O antissemitismo do marxismo 

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Em 31 de julho de 1817, um menino precoce de doze anos de idade, Benjamin Disraeli, foi batizado na igreja anglicana de St. Andrew, Holborn, pelo reverendíssimo senhor Thibleby. Isso foi a culminação de um litígio entre o pai do menino, Isaac D’Israeli e a sinagoga de Bevia Marks, quanto a um ponto importante de princípio judeu. No judaísmo, servir a comunidade não era uma opção ou um privilégio, mas uma obrigação. Em 1813, o próspero senhor D’Israeli fora eleito um guardião, ou parnas, em estrita conformidade com as leis da congregação de Bevia Marks. Ele ficou indignado. Sempre pagara o que devia e se considerava um judeu. Com efeito, como um escritor estudioso da Antiguidade, ele havia de fato escrito um ensaio chamado The Genius of Judaism. Mas, em contraste, sua obra principal era uma biografia em cinco volumes do rei Carlos, o Mártir. Tinha em baixa conta tanto o judaísmo quanto os judeus. Em seu livro, Curiosities of Literature (1791) qualificara o Talmude como “um sistema completo da bárbara instrução dos judeus”. Acreditava que os judeus não tinham “homens de gênio ou talento a perder. Posso contar, em meus dedos, todos os homens de gênio deles. Dez séculos não haviam produzido dez grandes homens.” Assim, escreveu ele à Câmara dos Anciãos que era um homem “de hábitos recolhidos”, que havia “sempre vivido fora da esfera de vossa observação”; e que uma pessoa como ele não podia, fosse qual fosse o motivo, executar “deveres permanentes sempre repugnantes a seus sentimentos.” Foi multado em 40 libras, mas deixou-se o assunto cair. Três anos mais tarde, retomou-se a questão e, desta feita, D’Israeli retirou-se completamente do judaísmo, e fez com que fossem batizados os seus filhos. A ruptura foi significativa para o filho, para a Inglaterra, e para muito mais, pois os judeus não eram legalmente admitidos no Parlamento até 1858, e, sem o seu batismo, Disraeli nunca teria se tornado primeiro-ministro.

Sete anos depois do batismo de Disraeli, em 26 de agosto de 1824, ocorreu um evento similar na cidade alemã de Trier, que desta vez dizia respeito ao menino de seis anos de idade Karl Heinrich Marx, como foi reapelidado. Essa apostasia familiar era mais grave. O avô de Marx foi rabi em Trier até a sua morte, em 1789; seu tio anda era o rabi. Sua mãe descendia de uma longa linha de rabis e eruditos famosos, que remontava a Meier Katzllenblogen, um reitor do colégio talmúdico em Pádua, no século dezesseis. Mas o pai de Marx, Heinrich, era um filho do Iluminismo, um estudante de Voltaire e Rousseau. Também era um advogado ambicioso. Trier ficava agora na Prússia, onde os judeus haviam sido emancipados pelo edito de 11 de março de 1812, que, em teoria, ainda estava em vigor, apesar da derrota de Napoleão. Na realidade, fugia-se a ele. Assim, os judeus podiam aprender o direito, mas não o podiam praticar. Assim, Heinrich Marx tornou-se cristão e, no devido tempo, ascendeu ao posto de decano dos advogados de Trier. Karl Marx, em vez de frequentar a yeshiva, frequentou a Escola Pública de Trier, então a cargo de um diretor mais tarde posto para fora por causa de seu liberalismo. Seu batismo mostrou-se ainda mais significativo para o mundo do que o batismo de Disraeli.

A conversão ao cristianismo foi uma maneira pela qual os judeus reagiram na idade de emancipação. Tradicionalmente, o batismo fora uma fuga da perseguição, e a emancipação deveria fazê-lo desnecessário. Na realidade, a partir do fim do século dezoito, tornou-se mais comum. Já não era um ato de tradição dramático, uma mudança de um mundo para outro. Com o declínio do papel que a religião representava em sociedade, a conversão podia ser menos um ato religioso do que um ato secular; podia ser inteiramente cética. Heinrich Heine (1797-1856), que se fez batizar um ano depois de Karl Marx, referia-se ao ato, com desprezo, como “um bilhete de entrada na sociedade europeia”. Durante o século dezenove, na Europa oriental-central, pelo menos 250.000 judeus compraram o bilhete. O historiador alemão Theodor Mommsen, que era um grande amigo dos judeus, assinalou que cristianismo não era tanto o nome de uma religião quanto “a única palavra que expressava o caráter da civilização internacional de hoje em dia na qual numerosos milhões em todo o globo de muitas nações se sentem unidas.”‘ Um homem, no século dezenove, sentia que tinha de tornar-se cristão, da mesma maneira que um homem, no século vinte, sente que tem de aprender inglês. Isso se aplicava a inúmeros indígenas que não eram brancos, assim como aos judeus.

Durante um tempo, Heine tornou-se mesmo, ou imaginou que se tornava, um discípulo de Saint Simon. Havia um lado do hippy, da “pessoa flor”, em Heine: “A parte das flores e dos rouxinóis alia-se estreitamente à revolução”, escreveu ele, citando a frase de Saint Simon: “O futuro é nosso”. Heine nunca se comprometeu com uma teoria específica do socialismo revolucionário. Mas, em Paris, ele se associou com muitos que queriam inventar uma tal forma. Com frequência, eram de origem judaica. Uma de tais pessoas era o jovem Karl Marx, que veio a Paris em 1843. Fora editor do jornal radical de Colônia, Rheinische Zeitung, que o socialista judeu Moisés Hess (1812-75) ajudara a fundar em 1843. Durou apenas quinze meses antes que o governo prussiano o matasse, e Marx juntou-se a Hesse no exílio parisiense. Mas os dois socialistas pouco tinham em comum. Hess era um verdadeiro judeu cujo radicalismo assumiu a forma de nacionalismo judeu, e, por fim, de sionismo. Marx, em contraste, não tinha educação judaica, e nunca buscou adquirir tal educação. Em Paris, ele e Heine tornaram-se amigos. Escreveram poesia juntos. Heine salvou a vida da filha de Marx, Jennie, quanto esta sofreu convulsões. Sobrevivem umas poucas cartas trocadas entre os dois, e deve ter havido mais. A brincadeira de Heine sobre a religião, um ‘ópio do espírito, foi a fonte da frase de Marx, o ópio do povo’. Mas a ideia de que Heine era o João Batista, e Marx o Cristo, embora estivesse em moda na erudição alemã na década de 1960, é absurda. Havia entre eles um enorme abismo temperamental. Segundo Arnold Ruge, Marx diria a Heine: “Abandona esses eternos lamentos por causa do amor e mostra aos poetas líricos como deve ser feito – com o açoite.” Mas era precisamente o açoite que Heine temia: “O futuro (socialista)” escreveu ele, “cheira a chicote, a sangue, a ausência de Deus, e a muitas surras”, “é apenas com espanto e horror que eu penso no momento em que esses escuros iconoclastas chegarão ao poder”. Ele repudiou “o meu amigo contumaz Marx, um daqueles que se têm na conta de deuses e que não acreditam em Deus”

O que os dois homens tinham mais em comum era a extraordinária capacidade de ódio, expresso em ataques venenosos não apenas contra inimigos, mas (talvez especialmente) contra amigos e benfeitores. Isso era parte do ódio que devotavam eles próprios e que partilhavam como judeus apóstatas. Marx o sentia numa medida ainda maior do que Heine. Tentou banir o judaísmo de sua vida. Enquanto Heine perturbou-se profundamente por causa das atrocidades de Damasco em 1840, Marx deliberadamente impediu-se de mostrar a menor preocupação com qualquer das injustiças infligidas aos judeus através de sua vida. Apesar da ignorância de Marx em matéria de judaísmo como tal, não pode haver dúvida quanto a suas características judaicas. Como Heine e todos os outros, sua ideia do progresso foi profundamente influenciada por Hegel, mas sua maneira de ver a história, como uma força positiva e dinâmica na sociedade humana, governada por leis férreas, uma Torá de ateu, é profundamente judaica. Seu milênio comunista arraiga-se fundamente no pensamento apocalítico e no messianismo judaicos. Sua ideia do domínio era a de um catedocrata. O controle da revolução ficaria nas mãos da inteligentsia de elite, que tinha estudado os textos, compreendido as leis da história. Eles formariam o que ele chamava “a gerência”, o diretório. O proletariado, “os homens sem substância”, eram apenas o meio, que devia obedecer. Como o escriba Esdras, ele os tinha na conta dos “ignorantes da lei”‘, a simples “gente que habitava a terra”

Também a metodologia de Marx era inteiramente rabínica. Todas as suas conclusões tinham origem apenas em livros. Nunca pôs o pé numa fábrica e rejeitou a oferta de Engels de levá-lo a uma. Como o gaon de Vilna, ele se fechou com os seus textos e resolveu os mistérios do universo em seu estúdio. Como o disse, “sou uma máquina condenada a devorar livros.” Apelidou sua obra de ‘científica’, mas não era mais científica do que a teologia. Seu temperamento era religioso e ele era incapaz de levar a efeito pesquisa objetiva, empírica. Ele simplesmente estudava material que lhe pudesse fornecer prova das conclusões que já havia alcançado em sua cabeça. E que eram tão dogmáticas quanto as conclusões de qualquer rabi ou cabalista. Seus métodos foram resumidos por Karl Jaspers:

“O estilo dos escritos de Marx não é o de um investigador… ele não cita exemplos ou aduz fatos que contrariam a sua própria teoria, mas apenas aqueles que sustentam confirmam aquilo que considera a verdade em última instância. Toda a abordagem é de uma apologia, e não de investigação, mas é a apologia de alguma coisa proclamada a verdade perfeita com a convicção não do cientista mas do crente.”

Despida de sua documentação espúria, a teoria de Marx de como a história, a classe e a produção funcionam, e se desenvolverão, não é essencialmente diversa da teoria luriânica cabalista da Idade Messiânica, em especial tal como emendada por Natan de Gaza, até um ponto em que pode compreender quaisquer fatos estranhos. Em resumo, não é de qualquer forma uma teoria científica, mas obra de inteligente superstição judaica.

Por fim, Marx foi o eterno estudante rabínico em sua atitude para com o dinheiro. Ele contava com que lhe proporcionassem meios financeiros para custear seus estudos, primeiro por parte de sua família, em seguida por Engels, o comerciante, como o testemunham as suas intermináveis cartas de intimidação schnorrer. Mas os estudos, como no caso de tantos rabis instruídos, nunca terminaram. Depois da publicação do primeiro volume do Capital, ele nunca pôde juntar o resto, deixando os seus papéis numa confusão total, da qual Engels extraiu os volumes dois e três. Assim, o grande comentário sobre a Lei da História terminou em confusão e dúvida. Que acontecia quando vinha o Messias, quando os expropriadores eram expropriados? Marx não o podia dizer; ele não o sabia. Mas não deixou por isso de profetizar a revolução do Messias: em 1849, em agosto de 1850, em 1851, em 1852, em 1859. Sua obra tardia, como a de Natan de Gaza, foi em grande medida uma explicação do não-advento.

Marx não foi apenas um pensador judeu, ele também foi um pensador antijudeu. Nisso reside o paradoxo, que tem uma influência tragicamente importante tanto na história do desenvolvimento marxista e de seu consumo na União Soviética quanto na progenitura dessa história. As raízes do antissemitismo de Marx eram fundas. Já vimos a parte que a atividade polemista antijudáica representou nas obras de escritores iluministas como Voltaire. Essa tradição foi carregada por duas correntes. Uma era a corrente idealista alemã, que passava por Goethe, Fichte, Hegel e Bauer, em cada um dos quais tornou-se mais pronunciado o elemento antissemita. A outra era a corrente ‘socialista’ francesa. Isso ligou os judeus à Revolução Industrial e ao casto aumento no comércio e no materialismo que marcou o início do século dezenove. Num livro publicado em 1808, François Fourier identificou o comércio como “a fonte do mal” e os judeus como “a encarnação do comércio” Pierre-Joseph Proudhon foi mais longe, acusando os judeus de “ter tornado a burguesia, alta e baixa, similar a eles em toda a Europa”. Os judeus eram “uma raça que não se associava, teimosa, infernal… a inimiga da humanidade. Deveríamos enviar essa raça de volta a Europa, ou exterminá-la. O seguidor de Fourier, Alphonse Toussenel, editou o jornal antissemítico Phalange e em 1845 produziu o primeiro ataque de escala ampla aos judeus como uma rede de conspiradores comerciais contra a humanidade, Les Juifs: rois de l’époque: histoire de la féodalité fiancière. Tornou-se isso a primeira fonte literária para a literatura antissemítica, em muitas línguas, pelas próximas quatro décadas.

Marx absorveu ambas as correntes, acrescentando às águas turvas as expressões da sua própria angústia. Em sua discussão dos judeus revolucionários, o historiador Robert Wistrich encara o ódio a si mesmos de alguns deles como um elemento que refletia a fúria dos membros muito inteligentes de uma minoria não privilegiada aos quais se negava em sociedade o reconhecimento e a posição a que seus talentos faziam jus. Os pensadores do Iluminismo, tanto franceses quanto alemães, argumentavam que os traços a que se fazia objeção no judaísmo tinham de ser apagados antes que o judeu pudesse tornar-se livre; os judeus que sofriam discriminação aceitaram isso, e dirigiram sua raiva com frequência mais contra o judeu não regenerado do que contra aqueles que os perseguiam a ambos. O ódio a eles próprios concentrava-se no judeu de gueto, que era, é claro, o arquétipo antissemita. Heine, que, no fundo, pouco sabia a respeito de como viviam os judeus em maioria, recorreu a todos os clichês-padrão antissemitas quando se encontrava nas garras do ódio a si mesmo. Marx, que conhecia ainda menos, tomou de empréstimo as injúrias diretamente do café de estudantes gentios. E ambos recorreram à caricatura do gueto para atacar judeus educados batizados como eles próprios, especialmente outros defensores do progresso. Um dos ataques mais malignos e quase incompreensíveis foi dirigido contra Ludwig Börne (1786-1837), nascido Lob Baruch, um judeu batizado e escritor radical cuja formação e cujas opiniões eram similares às dele próprio. Marx parece ter pegado esse hábito de Heine. Assim, embora ele próprio tentasse, sempre que possível, esconder as suas origens judaicas, constantemente atacava seus opositores judeus por essa mesma fraqueza. Por que, perguntava, José Moisés Levy, proprietário do Daily Telegraph de Londres e judeu batizado, procurava “ser contado entre os de raça anglo-saxônica… já que a Mãe Natureza escreveu seu pedigree em letras garrafais bem no meio de sua cara”.

O mais flagrante exercício de Marx em ódio a ele próprio, no entanto, dirigiu-se contra seu próximo socialista, Ferdinand Lassalle (1825-64), um judeu de Breslau que mudou o seu nome de Lasal em honra do revolucionário francês e passou a ser o fundador do socialismo alemão como um movimento de massa. Suas realizações práticas pela causa foram muito mais consideráveis do que as de Marx. A despeito disso ou por causa disso, ele se tornou objeto de injúrias extraordinárias na correspondência de Marx com Engels. Marx o apelidou Barão Itzig, o ‘Negro Judeu’. Ele o viu como um judeu polonês e (como o escreveu): “Os judeus da Polônia são a mais suja das raças.” O Engels escreveu a Marx, 7 de março de 1856: “Lassalle é um verdadeiro judeu da fronteira eslava e sempre quis explorar assuntos partidários com objetivos privados. E revoltante ver como está sempre tentando abrir caminho para o mundo aristocrático. Ele é um judeu gorduroso que se disfarça com a brilhantina e joias cintilantes.” Ao atacar a qualidade judaica de Lassalle, e zombar da sífilis deste último, Marx não teve escrúpulos em usar a mais velha das calúnias antissemiticas. Assim, ele escreveu a Engels em 10 de maio de 1861: “A respeito de Lassalle Lázaro. Lipsius em sua grande obra sobre o Egito provou que o êxodo judeu do Egito não era mais do que a história que Manetho narra da expulsão daquela gente leprosa do Egito. A testa dos leprosos estava um sacerdote egípcio, Moisés. Lázaro, o leproso, é, portanto, o arquétipo do judeu, e Lassalle é o típico leproso”. Ou ainda, em 30 de julho de 1862: “E agora perfeitamente claro para mim, como o indicam a forma de sua cabeça e a colocação de seu cabelo, que ele descende de negros que se juntaram à fuga de Moisés do Egito (a menos que sua mãe ou que sua avó do lado paterno tenha cruzado com um negro). Essa união do alemão e do judeu sobre uma base negra estava destinada a produzir um híbrido extraordinário.”

O antissemitismo pessoal de Marx, por desagradável que seja, podia não ter representado na obra de sua vida papel mais importante do que desempenhou na de Heine, não tivesse ele sido parte de um antissemitismo sistemático e teórico em que Marx, diferentemente de Heine, acreditou de modo profundo. Com efeito, é verdade dizer que a teoria de Marx sobre o comunismo foi o produto final de seu antissemitismo teórico. Spinoza foi o primeiro a mostrar como uma crítica ao judaísmo podia ser usada para alcançar conclusões radicais quanto ao mundo. Seu exemplo fora seguido pelos iluministas franceses, embora o tratamento que dispensaram ao judaísmo fosse muito mais hostil e racial, em tom. Entre os escritores radicais alemães, a ideia de que resolver o ‘problema judeu’ podia proporcionar uma chave para resolver-se o problema da humanidade foi muito discutida. Nas décadas de 1820 e de 1830, foi esse o caminho que o muito insultado Ludwig Börne havia tomado para o socialismo. Em 1843, Bruno Bauer, o líder antissemita da esquerda hegueliana, publicou um ensaio em que pedia que os judeus abandonassem completamente o judaísmo e transformassem sua reivindicação de direitos iguais numa campanha geral em prol da libertação humana tanto da tirania da religião quanto da tirania do estado.

Marx respondeu a obra de Bauer em dois ensaios publicados no Deutsch-Francöische Jahrbucher em 1844, no mesmo ano em que Disraeli publicou Tancred. Chama-se “A questão judaica” Marx aceitou de modo completo o contexto selvagemente antissemita do argumento de Bauer, que, disse, fora escrito “com audácia, percepção, humor e integridade, numa língua que é tão precisa, quanto vigorosa e significativa.” Citou, aprovando, a afirmação maliciosamente exaltada de Bauer de que “o judeu determina o destino de todo o império (austríaco) mediante seu poder monetário… e decide o destino da Europa.” Ele diferiu ao rejeitar a crença de Bauer de que a natureza antissocial do judeu era religiosa na origem e podia ser remediada apartando-se o judeu de sua religião. Na opinião de Marx, o mal era social e econômico. “Que nos seja permitido”, escreveu ele, “considerar o judeu real. Não o judeu do Shabat… mas o judeu quotidiano. Qual era, perguntou, a base profana do judaísmo? Necessidade prática, interesse próprio. Qual é o culto mundano do judeu? Regateio. Qual é o seu deus mundano? o dinheiro.” Os judeus haviam gradualmente comunicado essa religião prática a toda a sociedade.

“O dinheiro é o Deus ciumento de Israel, além do qual não pode existir qualquer Deus. O dinheiro rebaixa todos os deuses da humanidade e os transforma em mercadorias. O dinheiro é o autossuficiente valor de todas as coisas. Privou assim o mundo inteiro, tanto o mundo humano quanto a natureza, de seu valor próprio. O homem é a essência alienada do trabalho e da existência do homem: essa essência o domina e ele a adora. O deus dos judeus foi secularizado e tornou-se o Deus deste mundo.”

Os judeus, continuou Marx, estavam tornando os cristãos réplicas deles próprios, o que fazia com que aqueles que haviam sido os sólidos habitantes cristãos da Nova Inglaterra, por exemplo, fossem agora os escravos de Mamom. Usando o seu poder monetário, o judeu se emancipara e partira para escravizar a cristandade. O cristão corrompido pelo judeu “está convencido de que não tem outro destino aqui embaixo do que se tornar mais rico do que os seus vizinhos” e de que “o mundo é uma bolsa de valores”. Marx argumentou que a contradição entre a falta teórica de direitos políticos do judeu e o “poder político efetivo de que goza” é a contradição entre política e “o poder do dinheiro em geral”. O poder político supostamente se sobrepõe ao dinheiro; na verdade, “tornou-se o seu servo.” Resulta daí: “É de suas próprias entranhas que a sociedade civil engendra sem parar o judeu.

A solução de Marx, portanto, não é como a de Bauer, religiosa, mas econômica. O judeu-dinheiro tornara-se o “elemento antissocial universal do tempo presente”. Para “tornar o judeu impossível” era necessário abolir as precondições e a própria “possibilidade” da espécie de atividades monetárias por que era notório. Uma vez mudada a estrutura econômica, “a consciência religiosa do judeu se evaporaria como algum vapor insípido no ar real, vital da sociedade” Elimine-se a atitude judaica para com o dinheiro, e tanto o judeu e sua religião, quanto a versão corrupta do cristianismo que ele impôs ao mundo desapareceriam simplesmente: “Na análise final emancipação dos judeus é emancipação da humanidade do judaísmo”. Ou ainda: “Emancipando-se do regateio e do dinheiro, e assim do judaísmo real e prático, a nossa época emancipar-se-ia.”

Os dois ensaios de Marx sobre os judeus contêm, assim, em forma embriônica, a essência de sua teoria de regeneração humana: mediante mudanças econômicas, e especialmente abolindo-se a propriedade privada e a busca pessoal de dinheiro, podia-se transformar não apenas o relacionamento entre o judeu e a sociedade mas todos os relacionamentos humanos e a própria personalidade humana. Sua forma de antissemitismo tornou-se um ensaio do marxismo como tal. Mais tarde no século, August Bebel, o social-democrata alemão, cunharia a frase, muito usada por Lênin: “O Antissemitismo é o socialismo dos tolos.” Por trás desse epigrama revelador estava o argumento cru: nós todos sabemos que os homens-dinheiro judeus, que nunca sujam as mãos com o trabalho, exploram os trabalhadores e camponeses pobres. Mas só um tolo censura apenas os judeus. O homem maduro, o socialista, apreendeu que os judeus são apenas o sintoma da enfermidade, não são a própria enfermidade. A enfermidade é a religião do dinheiro, e sua a forma moderna é o capitalismo. Os trabalhadores e os camponeses são explorados não apenas pelos judeus, mas por toda a classe burguês-capitalista – e é a classe como um todo, não apenas o seu elemento judeu, que deve ser destruída.

Resulta daí que o socialismo militante que Marx adotou na parte tardia da década de 1840 foi uma forma prolongada e mudada de seu antissemitismo anterior. Sua teoria madura era uma superstição, e da espécie mais perigosa, crença numa conspiração do mal. Mas enquanto originalmente fundava-se na forma mais velha da teoria da conspiração, o antissemitismo, na parte tardia da década de 1840 e na década de 1850, isso não foi tanto abandonado quanto ampliado para compreender uma teoria de conspiração mundial de toda a classe burguesa. Marx reteve a superstição original de que a obtenção de dinheiro através do comércio e das finanças é essencialmente uma atividade parasítica e antissocial, mas ele agora a baseava não em raça e religião, mas em classe. A ampliação não melhora, é claro, a validade da teoria. Apenas a torna mais perigosa, se posta em prática, porque amplia o seu escopo e multiplica o número daqueles a serem tratados como conspiradores e, assim, como vítimas. Já não se preocupava Marx com feiticeiras judias específicas a serem caçadas, mas com feiticeiras humanas generalizadas. A teoria permaneceu irracional, mas adquiriu uma aparência mais sofisticada, que a tornava mais atraente para radicais educados. Invertendo a frase de Bebel: se o antissemitismo é o socialismo dos tolos, o socialismo tornou-se o antissemitismo dos intelectuais. Um intelectual como Lênin, que percebia claramente a irracionalidade do programa russo antissemítico, e ter-se-ia envergonhado de comandar um desses pogroms, aceitou não obstante inteiramente o seu espírito o quanto se ampliou o alvo de maneira a fazê-lo compreender toda a classe capitalista. Passou ele a levar a efeito pogroms numa escala infinitamente maior, matando centenas de milhares com fundamento não em culpa individual, mas no fato de pertencerem a um grupo condenado.

Quando Marx generalizou seu antissemitismo na teoria do capital, foi posto para trás seu interesse pelos judeus. Ocasionalmente, ele reaparece, como num palimpsesto, nas páginas do Capital. Assim: “O capitalista sabe que todas as mercadorias, por desprezíveis que pareçam, ou por mal que cheirem, são na fé e na realidade dinheiro, judeus interiormente circuncidados.” Era mais importante a retenção geral do tom emocional agressivo, tão característico do antissemitismo. O arquétipo judeu foi substituído pelo arquétipo capitalista, mas os traços caricaturais eram essencialmente os mesmos. Eis, por exemplo, a apresentação que Marx faz do próprio monstro capitalista:

“Apenas até onde o capitalista é capital personificado tem ele um valor histórico…Tendendo fanaticamente à exploração do valor, ele impele implacavelmente seres humanos à produção pela produção… Ele partilha com o avarento a paixão da riqueza pela riqueza. Mas aquilo que assume no avarento o aspecto de mania, é no capitalista o efeito do mecanismo social em que ele é apenas uma roda propulsora… suas ações são apenas uma função do capital que, mediante sua instrumentalidade, é dotado de vontade e consciência, o que faz com que seu próprio consumo privado deva ser encarado por ele como um roubo contra a cumulação.”

Será que uma personificação tão estranha da humanidade podia jamais ter existido? Mas então, quando o arquétipo antissemítico judeu de fato existira na vida real? O fato de que Marx ainda, em suas emoções, confundia o judeu e o capitalista é sugerido pela nota de rodapé que ele adicionou à passagem que acaba de ser citada. Referiu-se ao usurário, chamando-o “a forma fora de moda mas perenemente renovada do capitalista.” Marx sabia que nos espíritos da maioria de seu leitores o usurário era o judeu – como Toussenel o formulou, os termos de usurário e de judeu trocavam-se um pelo outro. A maior parte da nota de rodapé consistiu na polêmica violenta de Lutero contra o usurário já reproduzida na página. O fato de que Marx citou essa exortação brutal a matar de parte de um escritor antissemítico, numa obra que queria ser científica, sugere tanto a violência do próprio Marx quanto a emocionalidade irracional que a expressou, primeiro como antissemitismo e, em seguida, como teoria econômica.

No entanto, a combinação paradoxal em Marx da condição de judeu e de antissemita não impediu sua obras de atrair a crescente intelligentsia judaica. Bem ao contrário. Para muitos judeus emancipados, especialmente na Europa oriental, o Capital tornou-se uma nova espécie de Torá. Dado o inicial salto da fé em ambos os casos, o marxismo tinha a força lógica da halacá e sua ênfase em interpretação abstrata de acontecimentos era altamente conveniente para judeus inteligentes cujos ancestrais tinham dedicado a vida a estudar o Talmude ou que haviam, eles próprios, começado na yeshiva e depois haviam escapado. Através de todo o século, o número de judeus do tipo rabínico, de famílias eruditas ou de famílias comerciais, que deram as costas à religião, aumentou firmemente. No fim do século, a judiaria ortodoxa, apesar do vasto aumento na população judaica em quase toda parte, estava se tornando consciente da hemorragia. Antigas comunidades judaicas da Boêmia da Morávia, celebradas por sua erudição e líderes espirituais, verificaram que tinham de importar rabis de lugares mais atrasados.

 

 

[Este artigo foi extraído do livro A história dos judeus, de Paul Johnson]

3 COMENTÁRIOS

  1. Artigo espetacular! Muito bom mesmo. Na minha opinião deveria se chamar “o Marx como você nunca viu”. Se Marx fosse somente este artigo eu não seria anti-marxista. Esse Marx é praticamente um tradicionalista cristão. Agora eu consigo entender a rejeição dele ao capitalismo.

    “O dinheiro é o Deus ciumento de Israel, além do qual não pode existir qualquer Deus. O dinheiro rebaixa todos os deuses da humanidade e os transforma em mercadoria”

    Do ponto de vista católico o Uncle Marx está mais do que correto. Existe uma certa teologia católica que argumenta – eu acredito que corretamente, que o judaísmo após a chegada de Deus Jesus Cristo deixou de ser a religião dos profetas para se tornar uma seita do catolicismo. É o talmudismo e a cabala. A Torá é uma decoração. De modo que esse talmudismo leva ao naturalismoe ao protestantismo, que não são diferentes do ateísmo. Logo, é possível entender porque a Igreja condenou não somente o socialismo e o comunismo, mas com muita força igualmente o liberalismo.

    Capitalismo corporativista, ateísmo, protestantismo, liberalismo, sionismo são todas ideologias anti-católicas. Por trás de toda a sofisticação, é a Igreja que eles quere destruir. E também agora eu entendi a obsessão do camarada liberal randiano Milei pela sinagoga rebelde (curiosamente já vi uma foto dele segurando o “A história dos judeus, de Paul Johnson deste artigo).

    Artigo surpreendente. Obrigado por compartilhar camarada Fernando, bravo editor deste
    Instituto Rothbard Brasil. Já conhecia este livro mas nunca tive vontade de ler até o dia de hoje…

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