Retiremos da frase a seguir toda a piedade cívica que lhe foi inseminada em nossa era politicamente correta e vejamos o que há de errado com ela:
“Todos nós devemos oferecer voluntariamente parte do nosso tempo a causas caritativas, devolvendo à sociedade nossas fortunas por meio de um trabalho amoroso”.
Não podemos argumentar contra a instrução apresentada e nem contra o sentimento por trás dela. Não há nada de errado com a entrega e com o sacrifício. O problema está na escolha da linguagem. Ela contém uma palavra e três frases cujo uso comum pode ser altamente enganoso, induzindo a vários tipos de erro.
Voluntário
A palavra “voluntário” é utilizada para descrever uma pessoa que faz coisas pelo bem de outras, e todos nós conhecemos o propósito do termo. Falamos sobre voluntarismo o tempo todo. Vários países possuem hoje aquilo que é chamado de setor voluntário, também chamado de Terceiro Setor, o qual supostamente se refere a organizações sem fins lucrativos e que possuem empregos não remunerados. Porém, pensemos no significado literal de voluntário: trata-se do ato de se fazer uma escolha consciente e não coagida, e agir de acordo com a opção escolhida. O oposto seria ser forçado a fazer algo. Assim, prisioneiros são forçados a dormir sobre capachos e pessoas no exército são forçadas a marchar de um lado para outro. Já você e eu podemos voluntariamente optar por dormir sobre um capacho ou marchar de um lado para outro.
É verdade que as pessoas que dedicam seu tempo a servir sopas aos pobres não são forçadas a estarem lá. Porém, de que maneira a introdução de dinheiro, salários e lucros altera de modo geral a natureza da escolha? Por acaso os supervisores assalariados de abrigos para os sem-teto são menos voluntários do que outras pessoas? De modo algum. Eles optaram por uma escolha consciente, que é a de servir aos pobres, assim como “voluntários” não pagos também fizeram a escolha consciente de estarem ali. Todos eles são livres para ir fazer qualquer outra coisa.
Expandamos este raciocínio agora para o setor comercial, que busca o lucro. Nenhuma pessoa que trabalha no varejo ou com softwares ou em qualquer outra indústria em uma economia livre está sendo forçada a fazer alguma coisa. Todas elas estão ali por escolha voluntária, resultado de terem avaliado uma variedade de opções e de terem escolhido uma opção em detrimento de todas as outras opções possíveis (as oportunidades renunciadas representam aquilo que pode ser chamado de “custo” daquela escolha).
O médico que ministra remédios, o advogado que escreve um documento jurídico, o vendedor que vende um terno para você, o balconista que opera o caixa — todos estes são voluntários. O bancário é um voluntário. A introdução do dinheiro nas trocas (e todas as ações, caritativas ou lucrativas, são trocas) não altera nada a respeito da natureza da ação. Ela não faz com que algo deixe de ser voluntário e passe a ser forçado.
E isto não é apenas uma disputa terminológica. Há um significado ideológico em se atribuir o termo “voluntário” à descrição de atividades não remunerativas. Tal atitude evidencia um preconceito contra a economia monetária, como se as trocas guiadas pelo dinheiro e pelo lucro representassem um objetivo corrompido e maculado, ao passo que a remoção do dinheiro torna uma ação pura e além de qualquer reprovação. É claro que tal raciocínio está completamente equivocado.
Já passou da hora de desmistificarmos a função do dinheiro na sociedade. Em uma economia de escambo, bens e serviços são trocados diretamente uns pelos outros. Isto funcionava bem apenas para economias totalmente primitivas. Tão logo surgiram arranjos um pouco mais complexos, o escambo chegou ao seu limite. Você não pode trocar uma vaca por um ovo, ou uma fábrica de automóveis por um chapéu, pois estes bens não são divisíveis. Você precisa da existência de algo chamado dinheiro para permitir estas trocas. O dinheiro funciona como um substituto que permite com que trocas diretas sejam realizadas por meios indiretos. Em vez de trocar sua vaca por um ovo, você pode agora apenas trocar parte do produto de sua vaca (leite) por dinheiro e, então, o dinheiro pela quantidade de ovos desejada. O dinheiro é um mero substituto para bens e serviços que serão transacionados mais tarde.
O dinheiro também possui a vital função de permitir o cálculo econômico, de modo que você possa saber de antemão se as transações serão lucrativas (produtivas e não destrutivas) ou se gerarão prejuízos (não produtivas e destrutivas). Logo, a instituição do dinheiro não é inerentemente corrupta ou maculada; ela é extremamente útil e necessária, e surge meramente em resposta ao desejo que as pessoas têm de cooperar entre si.
Devolver à sociedade
“Devolver à sociedade” é uma frase utilizada para implorar àquelas pessoas que obtiveram sucesso em seus empreendimentos legítimos para que doem seu tempo, talento e riqueza a algumas causas fora da sua área de atuação. Não há problemas com o pedido de servir aos outros, mas há um enorme problema com o termo “devolver”. Ele sugere que as pessoas que têm dinheiro tomaram alguma coisa de outras pessoas. Embora isso seja verdade para pessoas que trabalham no setor público, é curioso notar que não se vê pedidos lacrimosos para que estas devolvam à sociedade o que tomaram. Tais pedidos aparentemente se aplicam apenas a empreendedores que trabalham no genuíno setor voluntário da economia, que é o setor privado. E o fato de um empreendedor privado ter obtido sucesso em seu empreendimento indica precisamente que sua riqueza foi obtida não pelo confisco dos bens alheios, mas sim pelo fato de ele ter sabido cooperar com consumidores que voluntariamente adquiriram seus bens e serviços.
Vejamos como isto funciona: quando você precisa de leite e está com pressa, você corre para a padaria ou para a loja de conveniência mais próxima e pega uma embalagem longa-vida. Você a leva até o caixa e o atendente diz quanto você deve pagar. Neste momento, há um cálculo sendo feito. O atendente determina que ele (mais especificamente, seu patrão) prefere seus $2,50 ao leite. Você, por outro lado, determinou que prefere o leite aos $2,50 que estão sendo pedidos em troca. Ato contínuo, vocês dois fazem a transação e voilà — ambos estão em melhor situação em consequência deste ato.
Você prestou um serviço àquele estabelecimento, e aquele estabelecimento prestou um serviço a você. O estabelecimento ficou mais rico em termos de dinheiro e você ficou mais rico em termos de bens. O que cada um dos lados deve ao outro após esta troca? Absolutamente nada. O que a justiça exige? Que eles mantenham este acordo comercial, e nada mais. O leite não pode estar azedo. Caso você tenha pagado com cheque, ele tem de ter fundos. Nada mais é requerido. Agora, se o atendente estiver doente e precisando de ajuda, ou se o consumidor é pobre e precisa de abrigo, isto é outra questão. Porém, o que está sendo pedido neste caso é algo completamente isolado e sem nenhuma conexão com os resultados da transação econômica.
Expandindo esta lógica um pouco mais, podemos ver que ela se aplica a todas as pessoas que ganham dinheiro, mesmo àquelas que ganham muito dinheiro (de forma honesta e voluntária, é claro). Mesmo um indivíduo extremamente rico, e desde que sua riqueza tenha advindo de trocas mutuamente benéficas, não tem de “devolver” nada à sociedade, pois ele não retirou nada dela. Com efeito, o inverso é que é totalmente verdadeiro: empreendimentos dão à sociedade. Empreendedores correm enormes riscos e se aventuram em investimentos incertos precisamente por estarem com o objetivo de servir aos outros. Sua riqueza é apenas um sinal de que eles alcançaram seus objetivos.
Trabalho amoroso
A frase “trabalho amoroso” é utilizada como um eufemismo para trabalhar sem receber. É uma frase apropriada caso seu significado esteja restrito apenas àquelas pessoas que amam tanto o seu trabalho que estão dispostas a efetuá-lo mesmo sem nenhuma remuneração. Mas a frase, erroneamente, também carrega a implicação de que, se você está sendo pago, então não é um trabalho feito por amor e com amor.
Certamente, empregados bem sucedidos são majoritariamente aqueles que adoram seu trabalho. Que eles recebam salários em troca de seus serviços prestados é apenas um sinal do valor que o proprietário da empresa atribui ao seu trabalho. Ambos estão cooperando para suas satisfações mútuas, algo que pode perfeitamente ser classificado como uma forma de demonstrar amor. Sendo assim, todo trabalho em um livre mercado é um trabalho amoroso. Ambos os lados estão dando e recebendo.
Outra maneira infeliz de se empregar esta frase é inferindo que, se você se recusar a trabalhar voluntariamente, sem salários, então você não está demonstrando amor. É um fato inegável que o uso do tempo significa o uso do mais valioso recurso que possuímos. Se um trabalhador abre mão de um dia de trabalho e seu salário é descontado por isso, ele pode estar abdicando de uma quantia considerável de sua renda. Esta perda de renda é o seu custo; é o que ele paga para fazer um “trabalho amoroso”. Portanto, ele não está apenas abrindo mão de sua renda: de certa forma, ele está contribuindo com aquilo que de outra forma seria sua renda para a causa que ele está servindo. E se este dinheiro fosse originalmente para comprar alimentos ou remédios para seus filhos? Neste caso, fazer um “trabalho amoroso” acabou se revelando um ato de crueldade.
Tal raciocínio é válido até mesmo para o mais rico dos empreendedores. E se ficar trabalhando — até mesmo ganhando dinheiro — for a melhor forma de servir à comunidade? E se o indivíduo for um farmacêutico ou um médico ou um gerenciador de website que está ajudando a fornecer informações vitais sobre saúde ou qualquer outro assunto essencial? Trabalhar em troca de salários representa uma contribuição tão grande para a sociedade quanto qualquer tipo de trabalho voluntário. E se um indivíduo é o responsável pelo bem-estar de milhares de empregados? Não seria um ato de amor ele permanecer neste trabalho assalariado?
Não há motivo algum para se afirmar que só há amor quando o indivíduo doa seu tempo sem nenhum pagamento em troca. Você pode pagar ou ser pago e ainda assim demonstrar amor.
Novamente, isso tudo não é apenas uma questão semântica. Trata-se de uma abordagem das suposições que muitas pessoas fazem sobre questões econômicas e que afetam a ética. As pessoas frequentemente aceitam sem questionar a ideia de que o “vínculo ao dinheiro” é incompatível com uma vida ascética e limpa. Porém, só é possível ter uma compreensão realmente clara a respeito deste assunto se entendermos que o dinheiro é meramente uma instituição instrumental que serve à causa da cooperação humana, gerando melhorias e benfeitorias.
Sim, devemos fazer trabalhos voluntários para causas caritativas, e fornecer à sociedade nosso trabalho amoroso. Só que isso não necessariamente significa servir sopa em abrigos para sem-tetos. Ao contrário, pode significar receber uma polpuda renda como corretor imobiliário ou como investidor em empreendimentos imobiliários. Quando finalmente entendermos que a economia de mercado não apenas não é incompatível com a justiça social, como na realidade ela é uma genuína forma de se fazer a justiça social no mundo real, passaremos a ter mais cuidado com a linguagem que utilizamos.