Reforma de cima para baixo: convertendo o rei
O problema até 1914 era comparativamente pequeno e a possível solução era então comparativamente fácil; e hoje como veremos, as questões são mais difíceis e a solução é muito mais complicada. Na metade do século XIX, tanto na Europa quanto nos Estados Unidos, não somente o grau de centralização política era muito menor do que é agora; a Guerra de Independência Sulista ainda não havia ocorrido, e nem a Alemanha ou a Itália existiam como estados unificados.
Mas especialmente, a era da democracia em massa mal havia se iniciado nesta época. Na Europa, após a derrota de Napoleão, os países ainda eram governados por reis e príncipes, e eleições e parlamentos desempenhavam papéis secundários e, além disso, eram restritas a números extremamente pequenos de grandes proprietários. Similarmente, nos Estados Unidos, o governo era gerido por pequenas elites aristocráticas, e o voto era restrito por rigorosos requerimentos de propriedade. Afinal, apenas aquelas pessoas que possuem algo a ser protegido deveriam gerir aquelas agências que desempenham a proteção.
Há 150 anos, ou mesmo há 100 anos, apenas as seguintes coisas eram essenciais para resolver o problema. Teria sido necessário apenas forçar o rei a declarar que dali em diante, todo cidadão seria livre para escolher seu próprio protetor, e jurar lealdade a qualquer governo que ele quisesse. Ou seja, o rei não mais presumiria ser o protetor de alguém, a menos que esta pessoa solicitasse a ele, e concordasse com o valor que o rei cobrasse por tal serviço.
O que teria acontecido neste caso? O que teria acontecido se, digamos, o imperador da Áustria tivesse feito tal declaração em 1900? Tentarei dar um cenário ou rascunho resumido do que eu acho que provavelmente teria acontecido nesta situação.
Primeiro, todo mundo, diante desta declaração, teria reassegurado seu direito irrestrito a autodefesa, e teria sido liberado para decidir se ele queria mais ou melhor proteção do que a proporcionada pela autodefesa, e se quisesse, onde e de quem adquirir esta proteção. A maioria das pessoas nesta situação indubitavelmente teria escolhido tirar proveito da divisão do trabalho, e contar, além da autodefesa, também com protetores especializados.
Segundo, na procura por protetores, praticamente todo mundo recorreria a pessoas ou agências que possuíssem, ou fossem capazes de adquirir, os meios de assegurar a tarefa de proteção — isto é, que tivessem elas próprias um interesse no território a ser protegido na forma de investimentos substanciais em propriedades — e que possuíssem uma estabelecida reputação de confiáveis, prudentes, honrosos e justos.
É seguro dizer que ninguém teria escolhido um parlamento eleito para desempenhar esta tarefa. Ao invés disso, quase todos teriam procurado ajuda em um ou mais destes três locais: ou o próprio rei, que neste ponto não é mais um monopolista; ou um nobre, magnata ou aristocrata regional ou local; ou mesmo uma companhia internacional de seguros em atuação.
Obviamente, o próprio rei iria satisfazer estes requerimentos que acabei de mencionar, e muitas pessoas o teriam escolhido voluntariamente como seu protetor. Ao mesmo tempo, porém, muitas pessoas também iriam apartar-se do rei; destas, uma grande parte provavelmente iria se voltar a vários nobres e magnatas regionais, que seriam neste momento a nobreza natural, ao invés de hereditária. E em uma escala territorial menor estes nobres locais teriam sido capazes de oferecer as mesmas vantagens como protetores que o próprio rei seria capaz de oferecer. E esta mudança para protetores regionais teria acarretado em uma descentralização significativa na organização e na estrutura da indústria de segurança. E esta descentralização teria sido apenas um reflexo dos interesses de proteção privados ou subjetivos, e estariam de acordo com eles — ou seja, a tendência de centralização que mencionei anteriormente também levou a uma centralização excessiva dos negócios de proteção.
Por último, praticamente todas as outras pessoas, especialmente nas cidades, teriam buscado proteção nas companhias de seguros comerciais, tipo as de seguro contra incêndios. Seguro e proteção de propriedade privada são obviamente assuntos intimamente ligados. Melhor proteção acarreta em menores compensações de seguro. E com seguradores entrando no mercado de proteção, rapidamente os contratos de proteção, ao invés de promessas indefinidas, teriam se tornado o produto padrão pelo qual a proteção seria ofertada.
Além disso, em virtude da natureza do seguro, a competição e a cooperação entre várias seguradoras protetoras promoveriam o desenvolvimento de regras universais de procedimento, evidência, resolução de conflito e arbitragem. Igualmente, promoveriam a homogeneização e heterogeneização simultâneas da população em diversas classes de indivíduos com diferentes grupos de risco relativos à proteção de suas propriedades, e correspondentemente, diferentes prêmios de seguro de proteção. Toda a distribuição sistemática e previsível de riqueza e rendimento entre os diferentes grupos dentro da população como existiam sob condições monopolísticas seria imediatamente eliminada. E isto logicamente promoveria a paz.
E o que é ainda mais importante, a natureza da proteção e da defesa teriam sido fundamentalmente alteradas. Sob condições monopolísticas, existe somente um protetor; sendo ele monárquico ou democrático não faz diferença neste ponto, um governo é invariavelmente concebido como um defensor e protetor de um território fixo e contínuo. Todavia, esta característica é resultado de um monopólio de proteção compulsório. Com a abolição de um monopólio, esta característica iria desaparecer imediatamente por ser extremamente anormal e até artificial. Poderia vir a existir uns poucos protetores locais que defendessem apenas um território contínuo. Mas também existiriam outros protetores, como o rei ou as agências de seguro, cujo território protegido consistisse de pedaços, partes e trechos remedados descontínuos. E as “fronteiras” de todo governo estariam num fluxo constante. Particularmente nas cidades, não seria mais incomum dois vizinhos terem agências de proteção diferentes, do que terem diferentes seguradoras contra incêndio.
Esta estrutura retalhada de proteção e defesa aprimora a proteção. A defesa monopolística contínua presume que os interesses em segurança de toda a população de determinado território sejam de certa forma homogêneos. Isto é, que todas as pessoas em um determinado território possuam o mesmo tipo de interesse em defesa. Porém, esta é uma suposição extremamente irrealista; na verdade é falsa. Na verdade, as necessidades de segurança das pessoas são altamente heterogêneas. As pessoas podem simplesmente possuir propriedades em um local, ou em diversos locais espalhados territorialmente, ou elas podem ser praticamente autossuficientes, ou apenas dependentes de poucas pessoas nos seus afazeres econômicos; ou, por outro lado, elas podem estar profundamente integradas no mercado e dependentes economicamente de milhares e milhares de pessoas espalhadas por enormes territórios.
A estrutura em retalhos da indústria de segurança iria apenas refletir esta realidade de necessidades extremamente diversificadas em segurança que existe em pessoas variadas. Igualmente, esta estrutura iria por sua vez estimular o desenvolvimento de um armamento de proteção correspondente. Ao invés de produzir e desenvolver armas e instrumentos de bombardeio em larga escala, instrumentos seriam desenvolvidos para a proteção de territórios de pequena escala sem danos colaterais.
Além disso, porque toda redistribuição de renda e de riqueza inter-regional seria eliminada em um sistema competitivo, a estrutura retalhada também iria oferecer as melhores garantias de paz inter-regional. A probabilidade e as extensões de conflitos inter-regionais seriam reduzidas se houvesse retalhos. E porque todo invasor estrangeiro, por assim dizer, iria quase que instantaneamente, mesmo se ele invadisse apenas um pequeno pedaço de terra, se deparar com a oposição e contra-ataques militares e econômicos vindos de várias agências de proteção independentes, da mesma forma, o perigo de invasões estrangeiras seria reduzido.
Indiretamente, já está claro ao menos parcialmente como e por que ficou muito mais difícil alcançar esta solução no decorrer dos últimos 150 anos. Deixe-me apontar algumas das mudanças fundamentais que ocorreram que tornaram todos esses problemas muito maiores. Primeiro, não é mais possível realizar as reformas de cima para baixo. Os liberais clássicos, durante a época das antigas monarquias, poderiam ter achado, e de fato frequentemente achavam, e poderiam ter realmente acreditado em simplesmente convencer o rei de seus pontos de vista, e pedido para ele abdicar de seu poder, e todo o resto estaria automaticamente resolvido.
Hoje em dia, o monopólio de proteção do estado é considerado público, ao invés de propriedade privada, e o poder do governo não está mais atrelado a nenhum indivíduo em particular, e sim a funções específicas, exercidas por indivíduos anônimos ou ocultos representados como membros de um governo democrático. Portanto, a estratégia de conversão de apenas um homem ou de poucos homens não mais se aplica. Não importa se alguns membros do alto escalão do governo sejam convencidos — o presidente e alguns senadores — porque, dentro das regras do governo democrático, nenhum indivíduo isolado possui o poder pessoal de abdicar do monopólio governamental de proteção. Os reis tinham esse poder; o presidente não.
O presidente pode somente renunciar, apenas para ser substituído por outra pessoa. Mas ele não pode dissolver o monopólio de proteção do governo, porque teoricamente o povo é o dono do governo, e não o próprio presidente. Então, sob o governo democrático, a abolição do monopólio governamental de justiça e proteção requereria ou que uma maioria do público e de seus representantes eleitos declarasse a abolição do monopólio de proteção governamental e correspondentemente de todos os impostos, ou de forma ainda mais restritiva, que literalmente ninguém fosse votar e o eleitorado fosse zero. Somente neste caso poderíamos dizer que o monopólio de proteção do governo foi efetivamente abolido. Mas essencialmente isso significaria que seria impossível algum dia nos livrarmos de uma perversão moral e econômica. Porque hoje em dia é um fato consumado que todo mundo, incluindo a turba, toma parte da política, e é inconcebível que a turba iria algum dia, em sua maioria ou mesmo plenamente, renunciar ou se abster de exercer seu direito de voto, que não é nada além de exercer a oportunidade de pilhar a propriedade alheia.
Além do mais, mesmo se assumíssemos contra todas as chances que isso possa ser alcançado, os problemas não acabariam. Porque outra verdade sociológica fundamental da era da democracia de massa igualitária moderna é a quase completa destruição das elites naturais. O rei poderia abdicar de seu monopólio e as necessidades de segurança do povo ainda teriam sido quase que automaticamente atendidas porque existia para a maioria o próprio rei, e também nobres locais e regionais e as principais personalidades do mundo dos negócios, uma elite natural, claramente visível, estabelecida e voluntariamente reconhecida e uma estrutura complexa de hierarquias, e ordens de classificação que as pessoas poderiam se voltar para satisfazer seus desejos de serem protegidas.