Obs: o artigo a seguir é uma versão resumida de um texto escrito especialmente para a futura revista acadêmica do IMB. Para ver o artigo em seu formato original, com análise gráfica, veja aqui.
. Introdução
A Quarta Proposição Fundamental de John Stuart Mill (1806-1876), formulada em 1848, no Livro I, capítulo V, dos Principles, na forma de um aforismo (“demanda por commodities não é demanda por mão-de-obra”), é um dos elementos decisivos para distinguir a “macroeconomia” dos austríacos e, particularmente, a de Hayek, da macroeconomia convencional. Nos modelos macroeconômicos modernos, de tintas keynesianas ou não, gastos de consumo e de investimento movem-se sempre no mesmo sentido. Mill, contudo, sugere que a demanda por bens de consumo e a demanda por investimentos podem mover-se em sentidos opostos. É lamentável que Keynes, noventa anos depois, demonstrasse não ter compreendido sua essência e enveredado pelo caminho dos “agregados macroeconômicos”, no que foi seguido, infelizmente, pelos monetaristas, o que influenciou de modo negativo toda a macroeconomia ensinada nas universidades e — o que é pior — as práticas dos governos em todo o mundo, desde os anos 30 do século XX até hoje.
A Teoria Austríaca dos Ciclos Econômicos (TACE) plantada por Menger, formulada por Mises em seu tratado monetário de 1912, desenvolvida posteriormente por Hayek nos anos 30, explicada magistralmente por Rothbard e outros austríacos de renome e compatibilizada com a macroeconomia convencional de maneira bastante criativa por Roger Garrison, é formada por sete elementos, que podem ser assim isolados [ver, para maior profundidade, meu Ação, Tempo e Conhecimento, cap. 7]:
(1º) o processo de mercado; (2º) a doutrina da poupança forçada; (3º) a estrutura de capital da economia; (4º) o papel de coordenação intertemporal da taxa de juros; (5º) o efeito Ricardo, o efeito taxas de juros, o efeito preços relativos e o efeito concertina; (6º); a teoria hayekiana do conhecimento e (7º) a Quarta Proposição Fundamental de John Stuart Mill.
Neste artigo, queremos mostrar o papel que o último desses elementos desempenha na TACE. Antes, parece conveniente, para evitar eventuais ataques de puristas, ressaltar que, embora, obviamente, a Escola Austríaca não contenha algo que se possa chamar de “macroeconomia”, não existe nada de errado em utilizar este termo para que possamos compará-la com as teorias alternativas, das quais as principais são a teoria keynesiana e o monetarismo. Como diriam alguns, “Se a montanha não vai a Maomé, vai Maomé à montanha”… De resto, os assuntos tratados pela macroeconomia e pela TACE são rigorosamente os mesmos.
2. As quatro proposições fundamentais de John Stuart Mill
A famosa Quarta Proposição decorre das três primeiras. No entanto, essas últimas parecem envoltas em certo mistério, para quem não leu os Principles of Political Economy de Mill, ou seja, da maneira como anda o ensino de economia hoje, infelizmente, para dez em cada dez economistas jovens. Por isso, para que o leitor não se pergunte por que apenas nos referimos à Quarta Proposição sem fazer qualquer referência às três primeiras, vamos descrevê-las aqui. A Quarta é uma extensão lógica das três primeiras, vale dizer, existe coerência lógica interna entre elas. É importante termos em mente que o quarteto é um resumo da posição dominante clássica na época de Mill e, portanto, anterior ao livro seminal de Menger, o famoso e fenomenal The Principles of Political Economy, de 1871. Vamos aos enunciados das três primeiras proposições:
Primeira: “A indústria é limitada pelo capital” (e, adicionalmente, “todos os aumentos de capital proporcionam, ou são capazes de proporcionar, empregos adicionais na indústria, e isso sem um limite atribuível”).
Segunda: “O capital é o resultado da poupança”.
Terceira: “A poupança não é um abismo, um negativo, uma ausência, mas é uma utilização produtiva real dos recursos” (e, ainda, “o capital, embora poupado, é o “resultado” da economia e, não obstante, também é consumido)”.
E a Quarta Proposição?
Que tal passarmos a palavra ao próprio Mill, no original [The Principles of Political Economy, Book 1, Chapter 5, Section: Fundamentals propositions respecting capital, 9.9]?
[9.9] Passemos agora para um quarto e fundamental teorema a respeito do Capital, o qual é, talvez, mais frequentemente desconsiderado ou mal interpretado do que qualquer um dos anteriores. O que mantém e emprega a mão-de-obra produtiva é o capital utilizado para colocar a mão-de-obra para trabalhar, e não a demanda por compradores pelos produtos da mão-de-obra quando estes estiverem finalizados. Demanda por commodities não é demanda por mão-de-obra [negrito nosso]. A demanda por commodities determina em qual setor específico da produção a mão-de-obra e o capital deverão ser empregados; ela determina a direção da mão-de-obra; mas não a quantidade de mão-de-obra empregada ou o valor de seu pagamento. Isso vai depender da quantidade de capital ou de outros fundos diretamente voltados para a manutenção e a remuneração da mão-de-obra.
Para a maioria dos economistas de hoje, isto soa ou como absurdo ou como incompreensível, porque o keynesianismo inoculou em suas mentes exatamente o oposto. No mundo keynesiano a demanda por mercadorias representa enfaticamente a demanda por mão-de-obra, embora esta seja uma demanda derivada daquela. Esta suposição implícita de que adquirir mercadorias (ou quebrar vidraças, como escreveu Bastiat) contribui para empregar trabalhadores — que a Escola Austríaca sempre rejeitou — é que Mill estava tentando negar. Ele estava querendo demonstrar que comprar mercadorias não é o mesmo que empregar o fator de produção trabalho e que aumentos na demanda por mercadorias, ou seja, por bens de consumo, podem até mesmo fazer diminuir o número de pessoas empregadas. Precisamos entender como a lógica dessa proposição depende claramente da validade das três proposições anteriores. Este é nosso passo seguinte.
3. A coerência entre as quatro proposições de Mill
Iniciemos tomando as duas primeiras proposições: (1ª) a indústria é limitada pelo capital; (2ª) o capital é criado pela poupança.
Em primeiro lugar, notemos que o capital proporciona a base para a produção, que pode ser sob a forma de bens de consumo ou de investimento, sendo que estes servem para aumentar o próprio estoque de capital. A poupança é assim definida por Mill: “consumir menos do que o montante produzido é poupar; e este é o processo mediante o qual o capital aumenta”.
Correto, mas devemos lembrar, à guisa de parêntesis que, para os austríacos, no entanto, a poupança não é simplesmente a diferença entre produção e consumo — isto é simplesmente entesouramento —, mas é determinada essencialmente pelas preferências intertemporais, em que a taxa de juros determina quanto vai ser consumido hoje e quanto de consumo será postergado para o futuro, ou seja, poupado hoje!
Se a demanda por bens de consumo aumenta, levando em conta que a capacidade da economia de produzir é limitada por sua base de capital, esse aumento no consumo deve diminuir o nível de investimento, ou seja, a produção de bens de capital. Esse aumento na demanda por bens de consumo pode se dar ou por políticas de estímulo à demanda por esses bens ou por uma diminuição no desejo de poupar por parte dos agentes econômicos. No caso keynesiano, obviamente, se dá pelo primeiro motivo.
Como consequência o desvio da produção de bens de capital para a produção de bens de consumo vai diminuir a taxa de crescimento global da economia, porque o crescimento do capital produz impactos maiores sobre a capacidade de crescimento da economia do que o aumento do consumo. Esse movimento para mais consumo e menos investimento tem um efeito imediato sobre a acumulação de capital, mas também um efeito de longo prazo, na medida em que a economia ficará restrita em sua capacidade de acumular capital por meio do próprio crescimento do produto. origem dos eixos.
O aumento na demanda por mercadorias diminui a oferta de poupança e também provoca uma queda equivalente na geração de capital. Com o passar do tempo, esse nível mais baixo de investimento reduzirá a capacidade de produzir tanto mercadorias como capital, restringindo novamente o crescimento do capital no longo prazo.
Em segundo lugar, Mill está convencido de que não é a compra de bens e serviços que gera emprego, mas sim a sua produção, sua oferta. Nisto, podemos dizer que foi um austrríaco. O que a demanda determina é o que deve ser produzido (notemos a harmonia dessa afirmativa com o pensamento de Menger e toda a tradição austríaca)! Em suas próprias palavras:
A demanda por commodities determina em que ramo específico da produção o trabalho e o capital devem ser empregados; ela determina a direção [preferiríamos dizer o sentido] do trabalho.
É a decisão prévia de produzir, tomada pelas empresas, que determina o nível de
produção e isso vai depender da quantidade de capital disponível. O produto cresce quando a oferta de capital aumenta. A quantidade de produto é determinada essencialmente pela quantidade de capital. Devemos notar, no entanto, a ausência nesta análise de um fator importantíssimo na Teoria Austríaca, que é a Estrutura de Capital da Economia. Com efeito, Mill parece considerar o capital como algo homogêneo e agregado, composto pelo estoque acumulado, até a data presente, de investimentos em máquinas, equipamentos, instalações e construções, ou seja, o capital físico.
Isto entra em choque flagrante com a análise austríaca — desenvolvida brilhantemente por Böhm-Bawerk — que trata o capital como uma estrutura bastante heterogênea ao longo dos diferentes estágios da estrutura de produção, desde os que produzem bens de capital (bens de ordens mais elevadas) até os que produzem bens consumo (ou bens de ordens baixas, sendo que os bens de consumo final, na nomenclatura adotada por Menger, ainda em 1871, são chamados de bens de primeira ordem. Para os austríacos, portanto, o capital não se resume a máquinas e equipamentos, mas a todos os insumos que estão sendo utilizados nos diferentes estágios do processo de produção, aí incluída a mão de obra e o tempo de produção em cada estágio ou etapa desse processo.
Com o nível de produção determinado pela quantidade de capital, uma queda nesta última geraria também uma queda no nível de produção. O desvio de esforço produtivo (investimento) para o consumo presente ocorrido no primeiro estágio diminuiu o montante de capital disponível e isso vai provocar queda correspondente no nível de produção Em essência, isto está correto, mas não podemos deixar de lado o que escrevemos há pouco, que, não sendo o capital um simples agregado, assim como o produto, essas quedas não são uniformes ao longo da estrutura de capital da economia.
Por fim, aparece o efeito da queda dos níveis de produção sobre o nível de emprego. Mill acrescenta uma condição adicional, a de que os salários reais deveriam pelo menos ser mantidos:
Eu entendo que, se por demanda por trabalho se entende a demanda pela qual os salários aumentam, ou o aumento no número de trabalhadores no mercado de trabalho, a demanda por commodities não se constitui em demanda por trabalho.
Com a queda no valor do capital puxando para baixo o salário médio real que pode
ser pago, o efeito de uma queda na produção é uma queda na procura de trabalho ao nível atual do salário real. Uma vez que é a disponibilidade de capital no agregado o que importa – o que é muito mais do que apenas o “fundo de salários”, pois inclui todo o
estoque de itens de capital que podem ser utilizados no processo de produção – a redução
de capital se traduziu em uma redução na demanda por trabalho. Como Mill escreveu:
Cada adição ao capital dá para o trabalho: ou empregos adicionais ou remunerações adicionais
A conhecida função de produção neoclássica relaciona o nível de produto com o nível de emprego. Então, a queda na produção, mantido o salário real provoca uma queda no nível de emprego. Portanto, um aumento na demanda por consumo levou a uma queda no nível de emprego, contrariamente ao que o keynesianismo suporia mais de oitenta anos depois. Conclusão correta, mas que padece do mesmo defeito apontado anteriormente: não é correto tratar a mão de obra, o consumo e o emprego de mão de obra como agregados, já que, como a produção é composta por estágios, em cada um destes haverá um mercado de trabalho específico, com oferta e demanda e as quedas não serão uniformes, pelo contrário, serão desiguais ao longo da estrutura de produção.
A Quarta Proposição segue, então, das três primeiras. Ela mostra que um aumento na demanda por mercadorias (consumo presente) levaria a uma queda na demanda por mão de obra, porque desviaria a utilização de recursos da criação de capital adicional – e é apenas a quantidade de capital que suporta maior emprego. Uma queda na quantidade de capital produzido levaria a uma queda no valor de produção e, portanto, a uma redução no nível de emprego, para que os salários reais pudessem ser mantidos constantes. Mas notemos que essa diminuição na demanda por mão-de-obra não se dará em todos os estágios da estrutura de produção, mas apenas naqueles que produzem bens de ordens mais elevadas, distantes, portanto, do consumo final.
Por “commodities”, é claro que Mill está se referindo ao uso da base de recursos de uma economia para produzir formas de produto não geradoras de crescimento, que não fornecem uma base para aumentar o nível de emprego. Para Mill, a produção de bens e serviços não utilizados para agregar valor ao estoque total de capital, ou como insumos em uma empresa produtiva, mas sim como mercadorias para serem vendidas em um armazém, ou como bens e serviços comprados pelos assalariados, não podem aumentar o nível de emprego ao salário real existente.
E este é o ponto de Mill, na concepção neoclássica. Foi uma conclusão que satisfez toda uma geração de economistas e é difícil ver de que forma ela estaria errada. É certamente um argumento válido em seus próprios termos e contexto. É sempre possível aumentar o emprego ao mesmo tempo, se o salário real médio cair. Mas se o objetivo da política (para Mill) é manter ao mesmo tempo o emprego e tornar a comunidade mais próspera, então o foco deve ser na acumulação de capital em seu sentido mais amplo, o que significa que esse conceito deve incluir as mudanças tecnológicas e, possivelmente, até o desenvolvimento de habilidades (capital humano, conceito que não era conhecido por esse nome na época). Apesar de os austríacos discordarem de políticas econômicas, essa conclusão de Mill não anula o fato elementar de que a essência do crescimento econômico é a acumulação de capital, que acontece mediante investimentos e não por estímulos ao consumo presente. Vidraças quebradas só oferecem ganhos para vidraceiros e para a indústria de vidros.
Resumindo a Quarta Proposição: um aumento na demanda por consumo desvia esforços produtivos da acumulação de capital e, portanto, das formas de produção que podem suportar ou apoiar o nível de emprego. Demanda por mercadorias não é demanda por trabalho!
4. Hayek e a Quarta Proposição
A interpretação austríaca da Quarta Proposição pode ser extraída das palavras de Hayek:
Antes de prosseguir, no entanto, será aconselhável a restabelecer a proposição de Mill de uma forma que não deixa dúvidas sobre o seu significado exato. Em primeiro lugar, é provavelmente claro que o modo como a doutrina tem sido geralmente colocada precisa ser corrigido, como temos feito, para substituir bens de consumo por “commodities”, e que a demanda por “commodities” terá de ser descrita não como uma simples quantidade, mas como uma demanda ou curva que descreve as quantidades de bens de consumo que serão comprados a preços diferentes. Em segundo lugar, o teste para saber se a demanda por “bens” dos consumidores é “demanda por trabalho” (ou, podemos dizer, demanda pura por inputs) deve ser claramente se um aumento na curva de demanda por bens de consumo aumenta a curva de demanda por inputs (e se uma queda da primeira reduz a última), ou se uma alteração na demanda dos consumidores de bens não causa “mudança na mesma direção, ou talvez mesmo, uma mudança na direção uma mudança na direção oposta, para a demanda pura por inputs. [negritos nossos]
Aí parece bastante claro que Hayek tinha em mente a estrutura de capital que caracteriza a Escola Austríaca.
Este é o ponto de Hayek! Tal como interpretou o efeito-Ricardo não como a simples substituição de homens por máquinas e sim por substituições entre bens de ordens mais elevadas por bens de ordens menos elevadas ao longo da estutura de capital, a Quarta Proposição de J. S. Mill, para Hayek, significa que consumo e investimento, definidos não como agregados, mas como compartimentalizados em estágios, podem e devem normalmente variar em sentidos opostos.
Hayek interpreta o aforismo da Quarta Proposição, sugerindo que Mill procurava enfatizar que é precipitado incorporar demandas derivadas em economia política e tirar conclusões a esmo. As teorias macroeconômicas modernas, em que as demandas pelo produto final e pelos fatores de produção movem-se sempre no mesmo sentido, parecem não dar importância a essa advertência. Esta é a Quarta Proposição de Mill segundo Hayek!
5. A quarta proposição e a TACE
Mill, então, alertou para o perigo da incorporação de demandas derivadas em economia política, mas nas teorias macroeconômicas modernas as demandas pelo produto final e pelos fatores de produção movem-se sempre no mesmo sentido. Assim, na conhecida equação de corte keynesiano Y = C + I, em que Y representa o produto “agregado”, C o consumo “agregado” e I o investimento “agregado”, se um dos componentes da demanda (C, por exemplo) estiver subindo (caindo), então o outro (I, no caso), necessariamente, também estará subindo (caindo). Essa suposição — errada! — é base para todo o keynesianismo, com seu conhecido efeito multiplicador. Se mostrarmos que ela é falsa, todo o keynesianismo cai por terra! E não é difícil fazer isso.
A formulação austríaca reconhece que as duas demandas podem mover-se em sentidos opostos e essa atenção para com a Quarta Proposição distingue a “macroeconomia” de Hayek — e, por conseguinte, a Escola Austríaca — da macroeconomia keynesiana.
Se o consumo presente está caindo, isto não significa necessariamente que a demanda por trabalho e por outros fatores também esteja caindo: pode significar que a propensão a poupar esteja aumentando e, portanto, que o consumo futuro também vai crescer, o que, se for incorporado às expectativas dos produtores, poderá fazer crescer a produção de bens de consumo futuros e, assim, aumentar a demanda por trabalho no período atual. Para Hayek, em um dado período, os gastos de consumo e de investimento podem e, em condições de pleno emprego (ou de nível natural de emprego), devem mover-se em sentidos contrários.
Mutatis mutandis, se o consumo está aumentando (como consequência, por exemplo, de uma disposição menor a poupar), isto não significa automaticamente que a demanda por trabalho e por outros insumos componentes da Estrutura de Capital esteja também subindo: pode significar que o desejo de poupar esteja caindo e que, portanto, o consumo futuro também vai cair – porque a formação de capital vai declinar e não será lastreada na poupança, que diminuiu -, o que, quando incorporado às expectativas dos produtores, poderá diminuir a demanda por trabalho imediatamente.
Este deslocamento de recursos entre bens de ordens inferiores (“consumo”) e bens de ordens superiores (“investimento”) e entre os diversos estágios da estrutura de produção — os efeitos Ricardo, preços relativos, taxas de juros e concertina — é que leva à coordenação intertemporal ou à sua ausência: coordenação, quando o deslocamento é provocado por alterações nas preferências temporais e falta de coordenação quando é causado por manipulações monetárias, por crédito não lastreado em poupança.
Como vimos, a demanda por fatores de produção é estritamente uma demanda derivada e, embora não haja qualquer objeção a esse conceito no âmbito microeconômico de análise de equilíbrio parcial, extrapolar, como fez Keynes, da empresa ou da indústria para a economia como um todo e afirmar que a demanda da economia por mão de obra é derivada à la Marshall da demanda por bens de consumo é incorrer na conhecida falácia da composição, que consiste em se admitir que o que é verdade para uma parte do sistema, então também é verdade para todo o sistema. Vejam que isso nos leva à própria macroeconomia! Por exemplo, se a quantidade de pães fabricados por um trabalhador em uma padaria for muito elevada num determinado dia, o rendimento dos seus colegas aumentará, embora a produção dos mesmos possa até ter sido menor naquele dia; porém, se todos os trabalhadores na padaria conseguirem produzir quantidades muito grandes de pães, o rendimento do conjunto poderá ser mais baixo. Se concluíssemos o contrário, incorreríamos na falácia da composição.
A teoria keynesiana, no entanto, não se restringe à demanda por bens de consumo, mas a todas as formas de gastos: quanto maior a demanda agregada, maior a demanda por mão de obra. Este é o ponto fundamental da análise do tipo C + I + G + X – M, sintetizado no início dos anos 40 por Alvin Hansen e John Hicks nas famosas “curvas IS e LM”.
Hayek reconhece que no âmbito macroeconômico consumo e investimento podem mover-se em sentidos opostos e esse reconhecimento é básico em suas críticas a Keynes, que desprezou a Quarta Proposição de Mill, já que, na sua visão, isto se daria apenas no caso especial e improvável de uma economia no pleno emprego. Mas consumo e investimento podem se mover no mesmo sentido apenas quando o nível de ociosidade de recursos se move no sentido oposto. Não há custos de oportunidade (ociosidade passada não é um custo) associados a ter mais de ambos os componentes da atividade econômica. Com efeito, foi o desprezo de Keynes em relação à Quarta Proposição de Mill que levou Hayek a se referir à economia keynesiana como “economia da abundância”.
Em um ensaio de 1928, Hayek mostra como o mecanismo de preços relativos do mercado desloca recursos das atividades de consumo para atividades de investimento em resposta a mudanças nas preferências intertemporais. Ele mostra como uma queda na demanda por produtos (isto é, no consumo corrente), pode ser associada com um aumento na demanda por trabalho e outros inputs no espectro temporal da estrutura de produção, permitindo assim um aumento no nível de consumo futuro. Estes são os mecanismos de mercado, cuja existência ou é negada ou ignorada ou negligenciada por Keynes.
Eis a essência da TACE: com taxas de juros artificialmente baixas, os consumidores reduzem a poupança e passam a consumir mais, e os empresários aumentam seus gastos com investimento. E então se cria um desequilíbrio entre poupança e investimento. Tem-se uma economia com crescimento insustentável. Essa é, em suma, a lição da crítica austríaca aos bancos centrais, desenvolvida nos anos 1920 e 1930.
Com bastante clareza, o Prof. Roger Garrison observa que, quando as pessoas optam por poupar mais, elas mandam dois sinais aparentemente conflitantes para o mercado: o primeiro é que consumo menor enfraquece a demanda por bens de capital que estão próximos — em termos temporais — do produto final de consumo. Esse é o efeito derivado da demanda. E o segundo é que uma taxa de juros menor, que significa empréstimos a custos menores, estimula a demanda por bens de capital que estão distantes, em termos temporais, do produto final de consumo. Esse é o efeito do desconto temporal — ou simplesmente o efeito da taxa de juros.
Os efeitos derivados da demanda e do desconto temporal estarão em conflito apenas se o “investimento” for concebido como um simples agregado — como é na fórmula keynesiana C + I + G. Na “macroeconomia” da Escola Austríaca, o capital — logo, o investimento — é concebido como uma estrutura. Mudanças na demanda por investimentos, portanto, produzem efeitos distintos sobre os vários estágios da produção (que podem sofrer adições ou subtrações) que compõem a estrutura de capital.
A teoria de Keynes, feita em termos de agregados, negligencia não só a teoria austríaca do capital, mas qualquer outra teoria do capital. Isso motivou Hayek a afirmar de que “os agregados do Sr. Keynes escondem os mecanismos mais fundamentais da mudança”. (Para quem desejar aprofundar-se na análise Garrison, aconselhamos o vídeo de sua lecture The Austrian Theory of the Business Cycles, que pode ser acessado em http://www.youtube.com/watch?v=5rJceunyCwU)
6. Paradoxo da poupança?
Para a Escola Austríaca, o famoso paradoxo da poupança de Keynes é um absurdo! Segundo Keynes, qualquer redução nos gastos resultaria em excessos de estoques, que por sua vez causariam cortes na produção, demissões e espirais baixistas na renda e nas despesas. A economia entraria em recessão e os empresários iriam investir menos. A “solução” que ele apresentou foi que o governo aumentasse os seus dispêndios. Esse paradoxo da poupança sugere, então, que aumentos na disposição de poupar gerariam desemprego e é, com todas as letras, uma balela! Os ciclos econômicos são provocados por poupança de menos e investimentos demais, e não — como acreditava Keynes — por poupança demais e investimentos de menos.
Sempre pensando em “agregados”, Keynes sustentava que o mercado atua perversamente, impedindo que a poupança e o investimento se “equilibrem”. Partindo do pressuposto de desemprego e ociosidade de recursos como regra geral, defendia políticas contracíclicas fiscais e monetárias, e, em última instância, uma “socialização abrangente do investimento”. Já Friedman, incontestável defensor dos mercados, se baseava em níveis ainda maiores de agregados, podendo-se, nesse sentido, dizer que era um “keynesiano”. Aliás, é famosa uma de suas frases, “we are all Keynesians”. A Teoria Quantitativa da Moeda negligencia a questão da alocação de recursos e as mudanças nos preços relativos, provocadas pelas injeções de moeda na economia, centralizando sua atenção na relação entre oferta de moeda, estabelecida previamente pelos bancos centrais de acordo com uma “regra x”, e “nível geral de preços”, outro conceito agregado rejeitado pelos austríacos. Se para Keynes a Grande Depressão fora provocada por poupança demais e investimento de menos, para Friedman ela fora provocada por moeda de menos circulando na economia. Isso não lembra, respectivamente, Krugman e Bernanke?
Para estudar a dinâmica da TACE, recomendo vivamente ao leitor a leitura do livro de Roger Garrison, Time and Money: the Macroeconomics of Capital Structure. Recomendo também a coletânea de artigos de Mises, Haberler, Rothbard e Hayek, compilada por Richard Ebeling e com introdução e sumário de Garrison, The Austrian Theory of the Trade Cycle, editada pelo Mises Institute em 1996. E, por fim, o livro memorável de Rothbard, recém editado pelo Instituto Mises Brasil, A Grande Depressão Americana, com introdução de Paul Johnson.
Quando o banco central aumenta a oferta de moeda, o novo dinheiro entra na economia em pontos específicos da estrutura de capital, e não uniformemente, como supõem os keynesianos e os monetaristas. As chamadas “autoridades monetárias”, literalmente, criam dinheiro do nada — já que atualmente não se exige qualquer lastro — e o colocam em circulação. Esse novo dinheiro passa a ser visto como poupança (é o mecanismo da poupança forçada ou artificial), um dos sete elementos da TACE a que já nos referimos no início deste artigo. Assim, a oferta de fundos para empréstimos (crédito) aumenta, mas sem que tenha havido qualquer aumento da poupança. Reagindo ao incentivo de uma taxa de juros menor, os agentes (ação humana) passam a poupar menos e a consumir mais. O resultado não será sustentável, mas uma ausência de coordenação que, por algum tempo, fica encoberta pela injeção desses fundos adicionais de crédito. Os bancos centrais criaram um descompasso entre poupança e investimento!
A dinâmica desse ciclo, na linguagem de Mises, gera tanto investimentos excessivos (sobreinvestimentos) como também investimentos errôneos ou maus investimentos. Essas distorções são agravadas pelo sobreconsumo. O cabo de guerra que opõe consumidores a investidores leva a economia para além de suas possibilidades, o que é insustentável. A baixa taxa de juros favorece o investimento, mas as restrições cada vez maiores de recursos impedem que a economia atinja esse ponto. As tentativas dos bancos centrais de proverem cada vez maior liquidez só irão agravar os problemas que eles mesmos criaram, porque seus diretores nunca estudaram a TACE. Alguém aí pensou novamente em Bernanle?
7. Considerações finais
O Prof. Gottfried Haberler, referindo-se às injeções artificiais de crédito na economia, mostra sucintamente como essas emissões provocam falta de coordenação na economia:
… o período de produção é muito mais longo do que o período de circulação de dinheiro. O dinheiro recém-criado tende a chegar ao mercado para bens de consumo muito antes de os novos processos terem sido completados e já estarem produzindo bens prontos para o consumo [ver obra citada, pág. 57]
Em outras palavras, se um bem leva, por exemplo, oito meses para ser produzido e para ser posto à venda em uma loja de departamentos, a demanda por esse bem acontecerá antes desses oito meses. Isto é ausência de coordenação. Da mesma forma, não existirá coordenação se outro bem leva seis meses em produção até ser posto em uma prateleira de uma loja, mas a demanda por esse bem surgir depois desses seis meses. Na TACE, o elemento que coordena a demanda com a oferta é a taxa de juros. Por isso, quando os governos alteram artificialmente essa variável, a falta de coordenação será um fato líquido e certo. Haverá escassez imprevista ou formação de estoques indesejados.
Em suma, os sete elementos básicos da TACE e, muito especialmente, a Quarta Proposição de John Stuart Mill simplesmente demolem os argumentos keynesianos em prol de estímulos à demanda, não deixando pedra sobre pedra. Estímulos à demanda não aumentam o emprego de mão de obra e costumam mesmo agravar o problema.
O monetarismo, por sua vez, peca pela agregação, por negligenciar a Quarta Proposição de Mill e por também não trabalhar com uma teoria do capital, qualquer que viesse a ser esta. Por isso, o “remédio” receitado por Friedman para combater grandes recessões — injetar moeda maciçamente na economia — para os austríacos não é remédio, mas veneno, porque provoca ausência de coordenação entre poupança e investimento, vale dizer, entre oferta e demanda.
Podemos encerrar enunciando a Quarta Proposição, agora em uma linguagem austríaca: alterações na demanda por bens de consumo não são acompanhadas por mudanças proporcionais na demanda por mão-de-obra. Adicionalmente, uma queda na demanda por bens de consumo pode acontecer porque os indivíduos mostram-se mais dispostos a poupar, o que, sem dúvida, fortalecerá seu poder de compra no futuro. Mudanças na demanda por trabalho não são um simples espelho da demanda por consumo presente, mas refletem alterações nas preferências intertemporais.
Referências bibliográficas
Ebeling, Richard M. (ed), The Austrian Theory of the Trade Cycle and Other Essays, Ludwig von Mises Institute, Auburn, AL, 1996 (with an Introduction and Summary of Roger W. Garrison
Garrison, W. Roger, Time and Money: the Macroeconomics of Capital Structure
Hayek, Friedrich A., Money, Capital and Fluctuations: Early Essays, The University of Chicago Press, 1984
Iorio, Ubiratan J., Ação, Tempo e Conhecimento: a Escola Austríaca de Economia, Instituto Mises Brasil, 2011, 1ª Ed., cap. 7
Mises, Ludwig von, As Seis Lições, Instituto Mises Brasil/Instituto Liberal, S. Paulo, 7ª ed., 2009
Mises, Ludwig von, The Theory of Money and Credit, Liberty Fund, Indianapolis, s/data
Mises, Ludwig von, Human Action: a Treatise on Economics, Liberty Fund, Indianapolis, 2007
Mill, John S., The Principles of Political Economy, Book 1, Chapter 5, Section: Fundamentals propositions respecting capital
Rothbard, Murray N., A Grande Depressão Americana, Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2012, com Introdução de Paul Johson
Stephen Kresge (ed.), The Collected Works of F. A. Hayek, Part I, Good Money, Liberty Fund, Indianapolis, 1999