[Artigo ampliado. Julguei pertinente realizar alguns aperfeiçoamentos na argumentação de modo a tornar o artigo mais consistente e claro. Dado que o pensamento sempre se aperfeiçoa, nunca atingindo a perfeição, é possível ulteriores modificações surgirem, vindo a lapidar ainda mais nossa concepção acerca dessa teoria ética tão revolucionária.]
“Meu argumento não é dedutivo; é transcendental.” – HHH
Quero fazer uma reconstrução informal do argumento de Hoppe. Um amigo meu insiste em perguntar-me: “Mas como é o processo dedutivo da ética argumentativa para atingir o direito de propriedade?” Realmente, não é tão claro e simples quanto parece. Acredito que o que há de mais importante no argumento hoppeano é seu caráter transcendental. Hoppe não deduz um dever a partir de um ser. Ele descobre um dever intrínseco à comunidade comunicante. Ter isso em mente é fundamental para começar a compreender a ética da argumentação.
Sejamos ainda mais precisos: o ponto de partida de Hoppe é a pragmática-transcendental apeliana. As proposições pragmático-transcendentais, recordemos, são aquelas que não podem ser negadas sem contradição performativa, nem ser justificadas sem petitio principii. Elas expressam realidades que são inerentes à mente racional, compondo o próprio pano de fundo do pensamento e do discurso. São proposições verdadeiras e absolutamente certas, portanto. Entre elas, há principalmente juízos de fato, tais como “eu existo”. Isso é bastante óbvio. Mas poderia existir entre elas uma proposição de dever ser também?
Eu direi a mesma coisa que Hoppe disse, mas de maneira um pouco diferente. O caminho que eu adotei é certamente mais adequado, uma vez que o núcleo da Ética e do Direito é o dever, e não o direito subjetivo, que é apenas um reflexo daquele. Em vez de olhar para o reflexo, vamos nos virar e lançar os olhos direto sobre o objeto de interesse, tomando-o sob maior nitidez. O leitor deve ficar atento para perceber que nós não faremos nenhuma dedução. O que se segue é mera análise de conceitos.
Vamos por partes. O que é propriedade? É o controle exclusivo sobre um bem, em que o proprietário pode excluir todas as outras pessoas do mundo de usar o bem e decidir fazer com ele o que lhe aprouver. É a faculdade de decidir sobre o uso do bem, sendo o senhor absoluto do objeto. O que queremos provar é a existência do direito subjetivo de possuir propriedade. O que é um direito subjetivo? Segundo Miguel Reale, é a “possibilidade de exigir-se, de maneira garantida, aquilo que as normas de direito atribuem a alguém como próprio”. Alguns definem como a “faculdade” de exigir algo que o Direito garante. O direito de propriedade é um direito subjetivo. Queremos, então, provar que todo indivíduo está justificado para exigir o dever, imposto erga omnes, de respeito ao exercício do seu controle exclusivo sobre seus bens.
O conceito de propriedade aqui adotado merece certo esclarecimento. Embora o conceito de propriedade possa ser tomado por um conceito normativo, aqui eu o tomo em sentido meramente descritivo, econômico, sob influência de notável escrito de Jörg Guido Hülsmann sobre o tema[1]. Esse conceito denomina uma espécie de relação entre o homem e as coisas, a saber, a relação que o homem estabelece com elas tão logo as aproprie, as tome para si, passando elas então a pertencerem a ele, a fazerem parte de seu domínio. Essa relação só existe no mundo da ação humana (ou mundo cultural, como diria Reale), de vez que essa relação é intrínseca a seres racionais que agem num mundo físico com objetos físicos escassos, sem exclusão do próprio corpo. Pode ocorrer de todos os objetos apropriados do mundo pertencerem a uma só pessoa ou a vários grupos, mas sempre estarão sob propriedade de alguém ou então livres para serem apropriados – se tal não for impossível conforme a natureza do objeto. A noção de pertencimento também parece normativa, mas não o é no sentido aqui tomado, conquanto possa soar normativo quando já se tem arraigado dentro de si o valor segundo o qual se devem respeitar os pertences alheios. O sujeito, enquanto agente, estabelece relações com as coisas, e uma das espécies dessa relação é a de propriedade, em que o sujeito incorpora o objeto ao patrimônio sob seu domínio, e assim a coisa se torna dele. Guido Hülsmann buscou fazer uma análise descritiva do conceito de propriedade e nos surgiu com o seguinte, posto sumariamente:
As observações a seguir renderam três características gerais da propriedade no sentido legal. Primeiro, a propriedade, nesse sentido, é parte de pessoas humanas, sejam indivíduos, sejam grupos, mas em qualquer caso é de humanos. Segundo, a propriedade guarda uma relação particular de “pertencimento” a uma pessoa de quem ela é parte. Essa relação é comumente chamada de propriedade e a respectiva pessoa é chamada de proprietário. Terceiro, não se pode ser o dono de uma coisa se não se pode controlar essa coisa.
Essas características bem gerais da propriedade não nos diz nada sobre como a propriedade está relacionada com cada pessoa específica. Elas não determinam quem possui o quê, mas meramente o que significa uma coisa ser propriedade, independentemente de a quem pertença.[2]
Essa análise nada nos diz sobre se a coisa deve ser do dono, nem se existe uma obrigação geral de respeitar sua propriedade, nem até que ponto deveria ir esse respeito. Daí ser possível o conceito de propriedade ilegítima, em que o objeto apropriado não deveria ser do dono atual, mas de outrem, conforme critérios normativos.
Em outras palavras, tomo o conceito de propriedade em seu sentido econômico, por assim dizer, e não propriamente jurídico, embora Hülsmann tenha dito que aquelas características são da propriedade “no sentido legal”. Dado que a análise de Hülsmann não contém proposições de dever ser, não creio que seja apropriado dizer que ele está lidando com esse conceito em seu sentido legal. Valha-nos Carl Menger para elucidar essa concepção concreta:
Consequentemente, a Economia humana e a propriedade têm origem econômica comum, pois ambas encontram seu fundamento último no fato de haver bens cuja oferta é menor do que a respectiva demanda; por conseguinte, a propriedade, da mesma forma que a Economia, não é invenção arbitrária, mas simplesmente a única solução prática possível que a própria natureza (isto é, a defasagem entre a demanda e a oferta de bens) nos impõe, no caso de todos os bens denominados econômicos.
É, pois, impossível eliminar a instituição da propriedade; isso só seria possível eliminando-se a causa que necessariamente levou a instituir-se a propriedade; em outros termos, a instituição da propriedade só poderia ser eliminada se, ao mesmo tempo, fôssemos capazes de aumentar a quantidade de todos os bens econômicos ao ponto de se poder atender por completo à demanda de todos os membros da sociedade, ou então se fôssemos capazes de diminuir as necessidades humanas até o ponto em que as quantidades disponíveis desses bens fossem suficientes para atender plenamente a todos.[3]
A propriedade é uma instituição inerente à sociedade de seres racionais agindo num mundo de escassez. A questão de se a propriedade deve ser respeitada ou de como ela deve ser organizada é outra, pertencente à seara da Ética. Propriedade não significa direito de propriedade privada. Por isso que Menger conclui nestes termos:
Eis porque a propriedade, no sentido visto acima, é inseparável da economia humana em sua dimensão social; e qualquer plano de reforma social só poderá empenhar-se no sentido de uma adequada distribuição dos bens econômicos, mas não poderá abolir a instituição da propriedade como tal.[4]
Ou seja, de qualquer maneira alguém terá de decidir sobre o uso dos bens escassos, seja um ditador absoluto, sejam grupos eleitos, seja cada indivíduo privadamente. O que pode variar é a distribuição dos títulos de propriedade entre os membros da sociedade, mas a instituição da propriedade é inseparável da existência de seres racionais num mundo de escassez. Enquanto é possível conceber uma propriedade que não deve ser (uma propriedade ilegítima), é impossível conceber uma ordem social sem propriedade.
Feito esse esclarecimento, provaremos primeiro o direito de propriedade do indivíduo sobre o próprio corpo. Em seguida, seu direito sobre os bens externos por ele apropriados. A questão de saber como um bem se torna propriedade de alguém não será tratada aqui.
Primeiro: tem o agente propriedade sobre seu corpo? É evidente que sim. É impossível ele não controlar exclusivamente seu corpo. Ele, e somente ele, pode decidir em última instância o que fazer com seu corpo. Aqui temos uma proposição da ordem do ser. Mas tem ele direito de exercer tal controle? Agora sim é que buscamos uma proposição de dever ser.
Respondamos da seguinte forma: é possível justificar o contrário? Não é possível justificar a norma “eu não devo ter propriedade sobre meu corpo”, porque isso nos renderia uma flagrante contradição prática. Assim, temos que é impossível justificar racionalmente uma norma contrária à autopropriedade. Se eu não posso justificar o não dever ser da propriedade, só me resta o seu dever ser, uma vez que não é possível uma terceira espécie de conduta frente à propriedade de si e que essa afirmação não contém nenhum tipo de contradição. Se temos como inválida a afirmação de que não se deve respeitar a autopropriedade, obtemos a validade da afirmação de que se deve respeitar a autopropriedade. Tertium non datur. O dever ser da propriedade é o mesmo que o direito de propriedade. Mas cuidado. Preste atenção ao que foi dito e veja que não houve processo de dedução a partir de premissas, mas apenas análise de conceitos para que se pudesse compreender o que é o direito de autopropriedade e por que ele é uma norma pragmático-transcendental. Essa norma não pode ser deduzida a partir de premissas anteriores porque ela é uma condição de possibilidade da própria comunicação. Ela vem automaticamente pressuposta em qualquer ato comunicativo com significado, como a lógica. Nós não fizemos uma demonstração, mas sim uma mostração. Apontamos o dedo para o fato oculto.
Hans Kelsen nos explica que todo direito é apenas o reflexo de um dever. O dever antecede, do ponto de vista lógico, o direito. Por isso eu preferi expor a ética argumentativa a partir do dever por ela descoberto, e não do direito subjetivo reflexo, como fez Hoppe. E assim ficou para mim mais compreensível e rigorosa a teoria. Mas tomemos outro ensinamento de Kelsen. Normas não são proposições que caibam nas categorias de verdadeiro e falso; elas são, antes, válidas ou inválidas, e sempre com respeito a uma norma anterior, até chegarmos à norma fundamental (Grundnorm), que se encontra no vértice do sistema e que não se refere a nenhuma outra norma anterior. No jusnaturalismo teológico, por exemplo, temos como Grundnorm a norma “a vontade de Deus deve ser obedecida”, ou algo que o valha. No ordenamento jurídico constitucional, a norma fundamental é aquela que diz que se deve cumprir a constituição. Entretanto, essas normas não possuem fundamentação racional. São meros juízos de valor, cuja validade é a mesma de quaisquer outros. Na teoria ética libertária ocorre o mesmo? Por que se deve, afinal, cumprir o dever de respeitar a autopropriedade, ainda que não possamos justificar o contrário?
Aqui podemos nos valer de uma observação de Frank van Dun. Devemos cumprir esse dever porque devemos agir conforme a razão. Tal é a norma fundamental da teoria ética libertária. O dever de agir conforme a razão, como nos lembrou van Dun, é tão inegável quanto qualquer outra proposição pragmático-transcendental, uma vez que flagramos enredado numa contradição performativa aquele que diz “não devo ser racional” ou “devo agir injustificadamente”. Essas proposições são argumentativamente injustificáveis, elas são, para usar a terminologia de Frank van Dun, contradições dialéticas. Devemos respeitar o direito de propriedade porque devemos respeitar os ditames da Razão, que dessa forma nos impõe aquele dever. Do contrário, eu poderia simplesmente dizer: “Por que eu deveria cumprir esse dever ao invés de agir de maneira injustificada mesmo?” E a resposta é: porque, é óbvio, eu também tenho o dever de seguir os mandamentos da Razão e agir conforme ela. Se é impossível justificar que eu devo agir de maneira injustificada, eu devo então agir justificadamente, o que me leva ao dever de respeitar o direito de propriedade – única conduta não injustificável. Eu considero que essa é que é a norma fundamental do edifício teórico da ética libertária, porque ela se encontra paralela ao direito de autopropriedade, no mesmo patamar pragmático-transcendental, e além disso abarca todas as conclusões derivadas desse direito, servindo de princípio que reúne todas as normas do Direito libertário num todo sistemático, unitário e coeso.
A justificação filosófica do direito de propriedade sobre bens externos segue o mesmo raciocínio. É possível provar a existência do dever de não respeitar a propriedade privada? Absolutamente não, porque isso implicaria uma contradição performativa. Para que se justifique a afirmação “a propriedade deve ser violada” é preciso exercer uma conduta (i.e., a argumentação) durante a qual não se estará violando uma propriedade; estar-se-á antes utilizando-a e respeitando-a, o que se nos afigura como condição da possibilidade daquela proposição. Então não nos resta terceira via. Se é impossível justificar o dever de afrontar a propriedade, assim temos estabelecido, transcendentalmente, o dever oposto, o de respeitar a propriedade. Ademais, sob o aspecto prático, a constante e ininterrupta observância do dever de violar a propriedade seria inexequível, enquanto é perfeitamente possível viver de acordo com o dever de respeitá-la. Como o direito de propriedade, de que é titular o proprietário, é apenas o reflexo do dever, vinculante erga omnes, de respeitá-la, eis absolutamente justificado aquele direito.
Notas
[1] HÜLSMANN, Jörg Guido. The A Priori Foudations of Austrian Law and Economics.
[2] Idem.
[3] MENGER, Carl. Princípios de Economia Política.
[4] Idem.