Os pós-escolásticos e Juan de Mariana, um austríaco politicamente incorreto

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Este artigo é uma continuação deste outro

 

4. O Cardeal Gaetano, Tommaso de Vio

A Escolástica tardia – o período dos pós-escolásticos – foi um produto do século XVI, o século que deu início à Reforma Protestante e à Contra Reforma Católica. Se o século XIII foi bem descrito como a idade de Ouro da filosofia escolástica, o século XVI foi a sua Era de Prata, a era de um renascimento brilhante do pensamento escolástico, antes de seu fim. Nos séculos XIV e XV surgiu o nominalismo e o enfraquecimento da ideia de uma lei racional, incluindo uma lei natural ética, descobertos pela razão do homem. Mas o século XVI assistiu a um tomismo renascente, liderado por um dos maiores homens da Igreja de sua época, Tommaso de Vio (1469 -1534), o Cardeal Gaetano (ou Caetano, em português).

Ele não foi apenas o filósofo tomista e teólogo eminente de sua época, pois também era um dominicano italiano que se tornou Geral da Ordem em 1508. Como cardeal da Igreja, foi o defensor favorito do Papa em debates com o fundador do protestantismo, Martinho Lutero. Em seu comentário sobre a Summa de São Tomás de Aquino, Caetano, é claro, endossou a visão escolástica de que o preço justo é o preço comum de mercado, refletindo a estimativa dos compradores e considerou que esse preço vai flutuar em decorrência de mudanças nas condições de oferta e demanda. Na tentativa de expurgar da economia escolástica qualquer vestígio da teoria da “estação da vida” de Langenstein, Caetano foi mais longe ao criticar Aquino por este ter denunciado a acumulação de riqueza além de certo nível como pecado de avareza. Pelo contrário, declarou Caetano, é legítimo que pessoas altamente capazes subam na escada social de uma forma que corresponda ao seu trabalho, sua inteligência, sua capacidade e suas realizações.

Em seu tratado abrangente sobre câmbio, “De Cambiis“, de 1499, Caetano fez uma defesa completa, firme, contundente e incondicional do mercado de divisas. Uma vez que o papel do comerciante é legítimo, então assim também deve ser o do banqueiro de câmbio, que simplesmente é quem se engaja numa certa espécie de transação mercantil. Além disso, o comércio moderno não poderia funcionar sem o mercado de câmbio e as cidades não poderiam existir sem comércio. Por isso, inferiu, é necessário e justo que o mercado de câmbio exista. Como em outros mercados, o preço de mercado habitual é o preço justo.

No curso de sua defesa do mercado de câmbio, Caetano começou a avançar o estado da arte na teoria monetária: mostrou incisivamente que a moeda é uma mercadoria, particularmente quando os agentes se deslocam de uma cidade para outra, e, portanto, sujeita às leis de oferta e demanda que regem os preços dascommodities. Neste ponto, Caetano fez um grande avanço na teoria monetária, em particular, e na própria teoria econômica em geral, ao ressaltar que o valor do dinheiro não depende apenas da demanda existente e das condições de oferta, mas também da expectativa atual do estado futuro do mercado. Expectativas de guerras e fome e de futuras mudanças na oferta de dinheiro – mostrou – afetam o seu valor atual. Assim, o Cardeal Caetano, um príncipe da Igreja do século XVI, pode ser considerado o fundador da teoria das expectativas na economia. Antecipou Menger e Robert Lucas (da Escola de Expectativas Racionais) em 450 e 550 anos, respectivamente.

Adicionalmente, Caetano distinguia dois tipos de “valor da moeda”: o seu poder de compra em termos de bens, quando o ouro ou prata são “equiparados” com mercadorias compradas e vendidas, e o valor de uma moeda em termos de outra moeda no mercado de câmbio. Segundo ele, cada tipo de moeda tenderia a se deslocar para a região onde o seu valor é mais alto, e afastar-se da região onde o seu valor é mais baixo.

Quanto à polêmica questão da usura, embora Caetano não tenha sido tão radical como seu contemporâneo Summenhart em praticamente erradicar a proibição da usura, ele se juntou a ele na defesa da doutrina da intenção implícita, e foi ainda mais radical em uma área onde Summenhart tinha recuado: lucrum cessans (lucros cessantes). A “intenção implícita” significa que se alguém realmente acredita que seu contrato não é um empréstimo, então não é um usurário, embora possa ser um empréstimo na prática. Isto, obviamente, abriu o caminho para a eliminação prática da proibição da usura. Além disso, Caetano também se juntou a seus colegas liberais ao aprovar o contrato de investimento garantido. Mas seu grande avanço no campo da usura foi sua reivindicação de lucrum cessans. Empunhando a poderosa autoridade de ser o maior tomista desde o próprio “Boi Mudo” (que era como os colegas chamavam Tomás de Aquino, devido a ser corpulento e a manter-se quase sempre calado), Caetano ofereceu uma crítica minuciosa em que rejeita seu mestre. Ele, então, justifica, na verdade, não apenas os lucros cessantes, mas quaisquer empréstimos.

Dessa forma, um credor pode cobrar juros sobre qualquer empréstimo como forma de pagamento de lucros perdidos em outros investimentos, desde que o empréstimo seja para um homem de negócios. Essa divisão entre empréstimos para empresários e para consumidores foi feita pela primeira vez como um meio de justificar todos os empréstimos comerciais. A lógica era que o dinheiro retinha seu valor mais alto nas mãos dos homens de negócios em relação aos tomadores de empréstimos para consumo. Assim, pela primeira vez na era cristã, o Cardeal Caetano justificou o ato de emprestar dinheiro como um negócio, desde que os empréstimos fossem feitos a empresas. Antes dele, todos os escritores, mesmo os mais liberais, como Conrad Summenhart, justificavam a cobrança de juros apenas quando fundada em lucros cessantes e somente para empréstimos de caridade ad hoc. Agora, o grande Caetano estava justificando o negócio em si de emprestar dinheiro a juros.

Com Caetano, o caminho para o movimento dos escolásticos tardios estava aberto. Restava, agora, calçá-lo.

5. As ideias do grande Juan de Mariana: “austríaco”, “politicamente incorreto” e “polêmico”

E quem mais contribuiu para essa tarefa, embora não fosse o único a fazê-lo, foi Juan de Mariana, nascido em 1536 na pequena cidade de Talavera, na diocese de Toledo. De acordo com John Laures, um padre jesuíta que publicou em 1928 o interessante livro The Political Economy of Juan de Mariana (Fordham University Press, New York),

Tudo o que sabemos sobre suas origens é que ele nasceu no ano de 1536, como o filho de pais pobres e simples. Mesmo este fato é apenas relativamente certo. Na idade de dezessete anos Mariana era um estudante na famosa Universidade de Alcalá, e em 1º de Janeiro de 1554 ele foi recebido na Sociedade de Jesus, [recentemente fundada por São Francisco Xavier, um ex-soldado espanhol que fora ferido em uma das pernas em combate e que se convertera ao Cristianismo]. Ele completou o noviciado em Simancas, em parte sob a direção de Francisco Borgia, o Duque de Gandia aposentado, que um dia seria o Geral da Ordem dos Jesuítas.

Prossegue Laures relatando que no início de 1561 o jovem Juan foi chamado para o recém-construído Colégio Romano, para ensinar Filosofia e Teologia. Um de seus alunos foi Robert Belarmino, destinado a ser um grande polemista e, posteriormente, um cardeal. Depois de quatro anos de ensino, o jovem professor foi enviado à Sicília para ensinar Teologia e introduzir um novo plano de estudos na faculdade lá estabelecida por sua Ordem. Enquanto isso, ganhou reputação como teólogo e em  1569 foi chamado para lecionar na Sorbonne, em Paris, na época a mais famosa universidade do mundo. No entanto, sua precária saúde obrigou-o a deixar Paris quatro anos depois e voltar ao seu país natal, onde viveu durante o resto de sua longa vida, em Toledo.

Mesmo tendo se retirado do mundo, Mariana exerceu forte influência sobre a história contemporânea de Espanha e, até certo ponto, mundial. Sua reputação como teólogo e seu vasto conhecimento em quase todos os campos de aprendizagem deram-lhe um prestígio verdadeiramente extraordinário. Era frequentemente procurado por comerciantes e por autoridades temporais e eclesiásticas em busca de conselhos. Questões importantes esperavam por sua aprovação e eram realizadas sob a sua direção e seus conselhos. Seu lazer deu-lhe tempo para aprofundar e ampliar seus conhecimentos e desenvolver uma atividade literária bastante frutífera.

A segunda obra mais conhecida de Mariana, De Rege et Regis Institutione, surgiu em 1599 em Toledo, tendo sido elaborada por sugestão do tutor dos príncipes reais e publicada sob o patrocínio de Filipe II. É neste livro que Mariana discute a questão de saber se é lícito depor e até mesmo matar um monarca que se comporte como um tirano, uma pergunta à qual ele responde afirmativamente, como se verá mais pormenorizadamente adiante.

No ano de 1610 estourou uma tempestade de indignação contra o livro e contra a Companhia de Jesus em geral. Henrique IV foi assassinado por François Ravaillac (1577-1610) e os inimigos da Sociedade acusaram os jesuítas de serem os supostos autores do crime. Ravaillac foi questionado sobre se ele havia sido induzido a cometer o regicídio pelo livro de Mariana sobre a realeza, mas ele negou até mesmo qualquer familiaridade com ele. No entanto, muitos ainda sustentavam que a doutrina jesuíta teria sido responsável pelo atentado e De Rege foi queimado em público por um carrasco. Desde então, as ideias de Mariana sobre tiranicídio têm sido imputadas a toda a Companhia de Jesus, apesar de nenhum outro jesuíta, seja em seu tempo ou mais tarde, ter aderido a essa doutrina perigosa. O Geral da Ordem, Cláudio Aquaviva, enfaticamente protestou contra o livro, proibindo todos os seus subordinados, de todos os tempos, a ensinar aquela doutrina.

As autoridades francesas pressionaram o rei da Espanha para tirar o livro de circulação, mas não obtiveram êxito e a obra continuou muito popular. Hoje se pode dizer que, embora o autor de De Rege estivesse muito equivocado em alguns aspectos, mesmo para os hábitos culturais da época, sua obra, dentre todos os tratados sobre a realeza, é uma das publicações mais marcantes do século XVI.

Ainda segundo o Padre Laures, De Rege trata não só da Filosofia Política e da arte de governo, mas apresenta muitas ideias econômicas. Outro tratado econômico de Mariana foi De Ponderibus et Mensuris, publicado pela primeira vez em 1599 e que em edições posteriores apareceu juntamente com De Rege em um único volume. É uma discussão histórica de várias moedas: grega, romana, hebraica e espanhola. Um tratado estritamente econômico, De monetae Mutatione, apareceu em Colônia em 1609, como o quarto número do Tractatus VII. Ele foi escrito como uma crítica à adulteração da cunhagem de cobre espanhol por Felipe III. Naquele panfleto Mariana critica severamente o rei e os seus conselheiros, por roubarem as pessoas e perturbarem o equilíbrio do comércio. Ele também desenvolve com rigor naquela obra os princípios científicos da moeda e comprova suas afirmações acerca da história espanhola.

Assim que este pequeno livro apareceu, denunciaram Mariana ao rei pelo crime de lesa-majestade e também imputaram a ele erros em questões de fé.  Imediatamente após o aparecimento do Tractatus VII, o rei ordenou aos seus oficiais e embaixadores que comprassem todos os exemplares do livro que pudessem e seu pedido foi prontamente atendido. Pouquíssimos exemplares escaparam de suas mãos, e em tudo o que puderam achar encontraram cortes nas páginas 189-221, ou seja, o tratado De Monetae Mutatione.

Após a morte de Mariana o Tractatus VII foi, aliás, expurgado pela Inquisição espanhola. Muitas frases foram excluídas e colunas inteiras e páginas cobertas com tinta. Todas as cópias não expurgadas foram colocadas noIndex Librorum Prohibitorum et Expurgandorum espanhol, e a maioria dos exemplares sobreviventes foram expurgados por decretos de 1632 e 1640. Como resultado, poucos exemplares completos do Tractatus VIIsobreviveram.

Mariana, como historiador, afirmou que a sociedade primitiva foi formada por consentimento mútuo. Alguns o criticaram, afirmando que todos os grandes impérios resultaram de conquistas e violência. Ele não nega o fato de que alguns estados passaram a existir desta forma, porém afirma que a maioria surgiu por mútuo consentimento e que estenderam suas fronteiras por guerras que considerava justas. Acreditava firmemente que os impérios baseados em violência e injustiça nunca podem tornar-se legítimos, mesmo através de legislações posteriores. Esta é a síntese da teoria da origem e do fim do estado de Mariana, que se mostra, por assim dizer, contraditória.

Tal como seu colega jesuíta Francisco Suarez, ele justifica a necessidade de existência do estado pela impossibilidade do indivíduo e da família de suprir todas as necessidades da vida. Seus argumentos são: (1) a sociedade política é necessária porque nenhuma família é autossuficiente; (2) se existiam divisões entre as várias famílias, não poderia haver paz e, portanto, elas deveriam ser unidas em uma sociedade. E desde que o homem precisa de uma sociedade política, ele também precisa de um poder político, pois uma sociedade sem tal poder não poderia realizar o seu fim.

Para Mariana, a sabedoria divina permite que o homem, apesar de fraco por natureza e exposto aos seus próprios recursos, possa tornar-se forte se estiver unido com os demais em uma sociedade. A partir disso é que Mariana considera a sociedade política necessária para a natureza humana. Tão logo o homem formou um corpo político, Deus concedeu-lhe o que era necessário para a vida em sociedade, ou seja, o poder político. Este poder, então, não é uma criação do homem ou algo que existia desde o princípio, mas algo acrescentado por Deus à natureza humana imperfeita e, logo, era necessário, a partir do momento em que os homens fizeram as suas mentes funcionarem para formar uma sociedade política.

Mariana foi um ardoroso oponente da crescente onda de absolutismo na Europa e da doutrina do rei James I da Inglaterra, em que os reis governam de maneira absoluta por direito divino. Ele converteu a doutrina escolástica da tirania de um conceito abstrato em uma arma para ferir monarcas reais do passado, denunciando como tiranos antigos governantes tais como Ciro, o Grande, Alexandre o Grande e Júlio César, que adquiriram seu poder pela injustiça e roubo. Os escolásticos anteriores, incluindo Suarez, acreditavam que as pessoas pudessem ratificar tal usurpação injusta por seu consentimento após o fato, e, assim, tornar o seu próprio domínio legítimo. Mas Mariana não aceitava esse consentimento das pessoas. Era um defensor das liberdades individuais. Em contraste com outros escolásticos, que colocaram a “propriedade” do poder no rei, ele ressaltou que as pessoas têm o direito de recuperar seu poder político sempre que o rei abusar dele.

Na verdade, Mariana acreditava que, na transferência de seu poder político do estado de natureza original para um rei, o povo necessariamente deveria reservar direitos importantes para si: além do direito de reclamar a soberania, também poderes vitais como a tributação, o direito de veto a leis, bem como o direito de determinar a sucessão se o rei não tiver herdeiro. Portanto, Mariana, ao invés de Suarez, é que deve ser considerado um antecessor da teoria do consentimento popular e da superioridade do povo frente ao governo de John Locke. E também antecipou Locke, ao considerar que os homens deixam o estado de natureza para formar governos, a fim de preservar os seus direitos de propriedade privada. Mariana também foi muito além de Suarez ao postular um estado de natureza — a sociedade —, anterior à instituição do governo, tese abraçada por muitos liberais do século XX.

Mas a característica mais interessante do “extremismo” da teoria política de Mariana era a sua inovação criativa na teoria escolástica do tiranicídio. Que um tirano podia ser justamente morto pelas pessoas havia sido doutrina padrão, mas Mariana a ampliou muito, em duas maneiras significativas. Primeiro, ele expandiu a definição de tirania: um tirano era qualquer governante que violasse as leis da religião, que impusesse impostos sem o consentimento do povo, ou que impedisse uma reunião de um parlamento democrático. Todos os outros escolásticos, em contrapartida, tinham considerado apenas a imposição injusta de impostos como regra de tirania. Adicionalmente, para Mariana qualquer cidadão podia justamente assassinar um tirano e podia fazê-lo por quaisquer meios necessários. Para ele, esse assassinato não exigiria nenhum tipo de decisão coletiva da parte de todo o povo. Porém, para ter certeza de sua decisão de assassinar algum tirano, os indivíduos não deveriam se envolver em tal propósito de ânimo leve, sem um prévio exame de consciência: primeiro, deveriam tentar reunir as pessoas para tomar essa decisão crucial, mas, se isso fosse impossível, ele deveria pelo menos consultar alguns “homens eruditos e graves”, a menos que o clamor do povo contra o tirano fosse tão cruamente manifesto que a consulta se tornasse desnecessária.

Ele foi mais longe — antecipando Locke e a Declaração da Independência — na justificação do direito de rebelião, afirmando que não nos precisamos preocupar com a perturbação da ordem pública causada pelo tiranicídio, pois esta é uma ação sempre perigosa e, portanto, muito poucos estão prontos para arriscar suas vidas dessa maneira. Pelo contrário — prosseguiu —, a maioria dos tiranos não morreu mortes violentas e os tiranicídios foram quase sempre saudados pelas populações como atos de heroísmo.

Um tirano — escreveu ele — necessariamente teme que aqueles a que aterroriza e mantém como escravos venham tentar derrubá-lo e, por isso, ele proíbe os cidadãos de se reunirem em assembleias e discutirem, tirando deles, por métodos de polícia secreta, a oportunidade de falar e de se queixar livremente.

Este “homem erudito e grave”, Juan de Mariana, não deixou nenhuma dúvida a respeito de sua opinião sobre o mais recente e famoso tiranicídio: o do rei francês Henrique III. Em 1588, Henrique III tinha sido preparado para nomear como seu sucessor Henrique de Navarra (que assumiria o trono como Henrique IV), um calvinista que estaria governando uma nação fortemente católica. Diante de uma rebelião de nobres católicos, liderados pelo duque de Guise, apoiado pelos cidadãos católicos devotos de Paris, Henrique III chamou o duque e seu irmão, o cardeal, para um pacto de paz em seu acampamento e assassinou os dois. No ano seguinte, a ponto de conquistar a cidade de Paris, Henrique III foi assassinado, por sua vez, por um jovem frade dominicano e membro da Liga Católica, Jacques Clement. Para Mariana, desta forma “o sangue foi expiado com sangue e o duque de Guise foi vingado com sangue real”. E o regicídio foi saudado pelo Papa Sisto V e pelos padres de Paris.

As autoridades francesas estavam compreensivelmente nervosas com as teorias de Mariana e seu livro De Rege. Finalmente, em 1610, Henrique IV (ex-Henrique de Navarra, que havia se convertido do calvinismo à fé católica, a fim de tornar-se rei da França), foi assassinado pelo católico François Ravaillac, que desprezava o egocentrismo religioso e o absolutismo estatal imposto pelo rei. Nesse ponto, a França entrou em erupção, em uma onda de indignação contra Mariana e o Parlamento de Paris — como escrevemos linhas atrás — fez um carrasco queimar De Rege publicamente.

Antes de ser executado, Ravaillac foi questionado quanto a se a leitura de Mariana o levara a assassinar o rei, mas ele negou, afirmando que jamais havia ouvido falar dele. A respeito do assassinato de Henrique IV e daexecução de Ravaillac, assim se expressa a Wikipedia:

Em 14 de maio de 1610, Ravaillac rouba uma faca de um albergue. Esconde-se na Rua de la Ferronnerie, em Paris (no atual Quartier des Halles ; as armas de Henrique IV, esculpidas no chão, indicam hoje o local exato do regicídio). Aí espera pela passagem da carruagem real, já que o rei havia decidido dirigir-se ao Arsenal para visitar seu ministro Sully que estava enfermo.

Às quatro horas da tarde, o rei chega. De repente, o cortejo fica bloqueado devido a um congestionamento: Ravaillac aproveita a chance e atira-se sobre o rei. Dá-lhe dois golpes de faca : o primeiro desliza entre duas costelas, o outro atinge a carótida direita.

Ravaillac refugia-se em seguida em um porão na Rua des Lombards, bem próxima do local do atentado, mas é rapidamente encontrado e subjugado. É levado ao Hôtel de Retz para evitar um linchamento e conduzido à Conciergerie.

Tortura e execução: Antes do interrogatório, Ravaillac é preso à roda. A roda é girada e Ravaillac agredido. Suas pernas são esmagadas para fazê-lo falar e são feitos cortes em seu torso, braços e costas. Uma mistura de chumbo derretido, óleo, vinagre e sal foi derramada sobre seu corpo para fechar as feridas. Colocaram-lhe a seguir um culote úmido e o aproximaram do fogo. O culote encolhe, para fazer com que os ossos das pernas, já quebrados, movam-se; toda sua pele é retirada e ele é queimado vivo. Na verdade, Ravaillac ainda permaneceu vivo e nunca confessou seu crime. Foi, a seguir, esquartejado por quatro cavalos.

Seus parentes foram condenados ao exílio e um édito foi promulgado proibindo a qualquer pessoa do reino de se chamar Ravaillac.

Este assassinato desencadeou uma enorme polêmica. Por um lado, levantou-se a suspeita de que os jesuítas teriam incitado Ravaillac ao regicídio. Por outro lado, este ato teria sido inspirado por uma conspiração de que teriam participado Maria de Médicis (esposa do rei), Henriqueta d’Entrages (Marquesa de Verneuil) e o Duque d’Epernon; teriam agido em nome da Espanha.

Enquanto o rei da Espanha se recusou a atender aos apelos franceses para suprimir o trabalho “subversivo” de Mariana, o Geral da Ordem dos Jesuítas emitiu um decreto proibindo os membros da Cia. de Jesus de ensinar que é lícito matar tiranos. Este estratagema, no entanto, não impediu a eclosão na França de uma campanha bem sucedida contra a Ordem Jesuíta, bem como a sua perda de influência política e teológica.

Juan de Mariana foi um pensador fascinante sob todos os aspectos – sua Teologia, Filosofia Política e Economia Política têm bastante claras as marcas registradas de seu temperamento, um jesuíta ascético e que amava a sua Espanha, um homem absolutamente sem medo e que não mostrava qualquer constrangimento em nadar contra a corrente. Se vivesse nos nossos dias, certamente seria taxado de “politicamente incorreto” e de “polêmico”. Mas foi, antes de qualquer outro adjetivo, um homem corajoso. Vale a pena conhecermos um pouco mais a seu respeito e de seu pensamento.

Embora enfatizasse a importância da agricultura, ele estava ciente de que ela não é o único fator importante para o bem-estar nacional. O comércio e as trocas voluntárias também são absolutamente necessários para a prosperidade de um país. É verdade que é um pouco crítico quando o comércio é voltado excessivamente para a mera questão do lucro, o que mostra que ele é um teólogo e moralista. O objetivo do comércio, para Mariana, é efetuar um equilíbrio entre as necessidades e os produtos excedentes dos países, de modo que cada um terá o que necessitar. A função importante do comércio, então, é fornecer abundância para todos os países.

Deve, portanto, ser incentivado em todos os sentidos e nada deve interferir nele. Isto é tanto mais verdadeiro porque o comércio é um processo mais delicado e é o mais afetado pela menor perturbação. É – como observou – como o leite, que é estragado pela menor brisa.

Altas tarifas são, acima de tudo, prejudiciais ao comércio exterior, pois seu fardo é deslocado para o comprador, com um consequente aumento nos preços. Logo, as tarifas sobre as necessidades da vida devem ser moderadas, de modo a incentivar e facilitar as importações do exterior. Mariana se opõe, assim, às altas receitas de tarifas, pelo menos na medida em que estão em causa necessidades importantes. Os comerciantes devem aproveitar a proteção especial da lei, porque é necessária para o bem-estar do estado.

A adulteração da moeda é outro grande inconveniente, tanto para o comércio interno quanto para o externo. Estrangeiros serão desencorajados a trazer seus produtos para a Espanha, se não receberem nada em troca, a não ser moeda fraca. Rebaixar o teor de metal na cunhagem resultará em preços mais elevados. Se o rei tentar fixar um preço menor ninguém irá vender e surgirá uma perturbação geral do comércio.

Assim, Mariana, embora não sendo um defensor ardoroso do livre comércio, foi um precursor, que percebeu que altas tarifas são uma forma nefanda de enriquecer um país em detrimento dos estrangeiros. Se nosso autor defendeu um imposto alto sobre bens de luxo isto foi principalmente pela razão de que eles destroem a boa e velha simplicidade que deve reger a vida (lembremos que Mariana era um asceta).

Encontramos ainda outra ideia moderna e também cabível na discussão de nosso autor sobre comércio. A descoberta da América e do caminho marítimo para as Índias Orientais tinha trazido um enorme aumento no comércio internacional. Mercadorias passaram a ser trocadas entre os países mais distantes e parecia que as distâncias tinham desaparecido. Esta relação comercial crescente aparece para Mariana como um símbolo de crescente caridade e um meio de unir as diversas nações do mundo.

É como um moralista que ele concorda com os outros escolásticos que um “preço justo” deve servir de base nas transações comerciais. Este preço foi fixado em tempos medievais pelo governo e foi considerado por ele errado exigir mais do que o montante legalmente fixado. Mariana vê, no entanto, que, na prática, nem sempre é possível determinar os preços de forma satisfatória e que se não estão de acordo com a estimativa popular comum (ou seja, com o mercado), eles não podem ser impostos. Para ser justo um preço não deve ser fixado uma vez e para sempre, deve levar em conta várias condições que mudam com a demanda e a oferta dos artigos em questão. Os preços devem, portanto, serem revistos de tempos em tempos.

Mariana comprova sua afirmação a partir da história da Espanha. Toda vez que os reis espanhóis adulteraram a cunhagem, seguiu-se um aumento geral dos preços, e toda interferência do governo para solucionar o problema provou ser inútil. Mariana também afirma que é praticamente impossível fixar preços para tudo. Aqui, então, vemos que o nosso autor aplica o princípio econômico muito importante de que os preços regulam-se de acordo com a demanda e oferta de bens e da quantidade de dinheiro em circulação. Se a moeda é genuína (metal de bom teor) e escassa, os preços vão diminuir e se ela for adulterada e abundante os preços vão necessariamente subir. Esta é uma aplicação da Teoria Quantitativa da Moeda, que é o princípio fundamental de Irving Fisher para estabilizar a unidade monetária, bem como, naturalmente, uma premonição do que os austríacos nos ensinaram sobre a inflação e a deflação.

Como ressalta Rothbard, Juan de Mariana possuía uma das personalidades mais fascinantes da história do pensamento político e econômico. Honesto, valente e destemido, Mariana esteve em polêmicas durante quase toda a sua longa vida, até mesmo por seus escritos econômicos.

Voltando sua atenção para a teoria e prática monetária, Mariana, em seu breve tratado De Monetae Mutatione(Sobre a Alteração da Moeda, de 1609) denunciou seu soberano, Felipe III, por roubar as pessoas e prejudicar o comércio através da degradação da cunhagem de cobre. Ele ressaltou que esta degradação também causou inflação crônica na Espanha, aumentando a quantidade de dinheiro no país. Felipe tinha dizimado sua dívida pública por rebaixar suas moedas de cobre em dois terços, triplicando assim a oferta de moeda de cobre. Mariana notou que o aviltamento do metal e a interferência do governo no mercado só poderiam causar graves problemas econômicos.

Só um tolo, segundo ele, tentaria separar esses valores de tal forma que o preço legal devesse ser diferente do natural. O mau governante – ponderou – ordena que uma coisa cujo valor é cinco deve ser vendida por dez. Os homens são guiados nesta matéria pela estimativa comum fundada em considerações sobre a qualidade das coisas e de sua abundância ou escassez. Seria vão para um príncipe procurar minar esses princípios de comércio. É melhor deixá-los intactos, sustentava, ao invés de agredi-los pela força em detrimento do bem comum.

Mas nosso personagem meteu-se em real enrascada, em dois sentidos: porque a questão era grave e porque a referida questão era contra o próprio rei! Mariana começa De Monetae com a sinceridade que lhe era característica escrevendo ter ciência de que sua crítica ao rei lhe traria grande impopularidade, mas completa afirmando que o povo está “gemendo” sob as agruras resultantes da degradação monetária e que ainda ninguém teve a coragem de criticar a ação do rei publicamente. Assim, a justiça requer que pelo menos um homem deve expressar a queixa comum do público. Quando uma combinação de medo e suborno conspira para silenciar os críticos, deve haver pelo menos um homem no país que sabe a verdade e tem a coragem de mostrá-la a todos. Mariana então começa a demonstrar que a degradação monetária é um imposto oculto muito pesado, uma senhoriagem, sobre a propriedade privada de seus súditos, e que nenhum rei tem o direito de cobrar impostos sem o consentimento do povo. Uma vez que o poder político se originou do povo, o rei não tem direitos sobre a propriedade privada de seus súditos, nem pode apropriar-se de sua riqueza por puro capricho e vontade. Mariana defende a bula papal Coena Domini, que havia decretado a excomunhão de qualquer governante que impusesse novos impostos.

Para ele, a qualquer rei que pratica aviltamento monetário deve se aplicar a mesma punição, como no caso de qualquer monopólio legal imposto pelo estado sem o consentimento do povo. Sob tais monopólios, o próprio estado, ou seu beneficiário, pode vender um produto para o público a um preço superior ao seu valor de mercado e isso é certamente uma taxação! Ele relata historicamente a degradação da moeda e seus efeitos infelizes e ressalta que os governos devem manter todos os padrões de peso e medida, não só de dinheiro, e que seu ato de adulterar esses padrões é vergonhoso. Castela, por exemplo, tinha mudado suas medidas de azeite e vinho, a fim de cobrar um imposto oculto, e isso levou a uma grande confusão e agitação popular. O livro de Mariana, ao atacar a degradação do rei, levou o monarca a mandar o já idoso padre, então com 73 anos, para a prisão, pelo grave crime de lesa-majestade. Os juízes condenaram Mariana por crime contra o rei, mas o Papa recusou-se a puni-lo e Mariana foi finalmente solto depois de quatro meses, com a condição de que iria cortar as passagens ofensivas de seu livro e de que seria mais cuidadoso no futuro.

Mas o rei, bem conhecendo o padre e, portanto, sabendo que este ficaria apenas com as promessas, ordenou a seus funcionários que comprassem todas as cópias publicadas de De Monetae Mutatione e as destruíssem. Não só isso, depois da morte de Mariana, a Inquisição espanhola, como relatamos anteriormente, expurgou as cópias restantes, excluindo muitas frases e manchando páginas inteiras de tinta. Todas as cópias não expurgadas foram colocadas no Índice da Inquisição espanhola, e estas, por sua vez, foram destruídas durante o século XVII. Como resultado desta campanha selvagem de censura, a existência do texto latino deste importante livro permaneceu desconhecida durante 250 anos, e ele só foi redescoberto porque o texto em espanhol foi incorporado a uma coleção de ensaios clássicos espanhóis do século XIX. Por isso, poucas cópias completas do livreto sobreviveram, das quais a única disponível nos Estados Unidos, segundo Rothbard, está na Biblioteca Pública de Boston.

Mas Mariana aparentemente não estava com problemas suficientes para acalmar seu temperamento: depois que ele foi preso pelo rei, as autoridades, ao apreenderem suas notas e papéis, acharam um manuscrito atacando os poderes que regem a Companhia de Jesus. Um individualista sem medo de pensar por si mesmo, Mariana claramente não concordava com o fato de ser a Cia. de Jesus quase que um corpo militar, tal a disciplina imposta a seus membros. Neste livro, Discurso de las Enfermedades de fa Compania, criticou a Ordem Jesuíta, sua administração e sua formação de noviços e julgou que seus superiores na Ordem eram todos impróprios para a governarem. Acima de tudo, Mariana criticou a hierarquia de estilo militar, apontando que o Geral gozava de muito poder, enquanto os provinciais e outros jesuítas detinham quase nenhuma autonomia. Os jesuítas, afirmou, deveriam ter pelo menos uma voz na seleção de seus superiores imediatos.

Quando o Geral da Ordem Jesuíta, Cláudio Aquaviva, descobriu que cópias do trabalho de Mariana estavam circulando clandestinamente, tanto dentro como fora da ordem, ordenou a Mariana que pedisse desculpas pelo escândalo. O mal-humorado — porém repleto de sólidos princípios morais — Mariana, no entanto, recusou-se a fazê-lo e Aquaviva, talvez movido por prudência ou mesmo por receio de um escândalo mais grave, preferiu não agravar o problema. Mas assim que Mariana morreu, a legião de inimigos da Ordem dos Jesuítas publicou oDiscurso simultaneamente em francês, latim e italiano. Como no caso de todas as organizações burocráticas, os jesuítas, desde então, ficaram mais preocupados com o escândalo e com não lavar roupa suja em público do que em promover a liberdade de investigação, a autocrítica, ou corrigir quaisquer defeitos reais que Mariana pudesse ter descoberto. Mas a Ordem nunca expulsou o seu membro eminente e este nunca a deixou. Ainda assim, ele foi durante toda a sua vida considerado como um criador de problemas, mal-humorado e sempre rebelde em não querer se curvar a ordens ou pressões de seus pares.

O Padre Antonio Astrain, na sua história da Ordem dos Jesuítas, observa que “acima de tudo, devemos ter em mente que o personagem dele [Mariana] foi muito áspero e não mortificado”. Pessoalmente, de forma semelhante aos santos italianos franciscanos São Bernardino de Sena e Santo Antonino de Florença, do século XV, Mariana foi uma figura ascética e austera. Nunca frequentou o teatro e afirmou que padres e monges nunca deveriam prejudicar seu caráter sagrado, ouvindo e vendo atores. Ele também denunciou o esporte popular espanhol das touradas, o que diminuiu bastante sua popularidade. Melancolicamente, Mariana costumava enfatizar que a vida era curta, precária e cheia de aflição. No entanto, apesar de sua austeridade, possuía uma sagacidade impressionante. Assim, é famosa uma frase sua sobre o casamento: “Alguém habilmente disse que o primeiro e o último dia do casamento são desejáveis, mas que o resto é terrível”. Outra opinião sua parecia antecipar o que Mises, no século XX, declarou a respeito dos economistas: “não há nada tão absurdo que não seja defendido por alguns teólogos”.

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