” (Zeitschrift Für NActionalökonomie, Bd. I, Heft III, 1929), que foi traduzido com o título de “The ‘Paradox’ of Saving” e publicado em inglês emEconomica (Maio de 1931) e depois incluído como anexo no livro Profits, Interest and Investment and Other Essays on the Theory of Industrial FlutuActions, 1.ª edição de George Routledge & Sons, Londres 1939, e reeditado por Augustus M. Kelley, Clifton 1975, pp. 199- 263, e especialmente as pp. 229-231. Como reconhece o próprio Hayek, foi precisamente o desejo de simplificar a grosseira exposição dessas tabelas que o levou a introduzir o esquema gráfico de etapas da produção que apresentamos no Gráfico V-1 (ver Prices and Prodution, ob. cit., p. 38, nota 1).
[35] Adam Smith, The Wealth of NActions, Livro II, Cap. II, p. 390 do vol. I da edição original de 1776 já citada (p. 306 da edição de E. Cannan de Modern Library, Nova York 1937 e 1965; e p. 322 do vol. I da Glasgow Edition, de Oxford University Press, Oxford 1976). Como refere Hayek corretamente (Prices and Prodution, ob. cit., p. 47) é importante realçar que a autoridade de Adam Smith em relação a este tema induziu muitos autores em erro, tendo o seu argumento sido utilizado, por exemplo, para justificar as doutrinas erradas da banking school, entre outros, por Thomas Tooke na sua obra An Inquiry into the Currency Principle, 2.ª edição, Longmans, Londres 1844, p. 71.
[36] F.A. Hayek, Prices and Prodution, ob. cit., p. 49. Este importante parágrafo poderia ser traduzido da seguinte forma: “A corrente monetária que cada empresário pertencente a qualquer etapa do processo produtivo recebe num dado período é sempre composta pelo rendimento líquido que pode usar para o consumo sem afetar a estrutura produtiva existente e de partes que deve reinvestir de forma contínua. Mas a redistribuição ou não da totalidade dos rendimentos nas mesmas proporções do passado depende inteiramente dele. E o principal fator a influenciar as decisões será a magnitude dos lucros que espera obter da produção de uma produto imediato particular.” É precisamente por isso que não faz sentido a concepção do capital como um fundo homogêneo que se auto-reproduz isoladamente. Esta ideia, defendida por J. B. Clark e F. H. Knight, é a base teórica (juntamente com a concepção do equilíbrio geral) do tão mantido modelo do “fluxo circular do rendimento” apresentado em quase todos os manuais de Economia, apesar de se tratar de uma teoria que induz em erro, uma vez que não dá conta da estrutura temporal por etapas do processo produtivo do nosso Gráfico V-1 (ver também a nota 39).
[37] Assim, como refere, por exemplo, Ramón Tamames, o Produto Nacional Bruto a preços de mercado “pode ser definido como a soma do valor de todos os bens e serviços finais produzidos numa nação num ano… Falamos de bens e serviços finais porque se excluem os de aspecto intermédio para evitar o cálculo duplicado de um mesmo valor.” Fundamentos de estrutura econômica, Alianza Universidad, 10.ª edição revista, Madrid 1992, p. 304. Pode também ser consultado o recente livro de Enrique Viaña Remis, Leciones de contabilidad nacional, Editorial Cívitas, Madrid 1993, onde o autor afirma que “a distinção entre inputsintermediários e a depreciação deu origem à convenção de que os primeiros estão excluídos do valor acrescentado, ao passo que os segundos estão incluídos. Assim, distingue-se entre valor agregado bruto, que inclui a depreciação, e valor agregado líquido, que a exclui. Por conseguinte, tanto o produto como o rendimento podem ser brutos ou líquidos, tendo em conta se incluem ou excluem a depreciação (p.39).” Como pode ser verificado, o qualificativo “bruto” é usado para descrever um montante que continua a ser líquido, uma vez que exclui todo o valor dos inputs intermediários. Nem sempre os manuais dedicados à contabilidade nacional ignoraram a enorme importância dos produtos intermediários e, dessa forma, a obra clássica The Social Framework of the American Economy: An Introdution to Economics, de J.R. Hicks and Albert G. Hart (Oxford University Press, Nova York, 1945) refere explicitamente a grande importância da dimensão temporal em todo o processo de produção de bens de consumo (o exemplo concreto utilizado é o da produção de pão), explicando pormenorizadamente as diferentes etapas necessárias de produtos intermediários para chegar ao bem final de consumo. Hicks e Hart concluem (pp. 35-36) que “os produtos resultantes das primeiras etapas são úteis, mas não diretamente para satisfazer as necessidades dos consumidores. A utilidade deve ser encontrada no emprego nas etapas posteriores, no final das quais surgirá um produto solicitado pelos consumidores […] Um bem de produção pode estar tecnicamente terminado, no sentido em que a operação necessária para a sua produção foi concluída, mas ainda em processo, no que diz respeito à própria etapa. Em qualquer dos casos, é um bem de produção, porque foram necessárias três etapas antes do resultado de todo o processo ter passado para as mãos do consumidor. No final de todo o processo de bens de consumo, os de produção são meras etapas no caminho que leva aos primeiros” (itálico acrescentado).
[38] Na obra The Struture of Prodution, ob. cit., pp. 191-192, Mark Skousen propõe a introdução de uma nova conta na contabilidade nacional que se denominaria “gross national output” e que corresponde ao nosso Rendimento Social Bruto. No que diz respeito ao Rendimento Social Bruto, ou “gross national output” que poderia ser calculado para os Estados Unidos, Skousen conclui o seguinte: “First, Gross National Output (GNO) was nearly double Gross NActional Produt (GNP), thus indicating the degree to which GNP underestimates total spending in the economy. Second, consumption represents only 34 percent of total nActional output, far less than what GNP figures suggest (66 percent); Third, business outlays, including intermediate inputs and gross private investment, is the largest setor of the economy, 56 percent larger than the consumer-goods industry. GNP figures suggest that the capital-goods industry represents a minuscule 14 percent of the economy.” Todos os montantes são referentes aos dados da contabilidade nacional dos Estados Unidos para 1982. Como vamos ver adiante quando falarmos do ciclo econômico, os montantes tradicionais do Produto Nacional Bruto têm o gravíssimo defeito teórico de ocultar as significativas oscilações que, ao longo do ciclo, se produzem nas etapas intermediárias do processo produtivo. Os valores do Rendimento Social Bruto, pelo contrário, incluiriam integralmente as flutuações. Ver, ainda, os dados no final da nota 20 do capítulo VI para o ano de 1986. Por fim, aparentemente, o “Commerce Department’s Bureau of Economic Analysis” começou finalmente a publicar séries de Rendimento Social Bruto com o nome de “Gross Output“.
[39] Como refere Murray N. Rothbard, o caráter líquido do Produto Nacional Bruto leva, indefetivelmente, a que se considere que o capital é um fundo perpétuo, que se auto-reproduz sozinho sem necessidade de decisões específicas por parte dos empresários. Esta é a doutrina “mitológica” que foi defendida por J. B. Clark e Frank H. Knight e que constitui a base conceitual do atual sistema de contabilidade nacional. Assim, este sistema é não mais do que a manifestação estatística e contabilística da conceitualização errada da teoria do capital promovida por estes autores. Rothbard conclui: “to maintain this dotrine it is necessary to deny the stage analysis of prodution and, indeed, to deny the very influencie of time in prodution” (Murray N. Rothbard, Man, Economy and State, ob. cit., p. 343). Acresce que o atual método de cálculo do Produto Nacional Bruto exagera em grande medida a importância do consumo para a economia, levando à impressão errada de que a parte mais importante do produto nacional se materializa em bens e serviços de consumo, em vez de em bens de investimento. Isto explica ainda que a maioria dos agentes envolvidos, economistas, políticos, jornalistas e funcionários tenham uma ideia distorcida de como funciona a Economia e que, ao pensar que o setor do consumo final é o mais importante da mesma, concluam que a melhor maneira de desenvolver economicamente um país é estimulando o consumo e não o investimento. Sobre este aspecto, consulte-se F.A. Hayek, Prices and Prodution, ob. cit., pp. 47-49, especialmente a nota 2 da p. 48, Mark Skousen, The Struture of Prodution, ob. cit., p. 190, e George Reisman, “The Value of ‘Final Produts’ Counts Only Itself”, The American Journal of Economics and Sociology, vol. 63, n.º 3, Julho 2004, pp. 609-625, eCapitalism, Jameson Books, Ottawa, Illinois 1996, pp. 674 e ss.
[40] As tabelas input-output obstam parcialmente as insuficiências da contabilidade nacional tradicional, uma vez que permitem calcular o montante correspondente a todos os produtos intermediários. No entanto, embora a análise input-ouput se mova na direção correta, também tem limitações importantes. Em particular, o fato de refletir apenas duas dimensões, uma vez que relaciona os diferentes setores industriais com os fatores de produção diretamente utilizados nos mesmos, mas não com os fatores de produção que, sendo utilizados, correspondem a etapas mais afastadas. Ou seja, a análise input-output não dá conta do conjunto sucessivo de etapas intermediárias até chegar a qualquer etapa ou bem intermédiário ou ao bem final de consumo, apenas agrega ou relaciona cada setor com o fornecedor direto. Além disso, as tabelasinput-output, devido ao grande custo e complexidade, só são elaboradas em alguns intervalos de anos (nos Estados Unidos de cinco em cinco anos), pelo que o valor das estatísticas para calcular o Rendimento Social Bruto de cada exercício é muito pequeno. Ver Mark Skousen: The Struture of Prodution, ob. cit., pp. 4-5.
[41] Como é lógico, o aumento esperado dos lucros é em termos absolutos e não relativos. De fato, lucros que representem, por exemplo, 10% de 100 u.m. (10 u.m.) são muito inferiores a lucros que representem 8% de 150 u.m. (12 u.m.). Embora a taxa de juro contábil diminua, precisamente como resultado da menor preferência temporal gerada pelo aumento da poupança e do investimento, os lucros contábeis em termos absolutos crescem 20%, ou seja, de 10 a 12 u.m. Isto é o que costuma acontecer nas etapas mais afastadas do consumo durante o processo que estamos a considerar. No que respeita às etapas mais próximas do consumo, recorde-se que, como é referido no texto principal, a comparação é feita não como os lucros passados, mas com os que se estima que se teriam obtido se não tivesse havido alteração da estratégia de investimento empresarial.
[42] Ver as notas 32 e 33 anteriores.
[43] Como aluno de economia durante a segunda metade dos anos 1970, pude constatar que em nenhum dos cursos de Teoria Econômica me foi explicado de que forma o aumento da poupança afetava a estrutura produtiva, mas apenas o modelo keynesiano do “paradoxo da poupança” que, como é sabido, condena prima facie o aumento de poupança a nível social, por diminuir a procura efetiva. Embora seja verdade que Keynes se referiu expressamente à tese da “teoria do paradoxo”, não é menos certo que esta tem origem no levar às últimas consequências “lógicas” os princípios econômicos por ele enunciados: “If governments should increase their spending during recessions, why should not households? If there were no principles of ‘sound finance’ for public finance, from where would such principles come for family finance? Eat, drink and be merry, for in the long-run are all dead.” Clifford F. Thies, “The Paradox of Thrift: RIP”, Cato Journal, vol. 16, n.º 1 (Primavera-Verão 1996), p. 125. Ver ainda o que dissemos sobre o tratamento deste tema no manual de Samuelson na nota 57.
[44] De acordo com Turgot, o primeiro a enfrentar e resolver este problema, ainda de forma rudimentar mas já com todos os elementos essenciais de uma explicação definitiva, foi o grande Eugen von Böhm-Bawerk no vol. II da sua obra maior Capital e Juros, publicada em 1889 (Kapital und Kapitalzins: Positive Theorie des Kapitales, ob. cit., 1889, p. 124-125). Pela importância da obra, reproduziremos a seguir o texto da edição inglesa de Capital and Interest em que Böhm-Bawerk apresenta o problema do crescimento da poupança voluntária numa economia de mercado e as forças que levam a um alargamento da estrutura produtiva da mesma: suponhamos, disse Böhm-Bawerk que:
“Each individual consumes, on the average, only three- quarters of his income and saves the other quarter, then obviously there will be a falling off in the desire to buy consumption goods and in the demand for them. Only three-quarters as great a quantity of consumption goods as in the preceding case will become the subjet of demand and of sale. If the entrepreneurs were nevertheless to continue for a time to follow the previous disposition of prodution and go on bringing consumption goods to the market at a rate of a full 10 million labor-years annually, the oversupply would soon depress the prices of those goods, render them unprofitable and hence induce the entrepreneurs to adjust their prodution to the changed demand. They will see to it that in one year only the produt of 7.5 million labor-years is converted into consumption goods, be it through maturAction of the first annual ring or be it through additional present prodution. The remaining 2.5 million labor-years left over from the current annual allotment can be used for increasing capital. And it will be so used. […] In this way it is added to the nation’s produtive credit, increases the producer’s purchasing power for produtive purposes, and so becomes the cause of an increase in the demand for prodution goods, which is to say intermediate produts. And that demand is, in the last analysis, what induces the managers of business enterprises to invest available produtive forces in desired intermediate produt … If individuals do save, then the change in demand, once more through the agency of price, forces the entrepreneurs into a changed disposition of produtive forces. In that case fewer produtive powers are enlisted during the course of the year for the service of the present as consumption goods, and there is a correspondingly greater quantity of produtive forces tied up in the transitional stage of intermediate produts. In other words, there is an increase in capital, which redounds to the benefit of an enhanced enjoyment of consumption goods in the future”.
Eugen von Böhm-Bawerk, Capital and Interest, vol. II: Positive Theory of Capital, ob. cit., pp. 112-113 (grifos nossos).
[45] Estes montantes correspondem ao exemplo numérico do Gráfico V-3.
[46] Isto quer dizer que os lucros contábeis da última etapa dedicada ao consumo tenderão a ser recuperados. Mais do que por um aumento das vendas, esta recuperação verificar-se-á devido a uma diminuição dos custos proprocinalmente superior à diminuição das vendas fruto do aumento de poupança. A diminuição dos custos dá-se por duas vias: a menor contratação de serviços dos fatores de produção originais e a diminuição do preço unitário dos bens de capital adquiridos na etapa anterior, sensivelmente mais baratos, uma vez que se terminam os novos projetos de investimento, mais produtivos e mais capital-intensivos.
[47] A fórmula é , que corresponde ao valor atual, em regime de capitalização composta a juro i, de uma renda imediata temporária pós-paga de n períodos, em que o período de capitalização coincide com o da renda. Como se pode verificar, à medida que período n for maior, e tender a tornar-se infinito, o valor da renda tenderá a ser igual a 1/i que, como regra mnemônica, na prática é aplicável em todos os casos de bens de capital de muito longa duração (e, pela sua permanência, no fator terra). Ver Lorenzo Gil Peláez, Tablas financieras, estadísticas y atuariales, 6.ª edição corrigida e aumentada, Editorial Dossat, Madrid 1977, pp. 205-237.
[48] É preciso ter em conta que as inovações tecnológicas que aumentam a produtividade (em forma de maior quantidade e/ou qualidade de bens e serviços), diminuindo o comprimento dos processos produtivos serão introduzidas independentemente do aumento da poupança líquida pela sociedade. Isto possibilita a introdução de novas tecnologias que não se podem aplicar marginalmente por falta de recursos.
[49] O teto das quotizações será alcançado quando se esgotar o efeito da redução da taxa de juro e será compensado pelo maior número e volume de emissões de ações e obrigações no mercado primário, o que fará com que o preço de mercado pró título tenda a se estabilizar a um nível mais baixo. No próximo capítulo, veremos como toda a euforia prolongada na bolsa e, em geral, todo o aumento sustentado e constante dos índices da bolsa, longe de demonstrar uma boa situação econômica subjacente, decorre de um processo inflacionário de expansão de crédito que mais tarde ou mais cedo dará origem a uma crise na Bolsa e a recessão econômica
[50] Como refere Hayek, esta redução pode levar algum tempo, dependendo da rigidez de cada mercado e, de qualquer forma, terá menor proporção do que a diminuição da procura provocada pela poupança, uma vez que, se assim não fosse, isto não envolveria nenhum tipo de sacrifício efetivo nem ficariam por vender os estoques de bens de consumo necessários para manter os agentes econômicos enquanto se terminam os processos mais capital-intensivos. Ver F.A. Hayek. “Refletions on the Pure Theory of Money of Mr. J. M. Keynes (continued)”, Economica, vol. 12, n.º 35, Fevereiro de 1932, pp. 22-44, reeditado em Contra Keynes y Cambridge: Ensayos, correspondencia, vol. IX de Obras Completas de F.A. Hayek, Unión Editorial, Madrid 1996, pp. 201-202.
[51] Ver, David Ricardo, On the Principles of Political Economy and TaxAction, vol. I de The Works and Correspondence of David Ricardo, Piero Sraffa e M.H. Dobb (eds.), Cambridge University Press, Cambridge 1982, pp. 39-40. A tradução para português poderia ser: “cada aumento dos salários ou, o que é o mesmo, cada redução dos lucros reduziria o valor relativo dos bens produzidos com capital durável e elevaria proporcionalmente os produzidos com capital mais perecível. Uma redução dos salários levaria exatamente ao efeito contrário.”
[52] Ver: David Ricardo. On the Principles of Political Economy and TaxAction, ob. cit., p. 395. A tradução para português poderia ser: “O maquinário e a mão-de-obra estão em concorrência constante e a primeira pode frequentemente não ser empregada até que aumente a mão-de-obra.”
[53] Ver F.A. Hayek, “Profits, Interest and Investment” and Other Essays on the Theory of Industrial Flutuations, Routledge, Londres 1939 e Augustus M. Kelley, Clifton 1975, p. 39. A passagem do texto pode ser traduzida da seguinte forma: “Com salários reais altos e com uma taxa de lucro (ou juro) reduzida o investimento materializa-se em formas muito intensivas em capital: os empresários tentarão enfrentar os altos custos do fator trabalho introduzindo equipamento capital novo que lhes permita contratar menos fator trabalho, o tipo de maquinário que só é benéfico usar quando existe uma taxa muito reduzida de lucro e juro.” Pouco depois, em 1951, Hayek refere de passagem a este efeito relacionado com o impato do aumento da poupança voluntária sobre a estrutura produtiva sem citar expressamente Ricardo. Trata-se da única aplicação direta que conheço do “Efeito Ricardo” à análise das consequências do aumento da poupança voluntária e não ao papel que este efeito tem nas diferente fases do ciclo econômico, que é o que preocupou predominantemente os teóricos até esta altura. A passagem em questão pode ser encontrada na página 293 de The Pure Theory of Capital, publicada por Macmillan, Londres 1941 e reeditada sucessivas vezes depois (aqui trabalhamos com a reedição da Routledge de 1976) e diz o seguinte: “The fall in the rate of interest may drive up the price of labour to such an extent as to enforce an extensive subsitution of machinery for labour.” Posteriormente Hayek voltou ao tema no artigo “The Ricardo Effect”, publicado emEconomica, vol. 34, n.º 9, Maio de 1942, pp. 127-152, reeditado como capítulo XI de Individualism and Economic Order, The University of Chicago Press, Chicago 1948, pp. 220-254. E novamente trinta anos depois no seu artigo “Three Elucidations of the Ricardo Effect”, publicado no Journal of Political Economy, vol. 77, n.º 2, 1979, e reeditado como capítulo XI do livro New Studies in Philosophy, Politics, Economics and the History of Ideas, Routledge & Kegan Paul, Londres 1978, pp. 165-178. Recentemente Mark Blaug reconheceu que a sua crítica do “Efeito Ricardo” incluída na sua obra Economic Theory in Retrospet (Cambridge University Press, Cambridge 1978, pp. 571-577) se baseava num erro de interpretação em relação ao caráter pretensamente estático da análise hayekiana. Ver o artigo Mark Blaug intitulado “Hayek Revisited”, publicado em Critical Review, vol 7, n.º 1, Inverno de 1993, pp. 51-60, e especialmente a nota 5 das pp. 59-60. Blaug reconhece que notou o erro graças ao artigo de Laurence S. Moss e Karen I. Vaughn, “Hayek’s Ricardo Effect: A Second Look”, History of Political Economy, 18, n.º 4, Inverno de 1986, pp. 545-565. Por seu lado, Ludwig von Mises (Human Action, ob. cit., pp. 773-777) criticou a utilização do Efeito Ricardo para justificar um aumento forçado dos salários por via sindical ou governativa, com o desejo de aumentar o investimento em bens de equipamento, chegando à conclusão de que tal política provocaria apenas desemprego e uma má distribuição dos recursos na estrutura produtiva, uma vez que não tem origem num aumento da poupança voluntária da sociedade, mas na simples imposição coerciva de salários artificialmente altos. Murray tem uma visão semelhante em Man, Economy and State, ob. cit., pp. 631-632. E também F.A. Hayek em The Pure Theory of Capital (ob. cit., p. 347), onde conclui que um crescimento dos salários imposto coercivamente dá origem não só a um aumento do desemprego e a uma diminuição da poupança, mas também a um consumo generalizado do capital que se combina com um alongamento e estreitamento artificial das etapas da estrutura produtiva.
[54] Ver F.A. Hayek, The Pure Theory of Capital, ob. cit., p. 256.
[55] Nas palavras do próprio Hayek: “All that happens is that at the earlier date the savers consume less than they obtain from current prodution and at the later date (when current prodution of consumers’ goods has decreased and additional capital goods are turned out) they are able to consume more consumers’ goods than they get from current prodution.” F.A. Hayek, The Pure Theory of Capital, ob. cit., p. 275. Recorde-se ainda o conteúdo da nota 13.
[56] As considerações anteriores demonstram de novo até que ponto as estatísticas tradicionais do rendimento nacional e os indicadores de crescimento são teoricamente insuficientes. Já referimos que os indicadores de rendimento nacional não calculam o rendimento nacional bruto e tendem a sobrevalorizar a importância do consumo em detrimento das etapas intermediárias do processo produtivo. Podemos agora acrescentar que os indicadores estatísticos do crescimento econômico e da evolução do índice de preços estão também distorcidas, uma vez que se centram basicamente na etapa final de consumo. De fato, em muitas ocasiões os bens finais de consumo e o investimento inicial diminuem sem que as estatísticas da contabilidade nacional reflitam o aumento paralelo do investimento nas etapas mais afastadas do consumo, a criação de novas etapas, nem tampouco o aumento do investimento em produtos intermediários não finais, estoques e inventários de capital circulante. Acresce que o índice de preços de consumo diminuirá, uma vez que reflete apenas o efeito da menor procura monetária na etapas de bens de consumo. Tudo isto leva a que a interpretação popular destes fatos econômicos realizada pelos diferentes agentes (políticos, jornalistas, líderes sindicais e empresários) com base nestes indicadores estatísticos da contabilidade nacional seja muitas vezes errada. Na última parte do seu artigo “The Ricardo Effect” Individualism and Economic Order, ob. cit., pp. 251-254), F. A. Hayek descreve pormenorizadamente as enormes dificuldades estatísticas existentes para perceber por meio da contabilidade nacional os efeitos do aumento da poupança voluntária sobre a estrutura produtiva, especialmente a influência do “Efeito Ricardo” neste caso. Mais recentemente, no discurso que proferiu ao receber o Prêmio Nobel, Hayek advertiu para o costume muito disseminado de aceitar como certas teorias falsas pelo simples fato de que, aparentemente, têm suporte empírico, rejeitando, e inclusivamente ignorando, as explicações teóricas corretas por ser muito difícil recolher a informação estatística necessária para confirmá-las. É precisamente isto que acontece no campo da aplicação da contabilidade nacional ao processo de extensão e aprofundamento das etapas da estrutura produtiva mais afastadas do consumo, que surge sempre como consequência de um aumento da poupança voluntária. Ver “The Pretence of Knowledge”, Nobel Memorial Lecture, pronunciado no dia 11 de Novembro de 1974 e reeditado em The American Economic Review, Dezembro de 1989, pp. 3-7.
[57] Assim, Milton Friedman e Anna J. Schwartz, entre outros, referindo-se ao período 1865-1879 nos Estados Unidos, em que praticamente não houve aumento da oferta de dinheiro, concluem que: “The price level fell to half its initial level in the course of less than fifteen years and, at the same time, economic growth proceeded at a rapid rate … Their coincidence casts serious doubts on the validity of the now widely held view that secular price deflAction and rapid economic growth are incompatible.” Milton Friedman e Anna J. Schwartz, A Monetary History of the United States 1867-1960, Princeton University Press, Princeton 1971, p. 15, e também o importante quadro estatístico da p. 30. Y Alfred Marshall, referindo-se ao período 1875-1885 na Inglaterra afirmou que: “It is doubtful whether the last ten years, which are regarded as years of depression, but in which there have been few violent movements of prices, have not, on the whole,conduced more to solid progress and true happiness than the alternations of feverish ativity and painful retrogression which have charaterised every preceding decade of this century. In fact, I regard violent fluctuations of prices as a much greater evil than a gradual fall of prices.” Alfred Marshall, Official Papers, Macmillan, Londres 1926, p. 9 (grifos nossos). Finalmente, deve consultar-se George A. Selgin, Less Than Zero: The Case for a Falling Price Level in a Growing Economy, Institute of Economic Affairs (I.E.A.), Londres 1997.
[58] A essência do argumento contra a tese de que a poupança prejudica o desenvolvimento econômico e de que é preciso fomentar o consumo para promover o crescimento foi apresentada de maneira brilhante e sintética por Hayek em 1932 quando pôs em evidência que é uma contradição lógica pensar que o aumento do consumo se consubstancia num aumento do investimento, uma vez que este só pode ser aumentado graças a um aumento da poupança, que sempre se há-de fazer em detrimento do consumo. Pelas suas próprias palavras: “Money spent today on consumption goods does not immediately increase the purchasing power of those who produce for the future; in fact, it atually competes with their demand and their purchasing power is determined not by current but by past prices of consumer goods. This is so because the alternative always exists of investing the available produtive resources for a longer or a shorter period of time. All those who tacitly assume that the demand for capital goods changes in proportion to the demand for consumer goods ignore the fat that it is impossible to consume more and yet simultaneously to defer consumption with the aim of increasing the stock of intermediate produts.” F. A. Hayek, “Capital Consumption”, tradução inglesa do artigo previamente publicado com o título alemão de “Kapitalaufzehrung”, no Weltwirtschaftliches Archiv, n.º 36, II, 1932, pp. 86-108, cuja edição inglesa aparece como o capítulo VI em Money, Capital and Fluctuations: Early Essays, The Univesity of Chicago Press, Chicago 1984, pp. 141-142 (grifos nossos). O próprio Hayek relembra que esse princípio tão elementar já tinha sido enunciado por John Stuart Mill, que, na quarta proposta relativa ao capital, estabelecia que: “demand for commodities is not demand for labour”. No entanto, Hayek diz que Stuart Mill não foi capaz de justificar adequadamente tal princípio, que só passou a ser completamente aceito pelos teóricos com o desenvolvimento da teoria do capital por parte de Böhm-Bawerk e da teoria do ciclo por Mises e o próprio Hayek (ver John Stuart Mill, Principles of Political Economy, Augustus M. Kelley, Fairfield, Nova Jérsia 1976, Livro I, cap. V, n.º 9, pp. 79-88). A compreensão dessa ideia tão simples é, para Hayek, o verdadeiro “teste” de todo o economista: “More than ever it seems to me to be true that the complete apprehension of the doctrine that ‘demand of commodities is not demand for labor’ is ‘the best test of an economist’.” F.A. Hayek, The Pure Theory of Capital, edição de 1976, ob. cit., p. 439. Trata-se, em suma, de perceber que é perfeitamente possível que um empresário de bens de consumo ganhe dinheiro mesmo que as vendas não cresçam, ou até mesmo que diminuam, caso reduza os custos substituindo mão-de-obra por equipamento capital (cujo maior investimento gera postos de trabalho noutras etapas e torna a estrutura produtiva da sociedade mais capital-intensiva).
[59] Cabe a F. A. Hayek o mérito de ter sido o primeiro a ter desfeito teoricamente o pretenso “paradoxo da poupança” em 1929, no seu artigo “Gibt es einen ‘Widersinn des Sparens’?” (Zeitschrift für Nactionalökonomie, Bd. I, Heft III, 1929), traduzido para inglês com o título de “The ‘Paradox’ of Saving”, Economica, Maio de 1931, e reeditado em Profits, Interest and Investment, ob. cit., pp. 199-263. Na Itália, o grande Augusto Graziani manteve uma posição muito semelhante à de Hayek no seu artigo “Sofismi sul risparmio”, publicado originalmente na Rivista Sistema bancárioria, Dezembro de 1932, e depois reeditado nos seus Studi di Critica Economica, Società Anonima Editrice Dante Alighieri, Milão 1935, pp. 253-263. Realce-se que um autor de prestígio como Samuelson continuou a defender os velhos mitos da teoria do subconsumo que constituem a base do paradoxo ou dilema da poupança nas diferentes edições de seu popular manual, apoiando-se, como é lógico, nos sofismas da teoria keynesiana que teremos a oportunidade de comentar no capítulo VII. Só na décima terceira edição, a doutrina do “paradoxo da poupança” passou a ser considerada material opcional, desaparecendo o correspondente diagrama justificativo (Paul A. Samuelson e William N. Nordhaus,Economics, 13.ª edição, McGraw-Hill, Nova York 1989, pp. 183-185). Ver ainda Mark Skousen “The Perseverance of Paul Samuelson’s Economics“, Journal of Economic Perspetives, vol. II, n.º 2, Primavera de 1997, pp. 137-152. O principal erro da teoria do paradoxo da poupança consiste em ignorar os princípios básicos da teoria do capital e em não conceber a estrutura produtiva como constituída por uma série de etapas sucessivas, ao supor de forma implícita que só existem duas etapas, a da demanda final agregada de consumo e a constituída por um conjunto único de etapas intermediárias de investimento. Assim, no modelo simplificado do “fluxo circular de rendimento” considerado, assume-se que o efeito do aumento da poupança sobre o consumo se transmite imediata e automaticamente a todo o investimento. Ver, neste sentido, Mark Skousen: The Struture of Prodution, ob. cit., pp. 244-259.
[60] Murray N. Rothbard (Man, Economy and State, pp. 476-479) demonstrou que, como consequência do alongamento da estrutura produtiva que analisamos e que decorre do aumento da poupança voluntária, apriori não é possível determinar se se produz ou não um aumento do rendimento que chega aos capitalistas em forma de juros. No nosso exemplo gráfico, isto não acontece em termos monetários nem, possivelmente, em termos reais, uma vez que, embora a poupança e o investimento bruto cresçam, não podemos saber, com a ajuda apenas da teoria econômica, se o valor do rendimento derivado dos juros baixará, aumentará ou permanecerá estável, sendo que qualquer das alternativas é plausível. Não obstante, é possível que o rendimento dos fatores de produção originais também se reduza em termos monetários, embora sempre em menor grau do que a experimentada pelos preços dos bens e serviços de consumo. É evidente que, embora hoje em dia seja difícil conceber uma economia em desenvolvimento econômico rápido na qual o rendimento monetário dos fatores, e concretamente do trabalho, se reduza, tal é perfeitamente possível se o preço dos bens e serviços finais de consumo diminuir a um ritmo ainda mais elevado. Rothbard ilustra matematicamente este argumento através da seguinte formulação: se o preço do serviço de qualquer fator for igual a , onde MPP é o valor da sua produtividade marginal física, P o preço monetário que se espera obter pelos bens e serviços de consumo que se produzirem com esse fator e d um mais a taxa de juro à qual se desconta o valor da produtividade marginal (d = 1 + i) ; o preço real do fator será igual a , uma vez que o valor descontado da produtividade marginal divide-se pelos preços monetários dos bens e serviços de consumo para encontrar o valor real ou rendimento real do preço do fator. P e P cancelam-se no numerador e no denominador, o que faz com que o preço real do fator seja aproximadamente igual a , ou seja, à produtividade marginal física dividida pela taxa de juro. Assim, à medida que a taxa de juro se reduz com o crescimento da poupança, o valor real dos fatores originais de produção (rendimento do trabalho e dos recursos naturais) tenderá a aumentar. Embora o exemplo de Rothbard padeça dos típicos defeitos que a análise matemática tem sempre na Economia (representação por meio de símbolos de quantidades heterogêneas, com as quais se supõe erradamente que se pode operar), serve, pelo menos, como um ideograma que ilustra de forma simplificada o raciocínio econômico subjacente.
[61] Nas palavras do próprio John Hicks: “Bocaccio is describing the impact on people’s minds of the Great Plague at Florence, the expectation that they had not long to live. ‘Instead of furthering the future produts of their cattle and their land and their own past labour, they devoted all their attention to the consumpion of present goods’.” E John Hicks pergunta: “Why does Bocaccio write like Böhm-Bawerk? The reason is surely that he was trained as a merchant.” John Hicks, Capital and Time: A Neo-Austrian Theory, Clarendon Press, Oxford 1973, pp. 12-13.
[62] Eugen von Böhm-Bawerk, Capital and Interest, Volume II, The Positive Theory of Capital, ob. cit., pp. 113-114. Depois desta análise, Böhm-Bawerk chega à conclusão de que a poupança é a condição precedente essencial para a formação do capital. Nas palavras do próprio: “Dass Ersparung eine unentbehrliche Bedingung der Kapital-bildung ist” (Eugen von Böhm-Bawerk, edição alemã, ob. cit., p. 134).
[63] Fritz Machlup demonstrou muito claramente o erro dos teóricos do paradoxo ou dilema da poupança com o caso histórico concreto da economia austríaca posterior à Primeira Guerra Mundial, em que se fez o possível para fomentar o consumo e, ainda assim, o país empobreceu enormemente, concluindo ironicamente que “Austria had most impressive records in five lines: she increased public expenditures, she increased wages, she increased social benefits, she increased bank credits, she increased consumption. After all these achievements she was on the verge of ruin.” Fritz Machlup, “The Consumption of Capital in Austria”,Review of Economic Statistics, 17(1), 1935, pp. 13-19. Houve processos semelhantes de empobrecimento na Argentina do general Perón ou em Portugal depois da Revolução do Cravos. Na Espanha, Francisco Cabrillo estudou o papel da poupança e da ética individual da frugalidade para o crescimento no seu artigo “Los economistas y la ética del ahorro”, Papeles de economía española, n.º 47, 1991, pp. 173-178.
[64] “So far as deposits are created by the banks […] money means are created, and the command of capital is supplied, without cost or sacrifice on the part of the saver.” F.W. Taussig, Principles of Economics, 3.ª edição, Macmillan, Nova York 1939, vol. I, p. 357.
[65] “It does not matter whether this drop in the gross market rate expresses itself in an arithmetical drop in the percentage stipulated in the loan contrats. It could happen that the nominal interest rates remain unchanged and that the expansion manifest itself in the fat that at these rates loans are negotiated which would not have been made before on acount of the height of the entrepreneurial component to be included. Such an outcome too amounts to a drop in gross market rates and brings about the same consequences.” Ludwig von Mises, Human Action, ob. cit., p. 552.
[66] “When under the conditions of credit expansion the whole amount of the additional money substitutes is lent to business, production is expanded. The entrepreneurs embark either upon lateral expansion of prodution (viz., the expansion of prodution without lengthening the period of production in the individual industry) or upon longitudinal expansion (viz., the lengthening of the period of prodution). In either case, the additional plants require the investment of additional fators of production. But the amount of capital goods available for investment has not increased. Neither does credit expansion bring about a tendency toward a restrition of consumption.” Ludwig von Mises, Human Action, ob. cit., p. 556.
[67] “A lengthening of the period of prodution is only practicable, however, either when the means of subsistence have increased sufficiently to support the laborers and entrepreneurs during the longer period or when the wants of producers have decreased sufficiently to enable them to make the same means of subsistence do for the longer period.” Ludwig von Mises, The Theory of Money and Credit, ob. cit., p. 400.
[68] Noutro lugar explicamos teoricamente a razão por que o exercício sistemático da coação e a manipulação dos indicadores de mercado, consequência da intervenção governamental ou da concessão de privilégios por parte do governo a grupos de interesse (sindicatos, bancos, etc.) impedem que se crie e descubra a informação necessária para coordenar a sociedade, o que dá origem de forma sistemática a graves desajustamentos e descoordenações sociais. Ver: Jesús Huerta de Soto, Socialismo, cálculo econômico y función empresarial, ob. cit., caps. II e III.
[69] Ludwig von Mises, Human Action, ob. cit., p. 553. Uma vez que toda a poupança se manifesta ou materializa em bens de capital, embora inicialmente estes sejam os bens de consumo que ficam por vender com o aumento da poupança, a explicação de Mises é absolutamente correta. Recorde-se o conteúdo das notas 13 e 55.
[70] Na obra The Great Depression (The Macmillan Company, Nova York, 1934), Lionel Robbins apresenta as seguintes dez caraterísticas típicas de todo o processo de boom: primeira, a taxa de juro reduz-se em termos relativos; segunda: as taxas de juro a curto prazo começam a cair; terceira, as taxas de juro a longo prazo também baixam; quarta, a quotização das obrigações eleva-se; quinta, aumenta a velocidade de circulação do dinheiro; sexta, as ações na bolsa sobem; sétima, o valor do imobiliário começa a subir rapidamente; oitava, há um boom industrial e uma grande quantidade de emissões de títulos no mercado primário; nona, o preço dos recursos naturais e dos bens intermediários sobe; e, por fim, décima, o mercado de valores sofre um crescimento exorbitante baseado na expetativa de um aumento ininterrupto dos lucros empresariais (pp. 39-42). Roger Garrison interpreta todos estes fenômenos como uma insustentável transferência para fora na curva de possibilidades máximas de produção. Ver: Time and Money: The Macroeconomics of Capital Struture, ob. cit., pp. 67-76.
[71] Com esta advertência pretendemos evitar o erro em que poderiam cair todos quantos se prestassem a fazer uma interpretação estritamente teórica dos nossos gráficos, como foi o caso de Nicholas Kaldoe na análise crítica da teoria de Hayek, tal como demonstraram recentemente Laurence S. Moss e Karen I. Vaughn, para quem “the problem is not to learn about adjustments by comparing states of equilibrium but rather to ask if the conditions remaining at T1 make the transition to T2 at all possible. Kaldor’s approach indeed assumed away the very problem that Hayek’s theory was designed to analyze, the problem of the transition an economy undergoes in moving from one coordinated capital struture to another.” Ver o artigo “Hayek’s Ricardo Effect: A Second Look”, em History of Political Economy, nº 18:4, 1986, p. 564. Os artigos em que Kaldor criticou Hayek foram “Capital Intensity and the Trade Cycle”, Economica, fevereiro de 1939, pp. 40-66; e também “Professor Hayek and the Concertina Effect”, Economica, novembro de 1942, pp. 359-382. Curiosamente, Kaldor tinha traduzido de alemão para inglês a obra de Hayek Monetary Theory and the Trade Cycle, publicada pela primeira vez em 1933 (Routledge, Londres). Recentemente, Rudy van Zijp assinalou que as críticas de Kaldor e outros ao “Efeito Ricardo” hayekiano decorriam de uma situação hipotética de equilíbrio geral que não permitia uma análise dinâmica da descoordenação intertemporal que toda a expansão de crédito no mercado provoca. Ver: Rudy van Zijp, Austrian and New Classical Business Cycle Theory, Edward Elgar, Aldershot, Inglaterra 1994, pp. 51-53.
[72] Mises, The Theory of Money and Credit, p. 401 (grifos nossos). As duas últimas frases são tão importantes que vale a pena apresentar a forma como Mises expressou a ideia essencial na sua versão alemã original: “Aber bald setzt eine rückläufige Bewegung ein: Die Preise der Konsumgüter steigen, die der Produktivgüter sinken, das heibt der Darlehenszinsfub steigt wieder, er nähert sich wieder dem Satze des natürlichen Kapitalzinses.” Ludwig von Mises, Theorie des Geldes und der Umlaufsmittel, Duncker & Humblot, 2.ª edição alemã, Munique e Leipzig 1924, p. 372. Assinale-se que Mises, muito influenciado pela doutrina do “juro natural” de Wicksell, baseia a sua teoria nas disparidades que se verificam ao longo do ciclo entre o “juro natural” e o “juro bruto do mercado de crédito” (ou “monetário”), temporariamente reduzido pela sistema bancário no processo de expansão de crédito. Embora a análise de Mises nos pareça impecável, preferimos apresentar a teoria do ciclo com base diretamente nos efeitos da expansão de crédito sobre a estrutura produtiva, minimizando de alguma forma a análise de Mises sobre as disparidades entre o “juro natural” e o “monetário”. O principal trabalho de Knut Wicksell é, para os nossos propósitos, Geldzins und Güterpreise: Eine Studie über die den Tauschwert des Geldes bestimmenden Urchachen, Verlag von Gustav Fischer, Jena 1898, traduzido para inglês por R.F. Kahn com o título de Interest and Prices: A Study of the Causes Regulating the Value of Money, Macmillan, Londres 1936 e Augustus M. Kelley, Nova York 1965. Contudo, a análise de Wicksell é muito inferior à de Mises, sobretudo porque se apóia quase exclusivamente na evolução do nível geral dos preços, e não nas variações de preços relativos na estrutura de bens de capital, que é o núcleo fundamental da nossa teoria. Mises retomou e completou a sua teoria do ciclo emGeldwertstabilisierung und Konjunkturpolitik, Gustav Fischer, Jena 1928 (trad. inglesa de Bettina Bien Greaves, “Monetary Stabilization and Cyclical Policy”, On the Manipulation of Money and Credit, Freemarket Books, Dobbs Ferry, Nova York 1978).
[73] Os trabalhos mais importantes de Hayek são: Geldtheorie und Konjunkturtheorie, Beitrage zur Konjuntkturforschung, herausgegeben vom Österreischisches Institut für Konjunkturforschung, n.º 1, Viena 1929, traduzido para inglês por N. Kaldor e publicado com o título de Monetary Theory and the Trade Cycle, Routledge, Londres 1933, e Augustus M. Kelley, Nova Jersey, 1975; Prices and Prodution, ob. cit., cuja 1.ª edição surgiu em 1931 e a segunda, revista e ampliada, em 1935, sendo posteriormente reeditada mais de dez vezes na Inglaterra e nos Estados Unidos (Augustus M. Kelley); Profits, Interest and Investment, Routledge, Londres 1939, e Augustus M. Kelley, Nova Jersey, 1969 e 1975; O conjunto de ensaios publicados na obra Money, Capital and Flutuations: Early Essays, editada por Roy Mcloughry, University of Chicago Press, Chicago 1984; e, por último, The Pure Theory of Capital, Macmillan, Londres 1941 e quatro edições posteriores de Routledge. O próprio Hayek, num “Apêndice” incluído em Prices and Prodution (pp. 101-104) resume os antecedentes da teoria austríaca ou da circulação dos créditos dos ciclos econômicos, que remonta ao próprio Ricardo (enunciador do efeito que Hayek batizou com o nome “Efeito Ricardo”), Condy Raguet, James Wilson e Bonamy Price, na Inglaterra e nos Estados Unidos; J.G. Courcelle-Seneuil, V. Bonnet e Yves Guyot na França. Em alemão, curiosamente, podem ser encontradas ideias muito semelhantes às dos teóricos da Escola Austríaca nos escritos de Karl Marx e, sobretudo, nos de Mijail Tugan-Baranovsky (ver o seu artigo “Crisis Econômicas y Produción Capitalista”, incluído em Leturas de economía política, Francisco Cabrillo (ed.), Minerva Ediciones, Madrid 1991, pp. 191-210) e, também, em E. von Böhm-Bawerk (Capital and Interest, vol. II, Positive Theory of Capital, ob. cit., pp. 316 e ss.). Mais tarde, já contemporâneos de Hayek, trabalharam na mesma linha Richard von Strigl, em Kapital und Produktion, publicado por Philosophia Verlag, Munique e Viena 1934 e 1982; Bresciani-Turroni na Itália, Le Vicende del Marco Tedesco, Univesità Boconi, Milão 1931; Gottfried Haberler, “Money and the Business Cycle”, publicado em 1932 e reeditado em The Austrian Theory of the Trade Cycle and Other Essays, The Ludwig von Mises Institute, Washington D.C. 1978, pp. 7-20; Fritz Machlup, The Stock Market, Credit and Capital Formation, originalmente publicado em alemão em 1931 e reeditado em inglês, William Hodge, Londres 1940. No mundo anglo-saxónico destaquem-se os trabalhos de H.J. Davenport, The Economics of Enterprise, ob. cit., cap. XIII; Frederick Benham, British Monetary Policy, P.S. King & Shaw, Londres 1932; H. F. Fraser, Great Britain and the Gold Standard, Macmillan, Londres 1933; T.E. Gregory, Gold, Unemployment and Capitalism, P.S. King & Shaw, Londres 1933; E.F.M. Durbin, Purchasing Power and Trade Depression: A Critique of Under-Consumption Theories, Jonathan Cape, Londres e Toronto 1933, e The Problem of Credit Policy, Chapman & Hall, Londres 1935; M. A. Abrams, Money in a Changing Civilisation, John Lain, Londres 1934; e C. A. Philips, T. F. McManus e R. W. Nelson, Banking and the Business Cycle, Arno Press, Nova York 1937. Ainda nos Estados Unidos, Frank Albert Fetter, especialmente no artigo “Interest Theory and Price Movements”, American Economic Review, vol. XVII, n.º 1, 1926, pp. 72 e ss., incluído em Capital, Interest and Rent, M. N. Rothbard (ed.), Sheed, Andrews and McMeel, Kansas City 1977.
[74] Recordemos que, em 1974, a Academia Sueca concedeu a F. A. Hayek o Prêmio Nobel da Economia precisamente pelo “pioneering work in the theory of money and economic fluctuations”. Ver William J. Zahka, The Nobel Prize Economics Letures, Avebury, Aldershot, Inglaterra, 1992, pp. 19 e 25-28. Não existe muita bibliografia em espanhol sobre a teoria austríaca do ciclo econômico embora possa remontar-se ao artigo de Mises publicado pela Revista de Ocidente em 1932 (“La causa de las crisis econômicas”, Revista de Ocidente, número de fevereiro de 1932, bem como à tradução de Luis Olariaga de Monetary Theory and the Trade Cycle, de F.A. Hayek: La teoría monetaria y el ciclo econômico, publicada pela Espasa-Calpe em 1936. A edição e Olariaga deste livro de Hayek inclui como Anexo uma tradução para espanhol (intitulada “Previsiones de Precios, Perturbaciones Monetarias e Inversiones Fracasadas”) da versão original inglesa sobre “Price Expectations, Monetary Disturbances and Malinvestments”, que aparece como cap. IV da obra Profits,Interest and Investment, e que é indubitavelmente um dos artigos em que Hayek apresenta mais claramente a sua teoria do ciclo econômico (felizmente incluído na tradução espanhola de Prices and Prodution —Precios y prudución — publicada em 1996). Também no fatídico ano do começo da Guerra Civil Espanhola foi publicada a primeira tradução para espanhol de The Theory of Money and Credit, de Ludwig von Mises —Teoría del dinero y del crédito (Tradução de Antonio Riaño, Editorial Aguilar, Madrid 1936). Não surpreende que a guerra tenha tornado muito reduzido o impato dessas obras na Espanha. Depois da guerra civil, merece destaque o resumo da teoria austríaca do ciclo feito por Richard von Strigl no seu Curso medio de economia, traduzido para espanhol por M. Sánchez Sarto e publicado pelo Fondo de Cultura Econômica, México 1941. Em 1947, aparece o livro de Emilio de Figueroa, Teoría de los ciclos econômicos (CSIC, Madrid 1947), em cujo Tomo II são apresentadas de forma comparativa as teorias dos ciclos de Hayek e Keynes (pp.44-63). Também a Fondo de Cultura Econômica se deve a tradução do livro de J. A. Estey, Tratado sobre os Ciclos Económicos(Fondo de Cultura Econômica, México 1948), cujo capítulo XIII explica ao pormenor o conteúdo da teoria austríaca. As últimas obras sobre este tema a serem traduzidas para espanhol foram Prosperidad y depresión:análisis teórico de los movimientos cíclicos de Gottfried Haberler, com tradução de Gabriel Franco e Javier Márquez, publicada pelo Fondo de Cultura Econômica em 1942 e que dedica o capítulo III à teoria monetária dos ciclos econômicos da Escola Austríaca; La teoría pura del capital, de F.A. Hayek, publicada pela Aguilar em 1946 e La Acción Humana: Tratado de Economía, de Ludwig von Mises, cuja 1.ª edição foi publicada em 1960 pela Fundación Ignacio Villalonga. Depois desses livros, em espanhol só resta mencionar o meu artigo “La teoría austriaca del ciclo econômico”, publicado no n.º 152 (março de 1980) de Moneda y Crédito, no qual é apresentada uma ampla bibliografia sobre este tema; e ainda o conjunto de ensaios de F. A. Hayek publicado com o título ¿Inflación o Pleno Empleo?, Unión Editorial, Madrid 1976. Por ultimo, em 1996, surgiu a tradução para espanhol de Carlos Rodríguez Braun de Prices and Prodution (Precios y produción), publicada pelas Ediciones Aosta e Unión Editorial.
[75] Na seção 11 do Capítulo VI veremos como a nossa análise não sofre alterações significativas mesmo que exista um volume substancial anterior de fatores produtivos não empregados.
[76] “The additional demand on the part of the expanding entrepreneurs tends to raise the prices of producers’ goods and wage rates. With the rise in wage rates, the prices of consumers’ goods rise too. Besides, the entrepreneurs are contributing a share to the rise in the prices of consumers’ goods as they too, deluded by de illusory gains which their business accounts show, are ready to consume more. The general upstream in prices spreads optimism. If only the prices of producers’ goods had risen and those of consumers’ goods had not been affected, the entrepreneurs would have become embarrassed. They would have had doubts concerning the soundness of their plans, as the rise in costs of prodution would have upset their calculations. But they are reassured by the fact that the demand for consumers’ goods is intensified and makes it possible to expand sales in spite of rising prices. Thus they are confident that prodution will pay, notwithstanding the higher costs it involves. They are resolved to go on.” Ludwig von Mises, Human Action, ob. cit., p. 553.
[77] Como explica Hayek de forma tão concisa: “For a time, consumption may even go on at an unchanged rate after the more roundabout processes have actually started, because the goods which have already advanced to the lower stages of prodution, being of a highly specific character, will continue to come forward for some little time. But this cannot go on. When the reduced output from the stages of prodution, from which producers’ goods have been withdrawn for use in higher stages, has matured into consumers’ goods, a scarcity of consumers’ goods will make itself felt, and the prices of those goods will rise.” F.A. Hayek, Prices and Prodution, ob. cit., p. 88.
[78] “Sooner or later, then, the increase in the demand for consumers’ goods will lead to an increase of their prices and of the profits made on the prodution of consumers’ goods. But once prices begin to rise, the additional demand for funds will no longer be confined to the purposes of new additional investment intended to satisfy the new demand. At first —and this is a point of importance which is often overlooked— only the prices of consumers’ goods, and of such other goods as can rapidly be turned into consumers’ goods, will rise, and consequently profits also will increase only in the late stages of prodution […] The prices of consumers’ goods would always keep a step ahead of the prices of factors. That is, so long as any part of the additional income thus created is spent on consumers’ goods (i.e. unless all of it is saved), the prices of consumers’ goods must rise permanently in relation to those of the various kinds of input. And this, as will by now be evident, cannot be lastingly without effect on the relative prices of the various kinds of input and on the methods of prodution that will appear profitable.” F.A. Hayek, The Pure Theory of Capital, ob. cit., pp. 377-378 (grifos nossos). Acrescente-se que num ambiente de aumento da produtividade não se verificará um aumento dos preços (unitários) dos bens de consumo, mas sim um grande aumento no valor (monetário) das vendas e lucros globais das empresas mais próximas do consumo.
[79] Além disso, o Efeito Ricardo não é mais do que uma manifestação de que os novos projetos de investimento se maturam num futuro demasiado distante, tendo em conta as circunstâncias reais do mercado, pelo que poderiam terminar por falta de rentabilidade. Como é lógico, o fato de que por via sindical e coativa se consiga alcançar um crescimento dos salários a um ritmo semelhante ao do aumento do preço dos bens de consumo em nada prejudica o nosso argumento, uma vez que continuariam a exercer o seu efeito as outras cinco razões que mencionamos no texto. E até o próprio “Efeito Ricardo”, dado que, pelo menos em termos relativos, os preços dos fatores de produção usados nas etapas mais próximas do consumo será sempre mais reduzido do que o dos recursos usados nas etapas mais afastadas. Desta forma, o “Efeito Ricardo”, que se baseia numa comparação relativa de preços, continuaria a exercer o seu efeito (as etapas mais próximas do consumo continuariam a contratar em termos relativos mais mão-de-obra do que equipamento capital). Os aumentos coercivos dos rendimentos dos fatores de produção originais levariam apenas, em última instância, a que houvesse um crescimento significativo do volume do desemprego involuntário dos membros deste grupo, especialmente grave nas etapas mais afastadas do consumo.
[80] A primeira vez que Hayek se referiu expressamente ao “Efeito Ricardo” para explicar o processo de reversão dos efeitos iniciais da expansão de crédito, foi no seu ensaio “Profits, Interest and Investment”, incluído nas pp. 3-71 do livro com o mesmo título que publicou em 1939 (Routledge, Londres 1939). Em concreto, podemos ler uma muita concisa descrição do “Efeito Ricardo” na p. 13 deste ensaio, na qual Hayek afirma que: “It is here that the ‘Ricardo Effect’ comes into action and becomes of decisive importance. The rise in the prices of consumers’ goods and the consequent fall in real wages means a rise in the rate of profit in the consumers’ goods industries, but, as we have seen, a very different rise in the time rates of profit that can now be earned on more direct labour and on the investment of additional capital in machinery. A much higher rate of profit will now be obtainable on money spent on labour than on money invested in machinery. The effect of this rise in the rate of profit in the consumers’ goods industries will be twofold. On the one hand it will cause a tendency to use more labour with the existing machinery, by working over time and double shifts, by using outworn and obsolete machinery, etc., etc. On the other hand, in so far as new machinery is being installed, either by way of replacement or in order to increase capacity, this, so long as real wages remain low compared with the marginal produtivity of labour, will be of a less expensive, less labour-saving or less durable type.” O funcionamento do “Efeito Ricardo” nas fases mais expansivas do boom pode ver-se também, além do trabalho mencionado, no artigo “The Ricardo Effect” publicado em Economica em 1942 (IX, n.º 34, pp. 127-152), e ainda no já citado “Three Elucidations of the Ricardo Effect”, publicado em Journal of Political Economy, vol. 7-7, n.º 2, ano 1969. Sobre etse tema, são também interessantes os trabalhos de Laurence S. Moss e Karen I. Vaughn, “Hayek’s Ricardo Effect: A Second Look” (History of Political Economy, n.º 18:4, ano 1986, pp. 545-565), G.P. O’Driscoll, “The Specialization Gap and the Ricardo Effect: Comment on Ferguson”, publicado em History of Political Economy, vol. 7, Verão de 1975, pp. 261-269, y J. Huerta de Soto, “Ricardo Effet”, em An Eponymous Ditionary of Economics: A Guide to Laws and Theorems Named After Economists, J. Segura y C. Rodríguez Braun (eds.), Edward Elgar, Cheltenham, Inglaterra 2004.
[81] Ou como explica Mises: “With further progress of the expansionist movement the rise in the prices of consumers’ goods will outstrip the rise in the prices of producers’ goods. The rise in wages and salaries and the additional gains of the capitalists, entrepreneurs, and farmers, although a great part of them is merely apparent, intensify the demand for consumers’ goods […] At any rate, it is certain that the intensified demand for consumers’ goods affets the market at a time when the additional investments are not yet in a position to turn out their produts. The gulf between the prices of present goods and those of future goods widens again. A tendency toward a rise in the rate of originary interest is substituted for the tendency toward the opposite which may have come into operation at the earlier stages of the expansion.” Ludwig von Mises, Human Action, ob. cit., p. 558.
[82] Além disso, o prêmio de risco começa a crescer à medida que surgem dúvidas sobre a viabilidade dos diferentes projetos de investimento. Já em 1928, Ludwig von Mises escrevia: “The banks can no longer make additional loans at the same interest rates. As a result, they must raise the loan rate once more for two reasons. In the first place, the appearance of the positive price premium forces them to pay higher interest for outside funds which they borrow. Then, also they must discriminate among the many applicants for credit. Not all enterprises can afford this increased interest rate. Those which cannot run into difficulties.”Ver: On the Manipulation of Money and Credit, Freemarket Books, Nova York 1978, p. 127. Esta é a tradução para inglês de Bettina Bien Greaves do livro publicado em 1928 por Ludwig von Mises com o título deGeldwertstabilisierung und Konjunkturpolitik, Gustav Fischer, Jena 1928. A passagem que acabamos de mostrar em inglês encontra-se nas pp. 51-52 desta edição alemã que inclui toda a teoria de Mises sobre o ciclo econômico de forma detalhada e que foi publicada antes de Prices and Prodution e da edição alemã deA teoria monetária e o ciclo econômico de Hayek (1929). É curioso que Hayek quase nunca cite esta importante obra em que Mises elabora e aprofunda a teoria do ciclo, que só pôde desenvolver no seu livroThe Theory of Money and Credit publicado dezesseis anos antes. Talvez esta omissão de Hayek tenha sido deliberada e tenha tido origem no desejo de fazer ver à comunidade científica que a primeira tentativa de aprofundamento da teoria misiana foram as suas obras sobre Monetary Theory and the Trade Cycle and Prices and Prodution, ultrapassando assim o tratamento já muito completo dado ao tema por Mises em 1928.
[83] Ver F.A. Hayek, “Investment that Raises the Demand for Capital”, publicado em The Review of Economics and Statistics, vol. XIX, n.º 4, Novembro de 1937 e reimpresso em Profits, Interest and Investment, ob. cit., pp. 73-82.
[84] O próprio Hayek, referindo-se à subida das taxas de juro na etapa final do boom, afirma que: “The most important cause pratically of such false expectations probably is a temporary increase in the supply of such funds through credit expansion at a rate which cannot be maintained. In this case, the increased quantity of current investment will induce people to expet investment to continue at a similar rate for some time, and in consequence to invest now in a form which requires for its sucessful completion further investment at a similar rate […] And the greater the amount of investment which has already been made compared with that which is still required to utilise the equipment already in existence, the greater will be the rate of interest which can advantageously be borne in raising capital for these investments completing the chain.” F. A. Hayek, “Investment that Raises the Demand for Capital”, ob. cit., pp. 76 e 80. Mises esclarece que o boomencontra seu fim quando os empresários começam a ter dificuldades para obter o financiamento de que precisam para os projetos de investimento: “The entrepreneurs cannot procure the funds they need for the further condut of their ventures. The gross market rate of interest rises because the increased demand for loans is not counterpoised by a corresponding increase in the quantity of money available for lending.”Ludwig von Mises, Human Action, ob. cit., p. 554.
[85] “Entrepreneurs determined to complete their endangered long-term capital projects turn to the banks for more bank credit, and a tug-of-war begins. Producers seek new bank loans, the banking system acommodates the new loan demand by creating new money, produt prices rise ahead of wage costs. In each market period the process repeats itself, with produt prices always rising ahead of wages.” Laurence S. Moss y Karen I. Vaughn, “Hayek’s Ricardo Effect: A Second Look”, ob. cit., p. 554. Mises, por sua vez, explica o processo em Human Action da seguinte forma: “This tendency toward a rise in the rate of originary interest and the emergence of a positive price premium explain some charateristics of the boom. The banks are faced with an increased demand for loans and advances on the part of business. The entrepreneurs are prepared to borrow money at higher gross rates of interest. They go on borrowing in spite of the fat that banks charge more interest. Arithmetically, the gross rates of interest are rising above their height on the eve of the expansion. Nonetheless, they lag catalatically behind the height at which they would cover originary interest plus entrepreneurial component and price premium. The banks believe that they have done all that is needed to stop ‘unsound’ speculation when they lend on more onerous terms. They think that those critics who blame them for fanning the flames of the boom-frenzy of the market are wrong. They fail to see that in injeting more and more fiduciary media into the market they are in fat kindling the boom. It is the continuous increase in the supply of the fiduciary media that produces, feeds, and acelerates the boom. The state of the gross market rates of interest is only an outgrowth of this increase. If one wants to know whether or not there is credit expansion, one must look at the state of the supply of fiduciary media, not at the arithmetical state of the interest rates.” Ludwig von Mises, Human Action, ob. cit., p. 558-559.
[86] Nas palavras do próprio F.A. Hayek: “The crux of the whole capital problem is that while it is almost always possible to postpone the use of things now ready or almost ready for consumption, it is in many cases impossible to anticipate returns which were intended to become available at a later date. The consequence is that, while a relative deficiency in the demand for consumers’ goods compared with supply will cause only comparatively minor losses, a relative excess of this demand is apt to have much more serious effets. It will make it altogether impossible to use some resources which are destined to give a consumable return only in the more distant future but will do so only in collaboration with other resources which are now more profitably used to provide consumables for the more immediate future.” F.A. Hayek,The Pure Theory of Capital, pp. 345-346.
[87] É precisamente por isso que noutro local defendi que o ciclo econômico é um caso particular dos erros de cálculo econômico provocados pelo intervencionismo do estado na economia (neste caso, no campo monetário e do crédito). Ver: Jesús Huerta de Soto, Socialismo, cálculo econômico y función empresarial, ob. cit., pp. 111 e ss. Isto é, pode considerar-se que todo o conteúdo deste livro não é mais do que a aplicação ao caso particular do setor do crédito e financeiro do teorema da impossibilidade do cálculo econômico socialista.
[88] “The whole entrepreneurial class is, as it were, in the position of a master-builder whose task it is to erect a building out of a limited supply of building materials. If this man overestimates the quantity of the available supply, he drafts a plan for the execution of which the means at his disposal are not sufficient. He oversizes the groundwork and the foundations and only discovers later in the progress of the constrution that he lacks the material needed for the completion of the structure. It is obvious that our master-builder’s fault was not overinvestment, but an inappropriate employment of the means at his disposal.”Ludwig von Mises, Human Action, ob. cit., p. 560.
[89] Ver Jesús Huerta de Soto, “La teoría austriaca del ciclo econômico”, em Estudios de economía política, Unión Editorial, Madrid 1994, cap. 13, p. 175. Hayek usa este exemplo com as palavras seguintes : “The situation would be similar to that of a people of an isolated island, if, after having partially construted an enormous machine which was to provide them with all necessities, they found out that they had exhausted all their savings and available free capital before the new machine could turn out its produt. They would then have no choice but to abandon temporarily the work on the new process and to devote all their labour to producing their daily food without any capital.” F.A. Hayek, Prices and Prodution, ob. cit., p. 94.
[90] “The entrepreneurs must restrict their activities because they lack the funds for their continuation on the exaggerated scale. Prices drop suddenly because these distressed firms try to obtain cash by throwing inventories on the market dirt cheap. Fatories are closed, the continuation of constrution projects in progress is halted, workers are discharged. As on the one hand many firms badly need money in order to avoid bankruptcy, and on the other hand no firm any longer enjoys confidence, the entrepreneurial component in the gross market rate of interest jumps to an excessive height.” Ludwig von Mises, HumanAction, ob. cit., p. 562. Por sua vez, Mark Skousen assinala que na etapa recessiva, ocorrem os seguintes efeitos sobre o preço dos produtos das diferentes etapas: primeiro, as maiores descidas de preços e no emprego ocorrem normalmente nas empresas que se dedicam às atividades mais afastadas do consumo. Emsegundo lugar, caem também os preços dos produtos das etapas intermediárias, se bem que em menor proporção. Em terceiro lugar, os preços de mercado se reduzem globalmente, embora em menor proporção; e em quarto lugar e último lugar, o preço dos bens de consumo também tende a cair, embora numa proporção muito menor do que a ocorrida no restante dos bens de que falamos. Além disso, é possível ainda que o preço dos bens de consumo, em vez de baixar, suba, se nos encontrarmos num ambiente de recessão inflacionária. Ver: Mark Skousen, The Structure of Production, ob. cit., p. 304.
[91] Fritz Machlup estudou aprofundadamente as causas que promovem o achatamento da estrutura produtiva e a razões por que, depois do reajustamento, esta é diferente e mais pobre do que a que existia antes da expansão de crédito: “(1) Many capital goods are specific, i.e., not capable of being used for other purposes than those they were originally planned for; major losses follow then from the change in prodution structure. (2) Capital values in general —i.e., anticipated values of the future income— are reduced by higher rates of capitalization; the owners of capital goods and property rights experience, therefore, serious losses. (3) The specific capital goods serviceable as ‘complementary’ equipment for those lines of prodution which would correspond to the consumers’ demand are probably not ready; employment in these lines is, therefore, smaller than it could be otherwise. (4) Marginal-value produtivity of labour in shortened investment periods is lower, wage rates are, therefore, depressed. (5) Under inflexible wage rates unemployment ensues from the decreased demand prices for labour”. Ver Fritz Machlup, “Professor Knight and the ‘Period of Prodution'”, Journal of Political Economy, outubro de 1935, n.º 5, vol. 43, p. 623. Ludwig von Mises é, talvez, ainda mais taxativo a respeito da possibilidade de a nova estrutura produtiva ser semelhante à que existia antes da expansão de crédito, ao afirmar que: “These data, however, are no longer identical with those that prevailed on the eve of the expansionist process. A good many things have changed. Forced saving and, to an even greater extent, regular voluntary saving may have provided new capital goods which were not totally squandered through malinvestment and overconsumption as induced by the boom. Changes in the wealth and income of various individuals and groups of individuals have been brought about by the unevenness inherent in every inflationary movement. Apart from any causal relation to the credit expansion, population may have changed with regard to figures and the charateristics of the individuals comprising them; technological knowledge may have advanced, demand for certain goods may have been altered. The final state to the establishment of which the market tends is no longer the same toward which it tended before the disturbances created by the credit expansion.” Ludwig von Mises, Human Action, ob. cit., p. 563.
[92] Nas categóricas palavras de Laurence S. Moss e Karen I. Vaughn “Any real growth in the capital stock takes time and requires voluntary net savings. There is no way for na expansion of the money supply in the form of bank credit to short-circuit the process of economic growth.” “Hayek’s Ricardo Effect: A Second Look”, ob. cit., p. 555 (grifos nossos). Talvez o artigo onde Hayek explica todo esse processo de forma mais sintética seja na obra “Price Expectations, Monetary Disturbances and Malinvestment”, publicado em 1933 e incluído no seu livro Profits, Interest and Investment, ob. cit., p. 135-156. Na mesma linha, ver os trabalhos de Roger W. Garrison ilustrando graficamente a teoria austríaca do capital e dos ciclos e comparando-a com as exposições gráficas mais habitualmente utilizadas nos livros de texto de macroeconomia para demonstrar os modelos clássico e keynesiano, e, especialmente, “Austrian Macroeconomics: A Diagrammatical Exposition”, originalmente publicado nas pp. 167-201 do livro New Diretions in Austrian Economics, Louis M. Spadaro (ed.), Sheed Andrews & McMeel, Kansas City 1978 (este trabalho foi depois reeditado como monografia independente pelo Institute for Humane Studies em 1978 e ampliado e generalizado no seu livroTime and Money, ob. cit.), e o trabalho de Ludwig M. Lachmann “A Reconsideration of the Austrian Theory of Industrial Flutuations”, originalmente publicado em Economica, n.º 7, maio de 1940, e incluído nas pp. 267-284 do livro Capital, Expectations and the Market Process: Essays on the Theory of the Market Economy, Ludwig M. Lachmann, Sheed, Andrews & McMeel, Kansas City 1977. Por fim, pode ser consultada a descrição sintética de todo o processo no meu artigo “La teoría austriaca del ciclo econômico”, obra já citada.
[93] Ver neste sentido Jesús Huerta de Soto, Socialismo, cálculo econômico y función empresarial, ob. cit., pp. 46-47.
[94] “The Bayesian approach rules out the possibility of surprise”. J.D. Hey, Economics in Disequilibrium, New York University Press, Nova York 1981, p. 99. No mesmo sentido, Emiel F.M. Wubben, no seu artigo “Austrian Economics and Uncertainty”, manuscrito apresentado na First European Conference on Austrian Economics(Maastricht, abril de 1992, p. 13), afirma que: “the conclusion to be drawn is the impossibility of talking about subjective probabilities that tend to objective probabilities. The dimensions are not on the same footing but cover different levels of knowledge.”
[95] Ludwig von Mises, Human Action, ob. cit., pp. 110-118.
[96] Referimo-nos, em suma, ao fenômeno de moral hazard ou risco moral, que já foi analisado em termos teóricos por M. V. Pauly (The Economics of Moral Hazard”, American Economic Review, vol. 58, 1968, pp. 531-537). No mesmo sentido, destaque-se o trabalho de Kenneth J. Arrow, “The Economics of Moral Hazard: Further Comments”, publicado originalmente em Americam Economic Review, vol. 58, 1968, pp. 537-553, onde Arrow continua as investigações sobre este fenômeno que tinha iniciado no seu artigo de 1963 sobre “Uncertainty in the Welfare Economics of Medical Care”, American Economic Review, vol. 53, 1963, pp. 941-973. Segundo Arrow, o risco moral aparece sempre que “the insurance policy might itself change incentives and therefore the probabilities upon which the insurance company has relied”. Estes dois artigos de Arrow foram incluídos no seu livro Essays in the Theory of Risk-Bearing, North Holland Publishing Company, Amsterdã, Londres e Nova York 1974, pp. 177-222 e em especial as pp. 201-204. Por fim, é necessário consultar o capítulo dedicado aos riscos não asseguráveis do notável livro de Karl H. Borch, Economics of Insurance, North Holland, Amsterdã e Nova York 1990, em especial as pp. 321 e 325-330, e o trabalho de J. E. Stiglitz “Risk, Incentives and Insurance: The Pure Theory of Moral Hazard”, publicado em The Geneva Papers on Risk and Insurance, n.º 26, ano 1983, pp. 4-33.
[97] “The boom produces impoverishment. But still more disastrous are its moral ravages. It makes people despondent and dispirited. The more optimistic they were under the illusory prosperity of the boom, the greater is their despair and their feeling of frustration.” Ludwig von Mises, Human Action, ob. cit., p. 576.
[98] Ludwig von Mises confessava já em 1928 que “I could not understand why the banks didn’t learn from experience. I thought they would certainly persist in a policy of caution and restraint, if they were not led by outside circumstances to abandon it. Only later did I become convinced that it was useless to look to an outside stimulus for the change in the conduct of the banks. Only later did I also become convinced that flutuations in general business conditions were completely dependent on the relationship of the quantity of fiduciary media in circulation to demand […] We can readily understand that the banks issuing fiduciary media, in order to improve their chances for profit, may be ready to expand the volume of credit granted and the number of notes issued. What calls for a special explanation is why attempts are made again and again to improve general economic conditions by the expansion of circulation credit in spite of the spetacular failure of such efforts in the past. The answer must run as follows: Acording to the prevailing ideology of businessman and economist-politician, the redution of the interest rate is considered an essential goal of economic policy. Moreover, the expansion of circulation credit is assumed to be the appropriate means to achieve this goal.” “Monetary Stabilization and Cyclical Policy”, incluído no livro On the Manipulation of Money and Credit, Freemarket Books, Nova York, 1978, pp. 135-136. Este trabalho é a traducão para inglês do importante livro publicado por Mises en 1928 com o título de Geldwertstabi- lisierung und Konjunkturpolitik, Gustav Fischer, Jena 1928.
[99] A primeira vez que tive a oportunidade de defender a tese de que a teoria da “tragédia dos bens comuns” devia ser aplicada ao negócio bancário foi na Reunión Regional de la Sociedad Mont-Pèlerin que teve lugar no Rio de Janeiro entre 5 e 8 de Setembro de 1993.Aí expliquei a aplicação do processo típico de “tragédia dos bens comuns” ao negócio bancário como algo evidente, uma vez que todo o processo de expansão tem origem, como sabemos, num privilégio contrário ao direito de propriedade, dado que cada banco toma para si todos os lucros decorrentes da expansão de crédito, fazendo recair os custos correspondentes de forma diluída pelo resto dos bancos e por todo o sistema econômico. Além disso, e como veremos no capítulo VIII, um mecanismo de compensação bancária inserido num sistema de sistema bancário livre pode impedir iniciativas individuais e isoladas de expansão, mas é inútil se todos, em maior ou menor medida, movidos pelo desejo de obtenção de lucro num processo típico de “tragédia dos bens comuns” se deixarem levar pelo “otimismo” na concessão de créditos. Ver, sobre este tema, “Introdución Crítica a la Edición Española” à obra de Vera C. Smith Fundamentos de la sistema bancário central y de la libertad sistema bancárioria, Unión Editorial/Ediciones Aosta, Madrid 1993, nota de rodapé 16, p. 38.
[100] Poderia aqui trazer-se à colação toda a análise da “Escola da Escolha Pública” para explicar a forma como os bancos, como poderoso grupo de interesses, se mobilizaram para manter o privilégio, dar-lhe fundamento jurídico e conseguir apoio governamental sempre que foi necessário. Por isso, não surpreende que autores como Rothbard concluam que “bankers are inherently inclined toward statism”. Murray N. Rothbard,WallStreet, Banks, and American Foreign Policy, Center for Libertarian Studies, Burlingame, Califórnia 1995, p. 1. É também importante referir o fato de toda a literatura que surgiu no âmbito da economia financeira acerca dos efeitos econômicos dos contratos de depósitos à vista e que padece do problema de supor um banco se centrar na análise matemática do equilíbrio neoclástico e não estudar os efeitos das crise financeiras sobre o lado real da economia. Ver, Douglas W. Diamond e Philip H. Dybvig, “Bank runs, deposit insurance, and liquidity”, Journal of Political Economy, n.º 91, pp. 401-419; e mais recentemente Itay Goldstein e Ady Pauzner, “Demand-Deposit Contrats and the Probability of Bank Runs”, The Journal of Finance, vol. LX, n.º 3, junho 2005, pp. 1293-1327, e toda a bibliografia aí citada.
[101] Assim, o banco central representa a prova histórica mais concreta do fracasso prático e teórico da tentativa de assegurar o levantamento de depósitos via reserva fracionária. O fato de se considerar necessário haver um prestamista de última instância para criar e proporcionar a liquidez necessária nos momentos de apuro demonstra que essa garantia é impossível e que a única maneira de evitar as inevitáveis consequências da instituição do sistema bancário com reserva fracionária é mantendo uma instituição que tenha controle absoluto sobre o sistema monetário que possa criar a liquidez necessária. Ou seja, em última instância, o privilégio da reserva fracionária também é responsável pelo grande intervencionismo do banco central no sistema financeiro, que se situa assim à margem dos processos do mercado livre submetido aos princípios tradicionais do Direito. Percebe, assim, perfeitamente a razão da nossa afirmação no início deste livro, em que se dizia que o principal desafio teórico e prático da economia para o século que acaba de começar, é, exatamente, acabar com a intervenção e coação sistemática do estado e com os privilégios do sistema financeiro, submetendo-o aos mesmos princípios tradicionais do Direito que se exigem sem qualquer exceção aos restantes agentes econômicos que operam num mercado livre.