O que eu quero fazer neste seminário é reconstruir a história mundial de baixo para cima, do início da humanidade até o presente, e gradualmente ampliar e expandir o quadro. Vou dar-lhes uma breve visão geral do que planejei, mas deixe-me dizer desde o início que nunca dei essas palestras dessa forma antes. Apresentei alguns desses tópicos em várias palestras e, em minha aula sobre sistemas comparativos, falo sobre assuntos semelhantes aos que tratarei neste seminário. Mas nunca antes apresentei palestras estruturadas dessa maneira.
Para lhes dar uma ideia básica de como tudo isso está estruturado, na primeira aula quero falar sobre a natureza do homem, comparando homens com animais e iluminando as principais diferenças, e caracterizando o que se pode chamar de condição humana, a condição na qual a humanidade se encontra. Na segunda palestra, falarei sobre a disseminação do homem pelo globo e o desenvolvimento, ou seja, a extensificação e a intensificação da divisão do trabalho. E a terceira aula trata do próximo elemento do desenvolvimento humano e econômico, isto é, o desenvolvimento do dinheiro e a expansão do uso do dinheiro e as consequências que o dinheiro tem para o desenvolvimento da divisão do trabalho. O próximo elemento fundamental, a quarta palestra, será a teoria da preferência temporal, do capital e da tecnologia e do crescimento econômico.
Todas as palestras, aliás, conterão tanto elementos teóricos como históricos. Não sou historiador de profissão. Minha vantagem é que conheço mais teoria do que a maioria dos historiadores e, por causa disso, reconstruo a história de uma maneira ligeiramente diferente da que um historiador faria.
A quinta palestra tratará dos fatores ideológicos que influenciam o desenvolvimento social e econômico, ou seja, em particular, a religião; esta será uma palestra sobre religiões comparadas e ideologias comparadas. A sexta palestra tratará de detalhes da teoria da propriedade privada e da questão de como as sociedades defenderiam a propriedade, ou seja, os direitos de propriedade, com referência especial às sociedades feudais e quais mecanismos de defesa seriam usados nas sociedades modernas, para onde podemos levar algumas ideias desde a idade feudal. Na palestra sete, lidaremos com o comportamento parasitário, ou seja, o comportamento explorador e a origem do estado. E a oitava palestra será baseada em algo que fiz em meu livro Democracia – o deus que falhou, discutindo a transição de estados monárquicos ou governos monárquicos para governos democráticos. A nona palestra vai lidar com estados, imperialismo e guerra. E a palestra final tratará de algumas questões estratégicas; ou seja, como passamos daqui para uma sociedade que é livre, ou pelo menos mais livre do que a atual.
Então, com isso, deixe-me começar a falar sobre a natureza do homem e a condição humana e falar em particular sobre três elementos que são exclusivos da humanidade. O primeiro é a linguagem, o segundo é a propriedade e o terceiro é a produção ou tecnologia. Agora, você percebe que quando começamos tudo isso aqui, já estamos conversando. Já estamos usando algumas de nossas capacidades, algumas de nossas habilidades e conquistas que são o resultado da evolução humana; ou seja, a reconstrução que irei oferecer da história humana já faz uso de algumas das ferramentas que só evoluíram gradualmente no decorrer do tempo. Na verdade, a origem da linguagem remonta aproximadamente a algo entre 150.000 e 50.000 anos atrás. Todas essas estimativas são, é claro, como você pode imaginar, um tanto vagas; ninguém estava por perto naquela época para registrar exatamente quando eles começaram a falar. Mas esses são os números que alguns geneticistas, biólogos e antropólogos nos fornecem para começar. E você notará outra coisa, pelo fato de que começamos todo esse empreendimento conversando uns com os outros, que os humanos são animais sociais.
Você está ciente do fato de que há pessoas interessadas na teoria dos jogos, por exemplo, que parecem ter dificuldade em explicar por que as pessoas cooperam e não lutam entre si o tempo todo. Mas o engraçado é que esse debate já se dá por meio da linguagem, que, de certa forma, desde o início, explica que deve haver algo de errado com essa ideia de que os homens em algum momento estavam, por assim dizer, decidindo se deveria lutar uns contra os outros ou se não deveria lutar uns contra os outros. Obviamente, assim que a humanidade começou a falar entre si, os homens já deveriam ter reconhecido que existem certas vantagens em fazer isso e serem sociais em seus empreendimentos. E é perfeitamente claro desde o início qual é a grande vantagem de ter uma linguagem disponível e nos comunicarmos com outras pessoas, já que podemos transmitir conhecimento a outras pessoas de uma forma muito mais rápida do que seria possível se simplesmente tivéssemos que olhar para o que as outras pessoas estão fazendo e, em seguida, tentam reconstruir as ideias que estão por trás do que estão fazendo. Por meio da linguagem, temos a possibilidade de comunicar diretamente o que nos levou a fazer isso ou a fazer outra coisa.
Agora, com a linguagem, duas ideias surgiram e eu uso aqui as ideias que foram desenvolvidas primeiro por um psicólogo austríaco, Karl Bühler, que também teve alguma influência sobre Karl Popper, que usa suas ideias. Karl Bühler afirma que, quando olhamos para a linguagem, podemos distinguir entre quatro funções diferentes, duas das quais já encontramos no nível animal e duas das quais são exclusivas dos humanos. No nível animal, encontramos o uso de símbolos ou sons que expressam algo como a dor, por exemplo. Essa é uma função expressiva da linguagem, que podemos atribuir facilmente também aos animais e dizer, nesse sentido, que eles podem expressar alguns sentimentos internos. Por outro lado, a linguagem às vezes tem uma função sinalizadora; ou seja, podemos produzir sons que indicam que há algum perigo chegando, avisar outros animais para fugir ou algo assim. E isso, é claro, também é possível para os humanos fazerem. A linguagem tem uma função expressiva para nós e também tem essa função de sinal, de conscientizar outras pessoas das coisas.
O que não se encontra no reino animal é a linguagem que tem função descritiva; isto é, linguagem que descreve “isto é tal e tal” e com a função descritiva da linguagem, pela primeira vez, surge a ideia da verdade. Ou seja, para expressões e sinais, se isso é verdade ou não, não é realmente um problema, mas quando dizemos, “isso é tal e tal”, então se torna possível perguntar: “É realmente esse o caso?” E podemos tentar descobrir se é esse o caso ou não. Assim, surge a ideia de ferramentas, porque a linguagem tem função descritiva e as proposições descritivas mais primitivas seriam do tipo “isto é tal e tal”; ou seja, ter um nome próprio ou uma expressão de identificação e, em seguida, um termo geral que caracteriza um objeto particular como tendo algumas características gerais.
A segunda função exclusivamente humana da linguagem é a função argumentativa, que temos declarações complexas conectadas por “e” e “ou”, várias declarações combinadas entre si, e que investigamos se certos argumentos são válidos ou não e investigamos se derivamos inferências da maneira correta ou incorreta e assim por diante. E você percebe que é precisamente esta última função, esta função argumentativa, que devemos usar também como ferramenta, se agora queremos fazer uma distinção mais precisa entre as habilidades do homem por um lado e as diferentes habilidades dos animais por outro.
E quero seguir aqui com o filósofo Brand Blanshard, que apontou algumas diferenças importantes entre os animais e os humanos. Quero começar com uma pequena citação de Blanshard em um livro, Reason and Analysis, onde ele diz isso sobre os animais e, em seguida, chega à conclusão de que, de alguma forma, isso ainda é muito diferente do que a humanidade pode fazer. Ele pergunta: “O que significa possuir razão humana ou racionalidade humana?” E ele responde: “Não pode ser consciência, é claro, porque ninguém pode duvidar sensatamente de que os animais sentem medo e fome e prazer e dor.” Os animais também podem cometer erros, que reconhecemos, como quando, por exemplo, um cachorro larga um osso por um osso mais convidativo que vê na água. E uma vez que apenas os julgamentos podem ser errados, os animais também devem, de alguma forma, ser capazes de fazer julgamentos para chegar à conclusão de que “eu fiz um julgamento errado”. E uma vez que julgamento é pensamento, também podemos dizer que os animais pensam, mas eles, obviamente, não pensam da mesma forma que os humanos.
Agora, qual é a diferença entre a nossa maneira de pensar e a maneira de pensar deles? Deixe-me enfatizar quatro pontos nesta conexão que parcialmente se sobrepõem. A primeira coisa a ser notada é que o pensamento animal está sempre ligado à percepção, enquanto o pensamento humano pode vagar, voltar ao passado, vagar para o futuro, pode pensar em objetos que estão distantes, pode até pensar em objetos que nunca existiram. Os animais não podem pensar dessa maneira. O que quer que estejam pensando, requer alguma pista presente, alguma observação da qual seu pensamento surge. Podemos imaginar, por exemplo, que os animais também podem pensar, em certa medida, sobre coisas que estão ausentes, como se um cachorro se sentasse na frente de uma casa porque o cão sabe que seu dono entrou na casa e o espera pacientemente até o mestre voltar. Mas mesmo aí você ainda pode ver que está ligado à percepção. Se ele não tivesse visto o dono entrar em casa, ele não faria o que ele faz, sentado lá esperando. E em qualquer caso, ele não pode pensar em coisas que estão longe, ou impossíveis, ou coisas em um futuro muito distante. Então, essa é a primeira coisa: o pensamento animal está ligado à percepção e o pensamento humano é, desta forma, liberado da percepção.
Isso me leva ao segundo ponto. Existe um outro fenômeno, o da diferença entre humanos e animais, que mostra que eles não podem fazer isso. Mesmo que você ache que eles possam pensar sobre esse tipo de coisa, eles não têm como transmitir esse tipo de informação para nós. Ou você pode dizer, os animais não podem abstrair da maneira que os humanos podem. Certamente, os animais podem ver formas e cores e podem perceber cheiros e coisas assim, mas não parece ser o caso de que eles tenham um conceito de formas, de triângulos, ou um conceito de verde ou azul ou amarelo, ou um conceito de diferentes tipos de cheiros. Novamente, este é um aspecto do que acabei de mencionar; está ligado a eventos específicos, mas eles não podem se abstrair do evento específico e construir um conceito geral. Se pudessem, esperaríamos que formassem uma palavra para essas coisas, e não é que os animais não sejam capazes de produzir sons. Muitos animais possuem sistemas para produzir sons. Então, isso não explica por que eles não têm palavras. Obviamente, apesar de poderem formar sons, não podem formar o que chamamos de palavras, sons aos quais atribuímos uma certa ideia abstrata da qual encontramos várias instâncias no mundo real.
A terceira coisa que distingue a humanidade dos animais é que os animais não podem fazer inferências explícitas. Novamente, isso tem algo a ver intimamente com os dois pontos que já mencionei. Os animais podem, é claro, fazer inferências, mas essas inferências estão implícitas. Ou seja, se você tem um frango e dá um pedaço de comida para o frango que é muito grande, não cabe no bico e ele fica desesperado por não conseguir comê-lo. Então, se você jogar outro pedaço de aproximadamente o mesmo tamanho na frente dele, o frango pode se recusar a tentar fazer o mesmo com o segundo pedaço de material porque reconhece que por não ter funcionado com o primeiro, é improvável que irá funcionar com o segundo. Mas, novamente, devido à falta de conceitos, eles não podem fazer inferências explícitas; ou seja, inferir de um conceito para outro e, assim, ser capaz de dizer por que isso e aquilo causou tal e tal problema e por que seria em vão tentar a mesma coisa duas vezes que já não funcionava no primeiro caso.
A diferença mais importante entre animais e humanos é o fato de que os animais não têm o que chamamos de autoconsciência. Eles têm consciência, mas não autoconsciência, e o que quero dizer com autoconsciência é que eles não podem recuar mentalmente e refletir sobre seu próprio comportamento. Eles não podem fazer uma pausa e criticar seu próprio comportamento, pensar sobre por que seu comportamento foi bem ou malsucedido. Eles não possuem nada como normas ou princípios pelos quais possam julgar e criticar seu próprio comportamento. Deixe-me citar novamente neste ponto Blanshard sobre a mais importante das diferenças, isto é, a capacidade humana de reflexão autoconsciente. Lá ele diz,
Finalmente, a razão humana acrescentou uma dimensão extra à consciência animal na forma de autoconsciência. Um animal carece do poder, que é a fonte em nós mesmos, de tantas realizações e de tantas desgraças, de se distanciar de si mesmo e contemplar o que está fazendo. Ele come, dorme e brinca, mas nunca para no meio de uma refeição, para notar que está comendo avidamente, nunca pergunta, não foi impróprio dormir horas a fio …[1]
Podemos ver, em alguns aspectos, é claro, que os humanos não se desenvolveram muito além disso.
… Aparentemente, nunca reflete, enquanto salta e corre, que está um pouco fora de forma hoje. Comete erros, mas, tendo cometido um, não pode sentar-se e considerar que princípio de pensamento correto foi violado. Porque não pode contemplar seu próprio comportamento, não pode criticar a si mesmo; estando abaixo do nível de autocrítica, não tem normas; e não tendo normas, carece de um grande e óbvio essencial para a vida da razão, a saber, o poder de ser guiado por princípios.[2]
E Blanshard então resume tudo o que tentei transmitir até este ponto, dizendo o seguinte:
Quando dizemos que o homem é um animal racional, então, parecemos sugerir que ele pode comandar ideias independentemente dos sentidos, independentemente da percepção, que pode abstrair; que ele pode inferir explicitamente e que pode julgar a si mesmo. O mais elevado dos animais não pode fazer nenhuma dessas coisas. O mais estúpido dos homens, se não um caso patológico, pode, em alguma medida, fazer todas elas.[3]
Muito da habilidade humana, a habilidade de linguagem humana, é caracterizada em particular por nossas habilidades de autorreflexão, autocrítica, autocontrole e assim por diante.
Podemos usar esses recursos agora para descrever a condição humana, que será meu próximo passo. E esta condição humana pode ser caracterizada da seguinte forma: o homem se encontra equipado com consciência, e descobre que temos um corpo físico, e descobre que existe algo fora do corpo físico, o que os economistas chamam de “terra”, ou seja, recursos dados pela natureza, coisas externas, independentes de nossos corpos. E o que aprendemos imediatamente é que nossos corpos são fortemente pressionados constante e permanentemente por várias necessidades, e que temos que agir de forma a satisfazê-las. O que o homem descobre imediatamente é que certas coisas ele pode controlar diretamente; isto é, todos nós podemos descobrir que podemos controlar diretamente nossos próprios corpos. Posso apenas dizer “Eu levanto meu braço” e meu braço é levantado, ou “Eu levanto minha perna” e minha perna vai subir. E percebemos que ninguém mais pode controlar meu corpo dessa forma.
Todo mundo pode fazer isso com seu próprio corpo, é claro, mas temos essa capacidade de controlar algo diretamente apenas com coisas muito limitadas. Não posso controlar você diretamente; eu só posso controlar você estando no controle direto de meu próprio corpo físico primeiro; então posso, é claro, fazer uma tentativa indireta de também controlá-lo. Isso explica por que temos o conceito de eu, de mim, porque certas coisas só eu posso fazer e isso me distingue desde o início de todos os outros. Isso é o que eu posso fazer e ninguém pode fazer isso com o meu braço da maneira que eu faço. Também podemos dizer que descobrimos então, imediatamente, o que entendemos por ter livre arbítrio. Eu posso apenas querer isso; eu simplesmente pego isso e pronto. Não há nada que me force; é apenas meu desejo, então isso o torna assim. E também desenvolvemos, imediatamente, algum tipo de ideia do que significa causar algo. Eu sou a causa desta garrafa de água estar em minha mão e sou a causa de agora beber dela. Reconhecemos nosso relacionamento único que temos com nosso próprio corpo físico e que outras pessoas têm com seus próprios corpos físicos. Sabemos que, por isso, eu não sou você e você não é eu. Entendemos o conceito de causa e entendemos o conceito de livre arbítrio. Então reconhecemos, em segundo lugar, que existem outras coisas lá fora que podemos controlar apenas indiretamente, com a ajuda daquelas coisas que podemos controlar diretamente. Com a ajuda de nosso corpo, podemos tentar controlar coisas que existem fora de nosso próprio corpo físico. Referimo-nos a essas coisas como meios.
E percebemos também que existem coisas que não podemos controlar de forma alguma. Não podemos controlar o sol ou a chuva; não podemos controlar o movimento da lua ou das estrelas. Aquelas coisas a que nos referimos como ambiente, que temos de considerar como um dado, como algo que está além do nosso controle. A fronteira entre as coisas que podemos controlar e as coisas que não podemos controlar, a fronteira, por assim dizer, entre aqueles que são meios e o que é o ambiente em que agimos, é móvel; isto é, certas coisas que inicialmente não eram controláveis podem estar ao nosso alcance e podem se tornar controláveis . Pense em algo simples como construir uma ferramenta, por exemplo, que possibilite que você alcance algo alto que você inicialmente não poderia, ou alcance alturas que inicialmente não poderia alcançar, ou profundidades que inicialmente não poderia alcançar. A fronteira entre a gama de objetos que se tornam meios e a gama de objetos que permanecem ambiente é móvel ou flexível. Pode muito bem ser o caso de que um dia, seremos capazes de mover a lua apenas balançando certos tipos de ferramentas ou instrumentos, mas atualmente não somos capazes de fazer isso.
Então, o homem aprende que alguns dos meios, algumas das coisas que ele pode controlar, que pode mover, que pode manipular, podem ser chamados de “bens” e outras podem ser chamados de “males”. Bens seriam obviamente aqueles meios adequados para satisfazer algumas necessidades que temos, e os males seriam objetos que podemos controlar, mas que teriam repercussões negativas sobre nós, que não satisfariam nenhuma necessidade, mas, ao contrário, pode nos prejudicar ou até mesmo nos matar.
Neste ponto, deixe-me ler para você a definição de bens. “Bens” são meios que podem ser controlados e que são adequados para a satisfação das necessidades ou fins humanos. Vou dar a você a definição que Carl Menger nos forneceu. Menger destacou que existem quatro requisitos para que os objetos se tornem bens para nós. O primeiro é a existência de uma necessidade humana. O segundo requisito são as propriedades que tornam a coisa capaz de ser trazida a uma conexão causal com a satisfação dessa necessidade. Ou seja, esse objeto deve ser capaz, por meio de realizarmos certas manipulações com ele, de fazer com que certas necessidades sejam satisfeitas ou pelo menos aliviadas. A terceira condição é que deve haver conhecimento humano sobre essa conexão, o que explica, é claro, por que é importante que as pessoas aprendam a distinguir entre os bens e os males. Assim, temos conhecimento humano sobre o objeto, nossa capacidade de controlá-lo e o poder causal desse objeto para levar a certos tipos de resultados satisfatórios. E o quarto fator é, como já indiquei, que devemos ter suficiente comando da coisa para direcioná-la à satisfação da necessidade. Nesse sentido, por exemplo, ainda que possamos considerar o sol como um bem ou a chuva como um bem, nenhum dos dois seria um bem econômico, pois não temos controle sobre os objetos que são capazes de produzir luz do sol ou chuva. Somente os objetos que podemos colocar sob nosso controle, e então levar a certos resultados, seriam chamados de bens econômicos. O homem então aprende que alguns bens são imediatamente úteis. Nós nos referimos a esses bens como bens de consumo. Eles podem ser apropriados e quase instantaneamente transformados em alguma forma de satisfação. E também aprendemos que a maioria das coisas, no entanto, são apenas indiretamente úteis. Elas exigem que devemos transformá-las de alguma forma, que as remodelemos de alguma forma, que as movamos ou realoquemos de alguma forma, usando nossa inteligência para nos levar à satisfação. E aqueles objetos para os quais temos que fazer algo inteligente com eles, antes que levem à satisfação, chamaríamos de bens de produção.
E o homem também reconhece – e isso me leva ao meu segundo ponto principal – além da linguagem, o conceito de propriedade. Já argumentei a respeito de nossos corpos físicos, onde é intuitivamente claro que as pessoas reconhecem que “este é o meu corpo, porque eu sou o único que pode fazer isso com ele e ninguém mais pode”. Tenho uma relação única com meu corpo, uma relação diferente de qualquer outra pessoa. Quando se trata agora de meios econômicos, surge uma ideia semelhante. Aquelas pessoas que se apropriam de certos objetos e os colocam sob seu controle a fim de satisfazer certos desejos, com isso também estabeleceram uma relação única com aquelas coisas das quais se apropriaram pela primeira vez, e consideram essas coisas também suas. Talvez não da mesma forma direta como com o meu corpo, mas como uma extensão do meu corpo. Afinal, usei meu corpo para me apropriar dessas coisas e, nesse sentido, também tenho uma relação única com esses objetos. Deixe-me ler para você, a esse respeito, uma citação de Herbert Spencer, que também explica a naturalidade da ideia de propriedade. Ele diz
que mesmo os animais inteligentes exibem um senso de propriedade, negando a crença proposta por alguns de que a propriedade individual não foi reconhecida pelo homem primitivo. Quando vemos a reivindicação de posse exclusiva entendida por um cão, de modo que ele luta em defesa das roupas de seu dono, se deixado a cargo delas, torna-se impossível supor que mesmo em seu estado mais baixo, os homens estivessem desprovidos dessas ideias e emoções, que principiam a propriedade privada. Tudo o que pode ser razoavelmente presumido é que essas ideias e sentimentos foram inicialmente menos desenvolvidos do que desde então.[4]
Enquanto nos estágios iniciais, é difícil, para não dizer impossível, estabelecer uma marca de reivindicações individuais para parte da área percorrida em busca de comida – e irei abordar esse assunto mais tarde em uma palestra futura – não é difícil delimitar as reivindicações de coisas móveis e habitações, e essas reivindicações costumam ser reconhecidas.
É perfeitamente claro que os objetos móveis, ferramentas e assim por diante que as pessoas têm foram sempre reconhecidos como sua propriedade privada nesses objetos. No mais primitivo dos homens, o conceito de propriedade privada existe, não apenas com respeito ao seu corpo físico, mas também com respeito aos meios de produção apropriados que indiretamente satisfaziam seus vários desejos.
Agora, deixe-me elaborar um pouco sobre esse conceito de propriedade, apresentando uma segunda pessoa, chame-a de Sexta-feira, e então, você se lembra, já estamos conversando, então temos que assumir que esse tipo de Sexta-feira existiu desde o primeiro início da humanidade. Com uma segunda pessoa presente, torna-se possível que surjam conflitos sobre bens escassos. Não é possível que surjam conflitos sobre coisas que estão em superabundância, ou que surjam conflitos em relação a eventos causados pelo meio ambiente. Não podemos influenciar o meio ambiente, e se houver superabundância de bens, então é possível que as pessoas tenham ideias diferentes sobre o que deve ou não ser feito com um bem, porque tudo o que eu faço não afeta o que outras pessoas podem fazer com o mesmo tipo de bem, porque ele simplesmente existe em superabundância.
Desde os estágios mais primitivos da humanidade, o que as pessoas reconhecem é como resolver esses possíveis conflitos em relação aos recursos escassos. Elas vão apontar que, “Olha, eu tenho uma conexão objetiva, perceptível, notória com tal e tal coisa, porque eu me apropriei dela, eu tenho controle sobre ela, eu usei para este tipo de propósito, e eu fiz tudo isso antes de você aparecer e querer fazer algo com o mesmo objeto. Portanto, minha reivindicação é mais bem justificada do que a sua. Na verdade, sua reivindicação não é justificada de forma alguma, porque você não pode apontar para qualquer ligação objetiva estabelecida entre seu corpo e um objeto particular, enquanto eu posso apontar para uma ligação particular visível, perceptível, intersubjetivamente determinável entre mim e um determinado objeto.”
Podemos reconhecer isso pelo fato de que as pessoas estão, novamente, desde os estágios mais primitivos, dispostas a defender esses objetos de invasões de outras pessoas. Se eu não estivesse disposto a defender algo, se eu não esboçasse a menor resistência a alguém pegar meu machado ou minha flecha, então indico, de certa forma, que não considero minha propriedade. Se eu mostrar a menor resistência, dizendo não ou empurrando minhas mãos na direção da pessoa que está tentando tirá-la de mim, isso indica claramente que me considero o dono e tenho um controle especial sobre essas coisas. Novamente, podemos ver isso se olharmos para as crianças pequenas. Se elas têm disputas sobre de quem é este brinquedo, a resposta típica das crianças é dizer: “Olha, eu já estou brincando com o carrinho e você não”. E se elas não demonstram absolutamente nenhuma resistência, então elas indicam que, por enquanto, elas o abandonaram e o colocaram à disposição de outros. Então, novamente, sentimentos muito primitivos. Nesse sentido, podemos provavelmente supor que o desenvolvimento das crianças, de certa forma, repete, em certa medida, o desenvolvimento da humanidade como um todo. O que encontramos nas crianças, também já encontramos no homem primitivo.
Agora chegamos à terceira capacidade única da humanidade, além da linguagem e do reconhecimento da propriedade. Ela é que o homem pode produzir coisas, que o homem é um produtor, que ele é capaz de desenvolver tecnologia. Você percebe que os animais vivem, por assim dizer, uma vida parasitária, no sentido de que eles nunca aumentam a dotação do mundo. Eles comem algo e, de certa forma, diminuem a quantidade de coisas que estão disponíveis na Terra, mas nunca acrescentam nada a ela.
A humanidade é única no sentido de que tem, em comparação com a maioria dos animais, uma carência distinta de órgãos especializados e de instintos, o que os torna basicamente incapazes de sobreviver, a menos que desenvolvam substitutos para essa falta de equipamento natural que eles possuem. Os homens não têm armas naturais com as quais se defender, ou nada do tipo. Praticamente não temos instintos que nos orientem automaticamente a fazer isso e aquilo e evitar isso e reconhecer os perigos sem ter que saber sobre eles. O que podemos dizer é que o homem precisa da cultura para sobreviver na natureza.
E as ferramentas, as ferramentas mais importantes que o homem possui, são, por um lado, suas mãos e, por outro lado, é claro, seu cérebro. Porém, nenhuma dessas ferramentas pode ser descrita como uma ferramenta altamente especializada. Elas são úteis para uma ampla variedade de propósitos, o que é uma vantagem, mas também é obviamente uma desvantagem para começar. Só temos que aprender o que podemos fazer com nossas mãos e não saber automaticamente o que nossas mãos podem fazer e temos que aprender o que nosso cérebro é capaz de fazer e não saber automaticamente, como a maioria dos animais, para que uso fazer de nosso cérebro. Os homens devem então transformar a natureza de forma inteligente, usando o cérebro e as mãos em particular. Existem certos padrões no desenvolvimento da tecnologia que podemos perceber se olharmos para o desenvolvimento da humanidade como um todo.
Aqui, sigo um sociólogo e antropólogo alemão, Arnold Gehlen, a quem recomendo bastante. Acho que um de seus livros também foi traduzido para o inglês. Se chama, simplesmente, Man, eu acho. Gehlen não tem uma reputação muito boa, porque tinha algum tipo de ligação com os nazistas. Mas isso não torna suas observações menos importantes. Por isso, ele ressalta que há tentativas durante o nosso desenvolvimento tecnológico para substituir a carência de órgãos que temos. Então, a tecnologia serve ao propósito de nos livrar de capacidades insuficientes e, então, tem a tendência de fortalecer nossas capacidades dadas pela natureza. Deixe-me ler uma citação dele (a citação está em alemão, então tenho que improvisar um pouco aqui, na tradução):
O homem é, em qualquer ambiente natural, incapaz de sobreviver e por isso precisa de cultura por falta de órgãos e instintos especializados. Sem um ambiente específico para sua espécie, no qual ele se encaixasse, sem comportamento inato intencional e padrões de comportamento por falta de órgãos e instintos específicos, com sentidos menos do que perfeitamente formados, sem armas, despidos em seu habitus embryonic, inseguro em seus instintos, ele deve confiar na ação e na transformação inteligente das circunstâncias que por acaso encontrar.
As mãos e os cérebros podem ser considerados órgãos especializados do homem, mas são especializados em um sentido diferente do dos órgãos animais. Eles podem ser usados para muitos propósitos. Eles são especializados para fins e realizações não especializados e são, por isso, adequados para as circunstâncias imprevisíveis que surgem no mundo. A cultura dos povos primitivos, portanto, consiste primeiro em suas armas, em suas ferramentas, em suas cabanas, em seus animais e jardins, tudo o que é mudado, transformado, cultivado, isto é, pela natureza recém-formada, por ação inteligente.[5]
As primeiras conquistas dos homens são substitutos de órgãos, armas, por exemplo. Além disso, o fogo, como uma forma de proteção natural e abrigo.
O segundo tipo de ferramentas que é desenvolvido é desenvolvido a fim de fortalecer habilidades naturalmente dadas, como usar pedras para fortalecer o poder que um punho tem, por exemplo, ou martelos como ferramentas que fortalecem poderes dados naturalmente, ou microscópios, como instrumentos que são mais desenvolvidos do que os órgãos humanos naturais, os olhos, ou telefones como instrumentos que fortalecem e superam as habilidades naturalmente dadas que temos através de nossos ouvidos. E então ele aponta que existem técnicas que aliviam os humanos, poupando-lhes trabalho. Por exemplo, uma carroça com rodas, que nos permite carregar pesos que não poderíamos carregar naturalmente, e instrumentos que até combinam todas essas coisas, ou seja, eles são em certo sentido substitutos de coisas que faltam, em alguns aspectos ultrapassando as habilidades naturais e em certo sentido nos aliviando, poupando-nos trabalho que de outra forma seria necessário, por exemplo, um avião. Um avião nos permite voar, o que não podemos fazer sem ajuda. Supera todas as capacidades naturais que existem a este respeito, e afasta completamente o trabalho na medida em que nos transporta, sem nenhum esforço de nossa parte, de um lugar para outro.
E Gehlen também aponta que existe na história do desenvolvimento tecnológico outra tendência que podemos reconhecer, que é uma substituição gradual de materiais e forças inorgânicas por materiais e forças orgânicas. Inicialmente, usamos pedra, madeira e osso. A Idade da Pedra termina há cerca de 8.000 anos e, no estágio seguinte, já criamos algum tipo de material artificial, bronze de cobre e estanho, que começa por volta de 4.000 aC, ou no continente norte-americano, há apenas cerca de 1.000 anos. E então o próximo material, novamente, já mais distante dos materiais dados pela natureza, seria o ferro, que entra em uso por volta de 1.200 aC, aproximadamente, e então, é claro, finalmente, o aço, que é um desenvolvimento de nosso passado relativamente recente. Em vez de materiais orgânicos, usamos cada vez mais cimento, metais e carvão. Todas essas coisas substituem a madeira como material para queimar. Usamos cordas de aço para substituir as cordas de couro e cânhamo. Usamos cores sintéticas em vez de materiais de coloração naturais. Cada vez mais usamos medicamentos sintéticos em vez de ervas naturais e assim por diante, e nos tornamos sucessivamente independentes das fontes naturais de energia.
Por muito tempo, a humanidade dependeu de suas fontes de energia naturalmente disponíveis, das florestas crescendo novamente. E a velocidade natural do crescimento das árvores limita a velocidade de desenvolvimento que a humanidade pode realizar. Eles também eram dependentes de forças físicas naturais, como a força de cavalos e bois e coisas assim, que também não podiam ser aumentadas ou fortalecidas deliberadamente. E no desenvolvimento da tecnologia, gradualmente, nos livramos dessas limitações usando primeiro carvão e petróleo e depois também energia hídrica e, claro, finalmente, forças atômicas, que nos tornam essencialmente independentes do crescimento de materiais naturais.
Para concluir, deixe-me citar novamente Gehlen, que vê uma lógica no desenvolvimento da tecnologia humana, uma lógica que só podemos ver se olharmos para trás a partir do presente. No passado, não teríamos sido capazes, provavelmente no início da humanidade, de prever que essas seriam as etapas pelas quais o desenvolvimento tecnológico passaria, mas olhando para trás, podemos de alguma forma entender que havia uma certa lógica inerente em ação. Ele diz,
Este processo de desenvolvimento tecnológico possui três etapas. No primeiro estágio, o da ferramenta, a força necessária para o trabalho e o esforço mental necessário, ainda tem que ser feito pelo próprio sujeito humano. As ferramentas de alguma forma facilitam para nós, fortalecem nossas forças, nos dão mais força do que normalmente temos e reduzem de alguma forma o esforço mental que é necessário, que temos que realizar na realização de certas tarefas. E no segundo estágio da máquina, máquina a vapor e carros e assim por diante, a força física já está tecnicamente objetivada; isso significa que não precisamos mais de força de nossa parte; toda a força é gerada pelas máquinas. E, finalmente, no terceiro estágio do desenvolvimento tecnológico, que é o do autômato, até o esforço mental que o sujeito teve que apresentar nos estágios anteriores torna-se desnecessário ou de menor importância. E com cada uma dessas três etapas, o instrumento, a ferramenta, a máquina e, finalmente, o autômato, a objetivação do cumprimento dos propósitos da tecnologia se aproxima de seu propósito final, e no autômato, é finalmente alcançado porque podemos fazer coisas sem nossa contribuição física ou mental.[6]
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Notas
[1] Brand Blanshard, Reason and Analysis (1962; Abingdon, UK: Routledge, 2013), cap. 2, pág. 51
[2] Ibid.
[3] Ibid.
[4] Herbert Spencer, Principles of Sociology, 2ª ed. (Nova York: D. Appleton Co., 1916), vol. 2, pág. 538.
[5] Citado de Arnold Gehlen, Anthropologische Forschung (Hamburg: Rowohlt, 1965), pp. 94-95.
[6] Ibid.