“Naqueles dias saiu um decreto da parte de César Augusto,” diz São Lucas sobre o motivo de Maria e José terem ido para Belém, “ordenando o recenseamento de todo o mundo.” José teve de voltar à sua cidade porque o tirânico governo romano estava conduzindo o censo. Porém, as informações colhidas foram utilizadas com um propósito que ia muito além da mera tributação. O regente local do governo romano, mais tarde, decidiu que queria encontrar o Cristo menino e matá-Lo.
O governo romano utilizou os dados do censo para descobrir onde os membros da Casa de Davi estavam? Não podemos saber com certeza, embora um déspota romano mais tarde tenha feito exatamente isso. Porém, o que de fato sabemos é que José cometeu um enorme erro ao obedecer aos recenseadores. Eles não estavam tramando coisas boas. Com efeito, um outro grupo de religiosos judeus na Judéia havia decidido que não iria sujeitar-se às ordens do governo romano para serem contados e tributados. Este grupo era conhecido como os “Zelotes” (sim, foi daí que veio o termo). Eles entendiam que sujeitar-se ao censo era equivalente a submeter-se à escravidão. Muitos acabaram pagando com a própria vida por essa postura proba.
E, entretanto, essa resistência comprovadamente fez com que aspirantes a tiranos se tornassem mais cautelosos. Durante dez séculos após Constantino, quando a Europa feudal foi subdividida em milhares de pequenos principados e jurisdições, nenhum governo central tinha condições de coletar dados sobre seus cidadãos. Esse é um dos grandes méritos de sistemas políticos radicalmente descentralizados: não há um poder central para controlar a população por meio da coleta de dados e do registro da população.
A única exceção na Europa naqueles anos foi Guilherme, o Conquistador (também conhecido como Guilherme I de Inglaterra), que, após 1066, tentou estabelecer na Inglaterra uma sociedade autoritária e centralizada nos moldes romanos. Isso significou, em primeiro lugar, a criação de um censo. O censo foi compilado em um livro cadastral que ficou conhecido como The Domesday Book, Domesday significando o dia do julgamento ou dia do juízo final, assim rotulado por um monge anglo-saxão porque ele representava o fim do mundo para a liberdade inglesa.
Um predecessor dos atuais cadastros de contribuintes, esse censo funcionou como uma listagem para o estado conquistador dividir as propriedades a seu bel prazer. “Não havia um só esconderijo ou pedaço de terra”, dizia um relato contemporâneo, “nem mesmo um boi ou uma vaca ou um porco deixados de lado e não contabilizados.” Com o tempo, a tentativa de mapear a população para propósitos tributários levou à reação populacional que criou a Magna Carta, a declaração fundamental dos limites do poder do estado.
O Domesday Book estabeleceu o precedente para várias outras tentativas de se compilar informação. Porém, de acordo com Martin Van Creveld (autor de The Rise and Decline of the State, 1999), as técnicas de coleta de informação daquela época eram tão primitivas, e os governos eram tão descentralizados, que os dados eram basicamente inúteis. Na Europa continental, por exemplo, nenhum governo tinha a capacidade de exigir um censo abrangente. Isso começou a mudar no século XVI, quando o estado-nação começou a ganhar força contra o poder contraposto pela igreja, pelas cidades livres e pelos lordes locais. Na França, o primeiro filósofo moderno do estado, Jean Bodin, insistiu que um censo fosse feito para melhor controlar a população.
Também na França, escreveu Voltaire, Luis XIV tentou — mas fracassou — desenvolver uma abrangente contabilidade do “número de habitantes de cada distrito — aristocratas, civis, trabalhadores agrícolas, artistas e artífices — junto com animais de todos os tipos, terras com vários graus de fertilidade, todo o clérigo regular e secular, suas receitas, e as das cidades e as das comunidades.” Acontece que tudo isso era apenas uma fantasia utópica. Mesmo se o Rei-Sol pudesse ter idealizado esse formulário, seria impossível forçar as pessoas a confessar toda aquela informação.
Os primeiros censos do século XVIII foram feitos na Islândia e na Suécia, utilizando como desculpa o fenômeno da redução da população (despopulação). Como nos EUA do pós-revolução de 1776 não havia tal problema, aquela geração de americanos que havia se revoltado contra os agentes tributários britânicos sabia perfeitamente que não era algo sábio investir o governo com o poder de coletar informações sobre os cidadãos. Nos Artigos da Confederação, escritos ainda naqueles dias da plena liberdade revolucionária, cada estado possuía apenas um voto, não importava quantos representantes ele tinha no Congresso. Não havia demanda para um censo simplesmente porque o governo central, como ele era, não tinha poder para fazer quase nada.
Foi com a Constituição americana de 1787 que os problemas começaram. O documento concedia ao governo federal mais poderes do que uma pessoa que preza a liberdade poderia tolerar, e a inclusão de um recenseamento era evidência desse problema. A intenção inicial era a de determinar o número de representantes que cada estado americano poderia ter no Congresso. Foi a primeira vez que o termo ‘impostos’ foi mencionado como sendo também um dos motivos para o recenseamento, lembrando não apenas César Augusto, mas também toda a histórica tirania de se utilizar o censo com o intuito de controlar as pessoas. Ficou então decretado que o censo americano deveria ocorrer a cada 10 anos.
O censo de 1790 ainda parecia inocente, porém já em 1810, as coisas realmente estavam fora de controle: pela primeira vez, o governo começou a exigir informação sobre a ocupação das pessoas. Felizmente para o povo americano, os arquivos foram queimados pelos britânicos em 1813, mal deixando restos para que o estado utilizasse para expandir seu poder. Mas, ainda assim, o estado não iria ser contido, e o censo foi se tornando cada vez mais intrusivo, até chegar à sua monstruosidade atual.
A história do censo americano traz uma grande lição para todos: qualquer poder cedido a um governo será utilizado inapropriadamente — é só uma questão de tempo. Hoje, o censo pergunta detalhes de sua vida que você jamais contaria a um vizinho ou a uma empresa privada. São inúmeras perguntas, algumas afrontosamente intrusivas, indo desde a raça, a relação de parentesco com os outros moradores, o tipo da união com seu cônjuge e todos os detalhes sobre sua profissão, até o número de cômodos em sua residência, o material predominante nas paredes, se há banheiro exclusivo para moradores, o tipo de sanitário e os objetos que você possui.
E para que é usada toda essa informação? Principalmente para planejamento econômico e social — uma atividade na qual o governo jamais deveria estar envolvido.
E essa não é uma interpretação tendenciosa dos objetivos do censo. O próprio censo diz que o resultado
“Tem por objetivo determinar políticas públicas e o planejamento dos serviços utilizados pela população, onde serão definidos e calculados os recursos financeiros do governo Federal para cada estado e município do país. Os resultados do Censo Demográfico de cada município e ou estado determinarão as reais necessidades e subsídios das políticas públicas de saúde, educação, habitação da região em questão, bem como a representatividade política dos Estados no Congresso Nacional. As pesquisas e dados estatísticos necessários às políticas públicas nas três esferas governamentais, ou seja, municipais, estaduais e federais, auxiliam também as iniciativas privadas no que se referem aos investimentos.”
Apenas pergunte a si próprio o que algum liberal do século XVIII ou XIX pensaria da ideia de “iniciativas privadas” e planejamento dos serviços sendo comandados pelo estado central. As mesmas pessoas incapazes de gerir lucrativamente um serviço monopolístico como os correios e incapazes de manter equilibrado um simples orçamento governamental são aquelas a quem devemos confiar informações sobre nós para que possam planejar nossas vidas? Não, obrigado.
Ademais, como ficou claro, “os resultados do Censo Demográfico de cada município e ou estado determinarão as reais necessidades e subsídios das políticas públicas de saúde, educação, habitação da região em questão”. Em suma, o propósito em nada difere daquele pretendido por Guilherme, o Conquistador: redistribuir propriedade e exercer o poder. Claramente, o simples objetivo da contagem de cabeças já foi deturpado. Ademais, há várias pessoas que creem que nós não “precisamos” desses programas.
Até porque, se uma contagem populacional fosse todo o objetivo do censo, então o trabalho poderia ser feito utilizando dados de empresas privadas ou até mesmo dos correios. Mas o censo quer mais. Por quê? Esqueça todos os argumentos oficiais. O real motivo para o governo querer essas informações é para manter um restrito controle sobre a população. A promessa de que os dados não serão utilizados contra você é tão válida quanto qualquer outra promessa do governo. Quanto vale uma promessa de político?
O que deveria fazer um homem livre ao receber o formulário de um burocrata? Primeiro, lembre-se de que aquela informação é a infraestrutura básica de um pretenso estado totalitário. Sem ela, o estado está às cegas. Depois, conhecendo todo o histórico mundial do censo, pergunte a si próprio se você realmente pode confiar ao governo central de hoje informações que certamente estariam muito mais seguras se ficassem guardadas apenas consigo próprio. Por fim, considere se os custos associados à não obediência são menores ou maiores do que o benefício subjetivo de se estar atuando conjuntamente com várias outras pessoas que também estão resistindo a essa intrusiva coleta de dados feita pelo governo.
Quando você confidencialmente conta um segredo seu a alguém, é bom que você conheça esse alguém muito bem. Saber um segredo sobre uma pessoa é ter poder sobre ela. Por que você iria querer revelar suas intimidades justamente para um aparato monopolista de coerção extremamente bem financiado? O Grande Irmão definitivamente não é alguém a quem você queira confiar seus segredos.
Ademais, se você quer saber quem de fato irá se beneficiar com o censo, apenas observe quais são as pessoas que querem que você responda sem espernear a absolutamente todas as perguntas: grupos de interesse de esquerda, universidades públicas, a mídia e toda a classe política. Para o resto de nós, cidadãos comuns, o censo é uma ameaça com consequências potencialmente nefastas.
Se você optar por responder ao censo, alguns comentaristas recomendam que você mantenha-se fiel à Constituição (no Brasil, artigo 5º, inciso X) e responda apenas quantas pessoas vivem na sua casa. Que tal postura seja hoje considerada subversiva mostra bem o tanto que nos distanciamos dos padrões aceitáveis de intrusão vigentes no século XVIII.
Em 1941, Gustav Richter, um auxiliar do nazista Adolf Eichmann, foi enviado à Romênia para coletar informações em massa sobre a população judaica por meio de um censo, com o objetivo supremo de planejar uma deportação em massa para o campo de concentração de Belzec. Porém, a Romênia cortou todas as relações políticas com os nazistas, e, como resultado, a população judaica foi poupada do mesmo destino dos judeus da Polônia e da Áustria. Assim como os Zelotes do primeiro século bem sabiam, quando um governo começa a coletar informações sobre seus cidadãos, coisa boa é que não é. Certamente, alguma barbaridade está sendo tramada.
Na Bíblia, em 1 Crônicas, Capítulo 21, há o relato de como o Diabo incitou Davi a fazer o recenseamento de Israel com a intenção de mandar homens para a guerra, e de como Davi se arrependeu a tempo de salvar Israel:
Então Satanás se levantou contra Israel, e incitou Davi a fazer o recenseamento de Israel. Disse Davi a Joab e aos chefes do povo: Ide, fazei o recenseamento dos israelitas desde Bersabéia até Dã e fazei-me um relatório, para que eu saiba o número deles.
Respondeu Joab: Que o SENHOR, nosso Deus, faça o povo de Israel cem vezes mais numeroso do que é agora! Ó rei, todos eles são seus servidores. Por que, no entanto, exige meu senhor isso? Por que sobrecarregar Israel de um pecado?
Mas o rei persistiu na ordem que dera a Joab […..] Mas Deus não viu isso com bons olhos, e por isso Ele castigou o povo de Israel. E Davi disse a Deus: Pequei gravemente agindo de tal maneira. Agora dignai-vos perdoar a iniquidade de vosso servo, porque agi em completa insensatez.
Mas não espere ouvir essas palavras arrependidas de seus governantes…
Por fim, voltando ao início, apenas pense: se José soubesse o que o esperava, ele certamente teria pensado duas vezes antes de cumprir ordens do governo e fazer aquela longa jornada até Belém.