CAPÍTULO 14 – CONDIÇÕES MATERIAIS E OBJETIVOS IDEAIS
Será justo ou razoável que o número maior de vozes contrárias ao fim supremo do governo escravize um número menor, quedeseja ser livre? Se a força tiver de decidir, mais justo será sem dúvida, o número menor obrigar o maior a preservar sua liberdade (o que não seria fazer-lhe injustiça) do que o maior, para satisfazer sua baixeza, compelir o número menor acompartilhar com ele a escravidão. Aqueles que não procuram senão sua justa liberdade têm direito a conquistá-la, sempre que tiverem tal poder, por mais numerosas que sejam as vozes em contrário. – John Milton
Agrada muito à nossa geração pensar que dá menos importância a considerações de ordem econômica do que seus pais e avós. O “fim do homem econômico” promete tornar-se um dos mitos dominantes da nossa época. Antes de aceitar essa ideia ou de considerar tal mudança digna de louvor, convém investigar um pouco mais seu grau de veracidade. Quando examinamos as principais razões com que se procura justificar a reconstrução social, quase todas mostram ser de natureza econômica: já vimos que a “reinterpretação em termos econômicos” dos ideais políticos do passado, da liberdade, igualdade e segurança, é uma das principais reivindicações daqueles que ao mesmo tempo proclamam o fim do homem econômico. Tampouco se pode duvidar que, nas suas convicções e aspirações, os homens sejam hoje, mais do que nunca, influenciados por doutrinas econômicas; pela crença, cuidadosamente cultivada, no irracionalismo do nosso sistema econômico; por falácias como a da “abundância em potencial”; por pseudoteorias acerca de uma inevitável tendência ao monopólio; e pela impressão criada por ocorrências em torno das quais se faz grande publicidade, tais como a destruição das fontes de matérias-primas ou a supressão de inventos, ocorrências atribuídas ao sistema competitivo, embora sejam precisamente o que não pode acontecer em tal sistema, e só se tornou possível devido ao monopólio – na maior parte das vezes, o monopólio viabilizado pela ação do governo.1
Num sentido diferente, todavia, é indubitável que a nossa geração se mostra menos inclinada que as anteriores a atender a considerações econômicas. Vêmo-la, decididamente, muito pouco disposta a sacrificar qualquer das suas exigências aos chamados argumentos econômicos. Impaciente e intolerante com qualquer restrição as suas ambições imediatas, não quer curvar-se ante as necessidades econômicas.
O que distingue esta geração não é o desprezo do bem-estar material, nem mesmo um menor desejo de conquistá-lo, mas, ao contrário, a recusa a reconhecer quaisquer obstáculos, qualquer conflito com outras finalidades que possam impedir a realização dos seus desejos. “Economofobia” seria uma denominação mais apropriada a essa atitude do que o termo duplamente enganador “fim do homem econômico”, o qual sugere a mudança de um estado de coisas que nunca existiu, e a adoção de um rumo que não estamos seguindo. O homem passou a encarar com ódio e revolta as forças impessoais a que se submetia no passado, conquanto frustrassem muitas vezes os seus esforços individuais.
Essa revolta exemplifica um fenômeno muito mais geral, uma nova relutância em submeter-se a qualquer regra ou necessidade cujo fundamento lógico não seja compreendido. Tal fenômeno se faz sentir em diversos setores da vida, em particular no da moral, e muitas vezes trata-se de uma atitude louvável. Mas existem campos em que esse anseio de inteligibilidade não pode ser de todo satisfeito, e onde ao mesmo tempo a recusa a submeter-se a tudo que não podemos compreender leva ao colapso da civilização. É natural que, ao tornar-se mais complexo o mundo em que vivemos, cresça a nossa resistência às forças que, embora não as compreendamos, com frequência interferem em nossos planos e esperanças. Todavia, é justamente nessas condições que se torna cada vez menos possível a plena compreensão dessas forças.
Uma civilização complexa como a nossa baseia-se necessariamente no ajustamento do indivíduo a mudanças cuja causa e natureza ele não pode compreender. Por que aufere maior ou menor renda? Por que tem de mudar de ocupação? Por que certas coisas de que precisa são mais difíceis de conseguir que outras? A resposta a estas questões dependerá sempre de um número tão grande de circunstâncias que nenhum cérebro será capaz de apreendê-las; ou, o que é ainda pior, os prejudicados as atribuirão a uma causa óbvia, imediata ou evitável, enquanto as inter-relações mais complexas que determinam a mudança continuarão a ser um mistério para eles.
Mesmo numa sociedade totalmente planejada, se o diretor quisesse explicar a um empregado por que o transferiu para função diferente ou alterou-lhe o salário, não poderia fazê-lo de maneira adequada sem explicar e justificar todo o plano. Isso significa que tal esclarecimento só poderia ser dado a um pequeno número de pessoas.
Foi a submissão às forças impessoais do mercado que possibilitou o progresso de uma civilização que, sem isso, não se teria desenvolvido. É, portanto submetendo-nos que ajudamos dia a dia a construir algo cuja magnitude supera a nossa compreensão. Não importa que os homens no passado se tenham submetido em virtude de crenças que alguns hoje consideram supersticiosas: o espírito de humildade religiosa ou um exagerado respeito pelos toscos ensinamentos dos primeiros economistas. O ponto crucial dessa questão é que é muito mais difícil compreender racionalmente a necessidade de submeter-se a forças cuja atuação não podemos entender em detalhe, do que fazê-lo animados da humilde veneração inspirada pela religião, ou mesmo pelo respeito às doutrinas econômicas. Se quiséssemos apenas preservar a nossa atual e complexa civilização sem que ninguém fosse obrigado a fazer coisas cuja necessidade não compreende, seria preciso que todos possuíssem inteligência infinitamente maior do que hoje possuem.
A recusa a ceder a forças que não podemos compreender nem reconhecer como decisões conscientes de um ser inteligente é fruto de um racionalismo incompleto e portanto errôneo. Incompleto, porque não percebe que a combinação de uma enorme variedade de esforços individuais numa sociedade complexa deve levar em conta fatos que nenhum indivíduo pode apreender de todo. Também não percebe que, para essa sociedade complexa não ser destruída, a única alternativa à submissão às forças impessoais e aparentemente irracionais do mercado é a submissão ao poder também incontrolável e portanto arbitrário de outros homens. Na ânsia de escapar às irritantes restrições que hoje experimenta, o homem não se dá conta de que as novas restrições autoritárias que lhe deverão ser deliberadamente impostas no lugar daquelas serão ainda mais penosas.
Aqueles que argumentam que adquirimos um assombroso domínio sobre as forças da natureza, mas estamos lamentavelmente atrasados na utilização eficiente das possibilidades de colaboração social, têm perfeita razão quanto a esse ponto.
Enganam-se, porém, quando levam mais longe a comparação, afirmando que devemos aprender a dominar as forças da sociedade da mesma forma que aprendemos a dominar as forças da natureza. Esse é o caminho não só do totalitarismo mas também da destruição da nossa civilização e um meio certo de obstar o progresso futuro. Aqueles que reivindicam tal domínio das forças sociais mostram não terem ainda compreendido até que ponto a simples preservação do que até agora conquistamos depende da coordenação dos esforços individuais por forças impessoais.
Voltaremos agora por alguns momentos ao ponto crucial: a liberdade individual é inconciliável com a supremacia de um objetivo único ao qual a sociedade inteira tenha de ser subordinada de uma forma completa e permanente. A única exceção à regra de que uma sociedade livre não deve ser submetida a uma finalidade exclusiva é constituída pela guerra e por outras calamidades temporárias, ocasiões em que a subordinação de quase tudo à necessidade imediata e premente é o preço que temos de pagar pela preservação, a longo prazo, da nossa liberdade. Isso explica também por que são tão errôneas muitas ideias hoje em moda, segundo as quais devemos aplicar aos fins da paz os processos que aprendemos a empregar para fins de guerra. É sensato sacrificar temporariamente a liberdade de modo a garanti-la para o futuro; não se pode dizer, porém, o mesmo de um sistema proposto como solução permanente.
A regra de não permitir, na paz, a primazia absoluta de um objetivo sobre todos os demais deve ser aplicada mesmo ao objetivo que hoje todos concordam ser prioritário: a supressão do desemprego. Não há dúvida alguma de que esse deve ser o alvo dos nossos mais ingentes esforços; ainda assim, não se segue daí que tal finalidade deva absorver-nos com exclusão de tudo mais e que, segundo a leviana expressão corrente, deva ser realizada “a qualquer preço”. É nesse campo, com efeito, que o fascínio de expressões vagas mas populares como “pleno emprego” pode conduzir à adoção de medidas extremamente insensatas, em que a frase categórica e irresponsável do idealista radical, “isso deve ser feito a todo custo”, pode produzir os maiores danos.
É importantíssimo termos ampla visão da tarefa que seremos obrigados a enfrentar nesse campo depois da guerra, e que percebamos com clareza aquilo que podemos ter esperança de realizar. Um dos aspectos dominantes da situação imediata de após-guerra será o de que as necessidades específicas geradas pelo atual conflito canalizaram centenas de milhares de homens e mulheres para serviços especializados, os quais, durante o conflito, lhes permitiram ganhar salários relativamente elevados.
Em muitos casos, não haverá possibilidade de empregar o mesmo número de pessoas nessas ocupações. Será necessário transferir com urgência grande parte dessas pessoas para outros serviços, e muitas descobrirão que as ocupações disponíveis serão menos bem pagas do que as que exerciam durante a guerra. O próprio retreinamento, que por certo deve ser oferecido em larga escala, não solucionará de todo o problema. Haverá ainda muita gente que, se for paga de acordo com o novo valor de seus serviços para a sociedade, terá, em qualquer sistema, de conformar-se com uma queda da sua posição econômica em relação aos demais.
Se, pois, os sindicatos resistirem com êxito a uma redução dos salários de tais categorias, restarão apenas duas alternativas: ou usar a coação (isto é, escolher certos indivíduos e transferi-los compulsoriamente a outras funções menos bem remuneradas), ou então deixar que aqueles que já não podem ser empregados com os salários relativamente altos percebidos durante a guerra permaneçam desempregados até se disporem a aceitar trabalho menos bem pago. É um problema que surgiria tanto numa sociedade socialista como em qualquer outra; e, com toda probabilidade, a grande maioria dos trabalhadores não se mostraria ali mais inclinada a garantir os mesmos níveis salariais àqueles que ocuparam empregos bem remunerados em função das necessidades especiais da guerra. Numa situação como essa, uma sociedade socialista não deixaria de usar a coação. O importante para nós é que, se não quisermos a nenhum preço permitir o desemprego, ou usar a coação, seremos arrastados a toda sorte de medidas precipitadas, nenhuma das quais poderá trazer alívio duradouro, todas constituindo sérios obstáculos ao uso mais produtivo dos nossos recursos. Deve-se observar, sobretudo, que a política monetária não pode corrigir essa dificuldade, a não ser por meio de uma inflação geral de proporções consideráveis, suficiente para elevar todos os outros salários e preços em relação aos que não podem ser diminuídos. Mesmo isso, porém, só produziria o efeito desejado porque implicaria uma redução disfarçada de salários reais, que não se poderia realizar às claras. Entretanto, a elevação de todos os outros salários e rendimentos num grau suficiente para ajustar a posição de determinada categoria envolveria uma expansão inflacionária em tão grande escala que as perturbações, dificuldades e injustiças seriam muito piores do que as que se pretendesse sanar.
Esse problema, que surgirá de forma particularmente aguda após a guerra, jamais será solucionado enquanto o sistema econômico tiver de adaptar-se a contínuas mudanças. A expansão monetária poderá viabilizar um nível máximo possível de emprego a curto prazo, nas posições em que as pessoas se encontram. Mas esse máximo só pode ser mantido pela expansão inflacionária progressiva, o que tem por efeito retardar a redistribuição da mão-de-obra entre os setores da economia, indispensável dada a mudança das circunstâncias – redistribuição que, enquanto os trabalhadores tiverem a liberdade de escolher sua ocupação, só se realizará com certa demora, causando, nesse ínterim, um certo nível de desemprego. Visar sempre ao máximo de emprego possível por meios monetários é uma política que sempre trará efeitos contraproducentes. Ela tende a baixar o nível de produtividade do trabalho, aumentando assim constantemente a parcela da população trabalhadora que só pode ser mantida em seus empregos, com os atuais salários, por meios superficiais.
Não há dúvida de que, depois da guerra, o bom senso na direção dos nossos assuntos econômicos será ainda mais importante do que antes, e de que o destino da nossa civilização dependerá sobretudo da maneira como resolvermos os problemas econômicos que teremos de enfrentar. A princípio, haverá um estado de pobreza – de grande pobreza. Igualar e ultrapassar os padrões anteriores será mais difícil para a Grã-Bretanha do que para muitos outros países. Se agirmos com prudência, é quase certo que, pelo trabalho árduo, dedicando uma parte considerável dos nossos esforços à reparação e renovação da maquinaria e da organização industrial, conseguiremos dentro de alguns anos voltar ao nível que havíamos alcançado e mesmo superá-lo.
Mas isso pressupõe que nos contentemos em consumir apenas o indispensável, para que a tarefa de reconstrução não seja prejudicada; que esperanças exageradas não criem reivindicações irresistíveis de um quinhão maior; e que consideremos mais importante empregar nossos recursos da melhor maneira possível e para as finalidades que mais contribuem para o bem-estar, do que permitir que sejam consumidos sem nenhum critério2. Igualmente importante é, talvez, não prejudicar classes numerosas a ponto de transformá-las em inimigos ferrenhos da ordem política reinante com tentativas imediatistas de sanar a pobreza pela redistribuição e não pelo aumento da nossa renda. Nunca se deveria esquecer que o fator decisivo do advento do totalitarismo no continente, fator que ainda inexiste neste país, foi o surgimento de uma classe média despojada de seus bens.
Nossas esperanças de evitar o destino que nos ameaça devem, com efeito, repousar em grande parte na perspectiva da retomada de um progresso econômico acelerado que nos faça ascender continuamente por mais baixo que tenhamos de começar. E a principal condição de tal progresso é que estejamos sempre prontos a adaptar-nos com rapidez a um mundo bastante modificado, sem permitir que nenhuma consideração pelo padrão habitual deste ou daquele grupo impeça tal adaptação.
Devemos aprender mais uma vez a orientar os nossos recursos de modo a que nos tornemos todos mais ricos. Os ajustamentos necessários para igualarmos e ultrapassarmos os padrões anteriores serão maiores do que todos os outros que foi preciso realizar até hoje; e só conseguiremos vencer um período difícil como homens livres e capazes de escolher seu modo de vida se cada um de nós estiver pronto a obedecer às injunções desse ajustamento. Que um mínimo uniforme seja garantido a todos; mas admitamos ao mesmo tempo que com essa garantia de um mínimo-base devem extinguir-se todas as reivindicações a uma segurança privilegiada por parte de certas classes e desaparecer todos os pretextos para se permitir que determinados grupos, no intuito de manterem um padrão especial e exclusivamente seu, impeça os novos concorrentes de participar na sua relativa prosperidade.
Pode parecer muito nobre dizer: “deixemos de lado a economia, vamos construir um mundo decente”. Na realidade, porém, essa é uma atitude de todo irresponsável. Com a situação mundial que conhecemos, e existindo a convicção generalizada de que as condições materiais devem ser melhoradas em certos pontos, a única possibilidade de construirmos um mundo decente está em podermos continuar a melhorar o nível geral de riqueza. Pois a moderna democracia entrará em colapso se houver a necessidade de uma reduçãosubstancial dos padrões de vida em tempo de paz, ou mesmo uma estagnação prolongada das condições econômicas.
Muitos admitem que as atuais tendências políticas constituem séria ameaça para as nossas perspectivas econômicas e que seus efeitos econômicos põem em perigo valores muito mais elevados – e, mesmo assim, continuam acreditando que estamos fazendo sacrifícios materiais para atingir objetivos ideais. É extremamente duvidoso, porém, que cinquenta anos de avanço rumo ao coletivismo tenham elevado os nossos padrões morais; ao contrário, talvez a mudança se tenha verificado no sentido oposto.
Embora nos orgulhemos de possuir uma consciência social mais desenvolvida e sensível, nossa conduta individual provavelmente não justifica esse orgulho. No que se refere a criticar e a indignar-se ante as injustiças da ordem social existente, a atual geração talvez supere quase todas as que a precederam. Mas o efeito do movimento coletivista sobre nossos padrões positivos, no campo da moral, na conduta individual e na seriedade com que defendemos princípios éticos contra as conveniências e exigências do mecanismo social – isso é assunto bem diverso.
As questões nesse campo tornaram-se tão confusas que é necessário voltar aos pontos fundamentais. Nossa geração corre perigo de esquecer não só que a moral é por essência um fenômeno da conduta pessoal, mas também que ela só pode existir na esfera em que o indivíduo tem liberdade de decisão e é solicitado a sacrificar voluntariamente as vantagens pessoais à observância de uma regra moral. Fora da esfera da responsabilidade pessoal não há bondade nem maldade, nem possibilidade de mérito moral, nem oportunidades de pôr à prova as próprias convicções pelo sacrifício dos desejos individuais ao que se considera justo. Só quando somos responsáveis pelos nossos interesses e livres para sacrificá-los é que a nossa decisão tem valor moral. Nem temos o direito de ser altruístas à custa de terceiros, nem há mérito algum em o sermos quando não existe outra alternativa. Os membros de uma sociedade que são compelidos a fazer sempre o que é justo não têm direito ao louvor.
Como disse Milton: “se toda ação boa ou má de um homem adulto dependesse de permissão, prescrição ou coerção, o que seria a virtude senão uma palavra, que louvor caberia à boa ação, que honra haveria em ser sensato, justo ou continente?”.
A liberdade de ordenar nossa conduta numa esfera em que as circunstâncias materiais nos obrigam a escolher, e a responsabilidade pela organização da nossa existência de acordo com a nossa consciência, são a única atmosfera em que o senso moral se pode desenvolver e os valores morais serem a cada dia recriados no livre arbítrio
do indivíduo. A responsabilidade, não perante um superior mas perante a própria consciência, a compreensão de um dever não imposto pela compulsão, a necessidade de resolver qual das coisas a que damos valor devemos sacrificar a outras e de aceitar as consequências da nossa decisão – eis a essência de toda regra moral que mereça tal nome.
O fato de que na esfera da conduta individual os efeitos do coletivismo têm sido quase inteiramente destrutivos é ao mesmo tempo inevitável e inegável. Um movimento cuja maior promessa é isentar o indivíduo da responsabilidade3 não pode deixar de ser antimoral nos seus efeitos, por mais elevados que sejam os ideais que o geraram. Pode haver dúvida de que o sentimento da obrigação pessoal de eliminar injustiças, sempre que o permitem nossas forças individuais, foi enfraquecido ao invés de se fortalecer? E de que tanto a disposição para assumir responsabilidades, como a consciência de que é nosso dever individual saber escolher, foram bastante debilitadas? Há uma total diferença entre exigir que a autoridade estabeleça uma situação satisfatória, ou mesmo entre estar pronto a submeter-se contanto que todos façam o mesmo, e dispor-se a fazer o que pessoalmente julgamos justo, com sacrifício dos nossos próprios desejos e enfrentando talvez uma opinião pública hostil. Há claros indícios de que nos tornamos, na realidade, mais tolerantes para com determinados abusos e muito mais indiferentes perante as desigualdades em casos individuais, depois que voltamos nossa atenção para um sistema inteiramente novo, em que o estado resolverá todas as questões. É bem possível mesmo, como se tem sugerido, que a paixão pela ação coletiva seja um meio pelo qual, coletivamente e sem remorso, passamos a satisfazer o egoísmo que, como indivíduos, tínhamos aprendido, em parte, a reprimir.
É verdade que as virtudes menos estimadas e praticadas hoje em dia – a independência, a confiança em si mesmo e a disposição para assumir riscos, para defender as convicções pessoais contra a maioria e para cooperar voluntariamente com os nossos semelhantes – são as principais virtudes em que repousa uma sociedade individualista. O coletivismo não tem como substituí-las, e na medida em que as destruiu deixou um vácuo que não é preenchido senão pela exigência de submissão e pela coerção do indivíduo para que faça o que a coletividade declara justo. A eleição periódica de representantes, a que tende a reduzir-se cada vez mais a escolha moral do indivíduo, não é uma ocasião em que os seus valores sejam postos à prova ou em que ele possa reafirmá-los e demonstrá-los constantemente, atestando a sinceridade de suas convicções pelo sacrifício dos valores que considera inferiores aos que reputa mais elevados.
Como as regras de conduta dos indivíduos são o manancial de onde provêm os padrões morais que a ação política possa ter, seria na verdade surpreendente que o relaxamento dos padrões da conduta individual fosse acompanhado de uma elevação dos padrões de ação social. Que houve grandes mudanças, é evidente. Toda geração, como se sabe, privilegia alguns valores mais e outros menos do que as gerações anteriores. Mas quais são os objetivos que ocupam o segundo plano agora, quais os valores que, segundo nos advertem, terão de desaparecer se entrarem em conflito com outros? Que valores são menos destacados no panorama do futuro a nós oferecido pelos autores e oradores populares, em relação aos ideais e aos sonhos dos nossos pais?
Evidentemente, não é o conforto material, nem a elevação do nosso padrão de vida ou a garantia de certa posição na sociedade, que ocupam o degrau inferior. Existe algum escritor ou orador popular que ouse sugerir às massas que talvez tenham de sacrificar suas aspirações materiais em prol de um objetivo ideal? O que tem ocorrido não é, de fato, exatamente o oposto? As coisas que com frequência cada vez maior somos induzidos a considerar “ilusões do século XIX” não são todas elas valores morais – a liberdade e a independência, a verdade e a honestidade intelectual, a paz e a democracia, e o respeito pelo indivíduo como ser humano e não como simples membro de um grupo organizado?
Quais os princípios hoje sacrossantos que nenhum reformador ousa atacar, porque são considerados fronteiras imutáveis a serem respeitadas em todo plano para o futuro? Não mais, por certo, a liberdade do indivíduo ou a liberdade de movimento, e raramente a liberdade de expressão – mas os privilégios deste ou daquele grupo, seu “direito” de impedir que outros provejam às necessidades de seus semelhantes. A discriminação contra membros e não membros de grupos fechados, para não falar nas pessoas de nacionalidades diferentes, é aceita cada vez mais como natural. As injustiças infligidas a indivíduos pelos governos no interesse de um ou outro grupo são olhadas com uma indiferença que beira a insensibilidade. As mais grosseiras violações dos direitos elementares do indivíduo, tais como a remoção compulsória de populações inteiras, são aceitas com frequência cada vez maior até por supostos liberais.
Tudo isso indica por certo que o nosso senso moral se embotou, ao invés de tornar-se mais refinado. Quando nos dizem – o que acontece cada vez mais amiúde – que não é possível fazer omeletes sem quebrar ovos, notamos que os ovos quebrados nesse processo são sempre aqueles que, uma ou duas gerações atrás, eram considerados as bases essenciais da vida civilizada. E quantas atrocidades cometidas por poderes com cujos princípios nossos pretensos “liberais” simpatizam não foram por estes desculpadas de bom grado?
Nessa mudança de valores morais causada pelo avanço do coletivismo há um aspecto que no presente momento oferece motivo especial à reflexão: as virtudes cada vez menos apreciadas, e em consequência cada vez mais raras, são justamente aquelas de que com razão se orgulhava o povo britânico. As virtudes nas quais em geral se admitia que esse povo superava os demais, com exceção de algumas nações pequenas, como os suíços e os holandeses, eram a independência e a fé em si mesmo, a iniciativa individual e a responsabilidade pela solução de problemas em nível local, a justificada confiança na atividade voluntária, a não-interferência nos assuntos dos vizinhos e a tolerância para com os excêntricos e os originais, o respeito pelo costume e pela tradição e uma saudável desconfiança do poder e da autoridade.
A fortaleza de espírito, o caráter e as realizações do povo britânico são, em grande parte, fruto do cultivo do comportamento espontâneo. Entretanto, quase todas as tradições e instituições em que o gênio moral britânico encontrou sua expressão mais característica, e que por sua vez moldaram o caráter nacional e todo o clima moral da Inglaterra, são aquelas que o avanço do coletivismo e as tendências à centralização que lhe são inerentes estão progressivamente destruindo.
Uma formação adquirida no exterior ajuda por vezes a perceber com mais clareza a que circunstâncias se devem as excelências peculiares da atmosfera moral de uma nação. E se a alguém que, apesar das disposições legais, permanecerá sempre um estrangeiro, for permitido manifestar-se sobre o assunto, direi que um dos espetáculos mais desalentadores do nosso tempo é ver até que ponto algumas das coisas mais preciosas que a Inglaterra deu ao mundo são agora desdenhadas na própria Inglaterra.
Mal sabem os ingleses o quanto diferem da maioria dos outros povos pelo fato de que todos, não importa o partido a que pertençam, defendem em maior ou menor escala as ideias que, na sua forma mais acentuada, são conhecidas como liberalismo. Em comparação com a maioria dos outros povos, ainda há vinte anos quase todos os ingleses eram liberais, por muito que discordassem do liberalismo partidário. Hoje, o inglês conservador ou socialista, não menos que o liberal, ao viajar pelo estrangeiro poderá verificar que as ideias e as obras de Carlyle ou Disraeli, dos Webb ou de H. G. Wells são sobremaneira populares em círculos com os quais ele pouco tem em comum – entre nazistas e outros totalitários; por outro lado, se deparar com uma ilha intelectual onde sobrevive a tradição de Macaulay e Gladstone, de James Stuart Mill ou de John Morley, encontrará espíritos que “falam a sua linguagem” – por muito que ele se afaste dos ideais que esses homens defenderam.
Em parte alguma é mais patente a perda da fé nos valores específicos da civilização inglesa, e em parte alguma esse fato teve efeito mais paralisante sobre a busca do nosso grande objetivo imediato, do que na tola ineficiência de quase toda a propaganda britânica. O primeiro requisito para o êxito da propaganda dirigida a estrangeiros é a altiva admissão dos valores característicos e dos traços distintivos pelos quais o país que a promove é conhecido pelos outros povos. A causa principal da ineficácia da propaganda inglesa é que os seus dirigentes parecem ter perdido a fé nos valores peculiares à civilização inglesa ou ignorar por completo os pontos em que ela difere das demais. De fato, a intelligentsia esquerdista se prostrou por tanto tempo diante dos deuses estrangeiros que parece haver-se tornado incapaz de perceber o que há de bom nas instituições e tradições tipicamente inglesas. Esses socialistas não admitem, é claro, que os valores morais de que a maior parte deles se orgulha são na sua maioria produto das instituições que se propõem a destruir. Infelizmente, essa atitude não está restrita aos socialistas confessos. Embora se deva esperar que isso não se aplique aos ingleses cultos, menos participantes porém mais numerosos, a julgar pelas ideias que encontram expressão na propaganda e nos debates políticos correntes, os ingleses que não só “falam a linguagem que Shakespeare falava” mas também “defendem a fé e a moral que Milton defendia” parecem ter quase desaparecido.4
Acreditar, no entanto, que a propaganda nascida dessa atitude possa ter o efeito desejado sobre os nossos inimigos, e em particular sobre os alemães, é um erro fatal. Talvez os alemães não conheçam a Inglaterra muito bem, mas a conhecem o suficiente para saber quais são os valores tradicionais característicos da vida britânica, e quais os elementos que durante as duas ou três últimas gerações contribuíram para separar cada vez mais o espírito desses dois países. Se quisermos convencê-los, não só da nossa sinceridade, mas também de que temos a oferecer uma alternativa real para o caminho por eles escolhido, não será fazendo concessões ao seu modo de pensar que o conseguiremos. Não os enganaremos com uma versão expurgada tomada de empréstimo às ideias de seus pais – seja o socialismo de estado, a Realpolitik, o planejamento “científico” ou o corporativismo. Não os persuadiremos seguindo-os até metade do caminho que conduz ao totalitarismo. Se os próprios ingleses abandonarem o ideal supremo da liberdade e da felicidade individual, se admitirem implicitamente que a sua civilização não merece ser preservada e que não conhecem outra alternativa senão seguir o caminho trilhado pelos alemães, é que não têm mesmo nada a oferecer.
Para os alemães, tudo isso não passa de simples confissões tardias de que os ingleses sempre estiveram errados e de que são eles, os alemães, que estão mostrando o caminho de um mundo novo e melhor, por mais alarmante que seja o período de transição. Os alemães não ignoram que o que eles ainda consideram tradições inglesas são concepções de vida fundamentalmente opostas aos seus novos ideais e irreconciliáveis com estes. Poderiam convencer-se de ter escolhido o caminho errado – mas nada os persuadirá jamais de que os ingleses sejam melhores guias no caminho traçado pela Alemanha.
Além disso, esse tipo de propaganda será o último a seduzir aqueles alemães com cujo auxílio devemos contar, em última análise, para reconstruir a Europa, por serem os seus valores mais próximos aos nossos. Pois a experiência os fez mais prudentes: aprenderam que nem as boas intenções nem a eficiência da organização podem preservar a decência num sistema em que a liberdade e a responsabilidade pessoal são destruídas. O que querem acima de tudo os alemães e os italianos que aprenderam a sua lição é defesa contra o estado totalitário – não planos grandiosos de organização em escala colossal, mas a possibilidade de reconstruírem, em paz e liberdade, o seu pequeno mundo individual. Se podemos contar com o apoio de alguns dos cidadãos dos países inimigos, não é porque eles acreditam que ser mandado por ingleses seja preferível a sê-lo por prussianos, e sim porque creem que num mundo em que os ideais britânicos saírem vitoriosos serão menos manipulados pelas autoridades, podendo cuidar em paz de suas vidas.
Se quisermos ser bem-sucedidos na guerra de ideologias e conquistar os indivíduos honestos dos países inimigos, devemos em primeiro lugar recuperar a fé nos valores tradicionais que este país representava no passado e possuir a coragem moral de defender com tenacidade os ideais atacados pelos nossos inimigos. Não conquistaremos adesões com desculpas envergonhadas e com asserções de que nós estamos regenerando rapidamente, nem com explicações de que estamos procurando conciliar os valores tradicionais ingleses e as novas ideias totalitárias. O que importa não são os últimos melhoramentos que possamos ter introduzido nas nossas instituições sociais, pois isso representa muito pouco em comparação com as diferenças básicas entre dois sistemas de vida opostos. Importa a nossa fé inabalável nas tradições que fizeram deste país uma nação de homens livres e retos, tolerantes e independentes.
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NOTAS AO CAPÍTULO 14
1 – A destruição ocasional de trigo, café etc, usada com frequência como argumento contra a concorrência, constitui um bom exemplo da desonestidade intelectual desse tipo de alegação, pois um raciocínio simples mostrará que, num mercado competitivo, o possuidor de tais estoques jamais lucraria em destruí-los. A alegada supressão de patentes úteis é um caso mais complicado e não pode ser debatido de maneira conveniente numa pequena nota. Mas as condições em que seria proveitoso reter uma patente que deveria ser usada no interesse social são tão excepcionais que é extremamente duvidoso que isso tenha ocorrido em qualquer caso importante.
2 – Cabe, talvez, acentuar que, por mais que desejemos um rápido regresso à economia livre, isso não pode significar a eliminação instantânea de todas as restrições do período de guerra. Nada desacreditaria mais o sistema de livre iniciativa do que o agudo, embora provavelmente efêmero, período de instabilidade e desarticulação que tal tentativa produziria. O que se impõe decidir é a que tipo de sistema devemos visar no decorrer do processo de transição, e não se as medidas adotadas durante a guerra devem ser transformadas em um sistema mais permanente, mediante uma política cuidadosamente elaborada de afrouxamento gradual de controles, a qual talvez tenha de estender-se por vários anos.
3 – Isso é expresso com clareza cada vez maior à medida que o socialismo se aproxima do totalitarismo, e na Inglaterra se encontra formulado de maneira explicita no programa da mais recente e mais totalitária forma de socialismo inglês – o movimento Common Wealth de sir Richard Acland. A principal característica da nova ordem por ele prometida é que a comunidade “dirá ao indivíduo “Você não precisa preocupar-se com ganhar a vida”. Em consequência, como é natural, “cabe à comunidade em conjunto decidir se a força de trabalho de um homem será ou não aplicada aos nossos recursos e como, quando e de que maneira ele trabalhará”. A comunidade terá de “manter campos, em condições toleráveis, para os que não querem trabalhar”. Não é de admirar que o autor tenha descoberto que Hitler “deparou com uma pequena parte, ou talvez seja melhor dizer com um aspecto particular, daquilo que finalmente virá a ser exigido da humanidade”. (Acland, sirRichard, The Forward March, 1941, pp. 127, 126, 135 e 32)
4 – Embora o assunto deste capítulo já tenha suscitado algumas referências a Milton, é difícil resistir à tentação de acrescentar aqui mais uma passagem, muito conhecida aliás, embora, ao que parece, hoje em dia ninguém, a não ser um estrangeiro, a ouse citar: “que a Inglaterra não esqueça que foi a primeira a ensinar as outras nações a viver”. É talvez significativo que a nossa geração tenha conhecido um sem-número de detratores de Milton, tanto ingleses quanto americanos – e que o primeiro deles, Ezra Pound, tenha transmitido propaganda, nesta guerra, pela rádio italiana.