Um palimpsesto (do grego palimpsestos, os, on e do latim palimpsestus, i) é um pergaminho ou papiro cujo manuscrito original tenha sido lavado ou raspado com pedra- pomes para ser substituído por um novo texto. Ao pé da letra significa “riscar de novo”. De um lado, os palimpsestos tinham o objetivo de tentar paliar ou amenizar erros cometidos, mas também eram utilizados para escrever novos textos, já que os custos do papiro eram elevados naquela época.
Talvez o mais famoso dos palimpsestos seja o palimpsesto de Arquimedes (287 a.C — 212 a.C), um texto escrito sobre outro anterior em pergaminho e formando um códice e que originariamente foi uma cópia em grego de diversas obras de Arquimedes — o famoso matemático, físico e engenheiro de Siracusa — e de outros autores. Posteriormente foi apagado de forma rudimentar e usado para escrever salmos e orações em um convento.
Mas vamos escrever agora sobre outro palimpsesto, bem mais moderno, que podemos chamar de palimpsesto de Keynes. Neste café requentado, com gosto de terra, economistas, jornalistas e pretensos “intelectuais” nada mais fazem do que tentar, sem sucesso, apagar as velhas teses de que o estado deve ser o “indutor” do crescimento para em seguida reescrevê-las. Há incontáveis exemplos desse tipo de pretensão fatal para as liberdades individuais. Citarei apenas um, para não me estender muito. Quanto aos demais, pretendo apresentá-los em artigo acadêmico para a Revista MISES, mais especificamente sobre a crise econômica atual e o êxito dos economistas da Escola Austríaca em antecipá-la, explicar suas causas e propor os remédios adequados, em contraposição ao fracasso das palimpsésticas tentativas keynesianas e monetaristas no que diz respeito à antecipação, à explicação, à identificação das causas e à administração de “remédios”, que só têm feito piorar o estado do doente.
O exemplo que escolhi dentre tantos outros é o da Professora Mariana Mazzucato, britânica de origem italiana, economista da Universidade de Sussex, com doutorado na New School de Nova York, uma universidade de Economia e Ciências Sociais com viés claramente intervencionista e de esquerda. Entrevistada no programa “Milênio” da Globonews, parece cantar um hino — ou, melhor dizendo, um funk de péssimo gosto — ao estatismo.
Ela defende a tese de que o estado deve ser o maior responsável pelas pesquisas inovadoras nas áreas fundamentais da ciência e tecnologia, e separa o que chama de invenções “ligeiras” (naturalmente, as produzidas pelo setor privado), como novos modelos de tablets, e inovações “grandes”, de horizontes mais amplos, como as da área da saúde e mecanismos de “ciclo completo”, como a Internet.
Ela diz que as grandes inovações produzidas nos EUA foram todas financiadas pelo estado, como a Internet, o GPS (pelo Pentágono) e medicamentos (pelo Departamento de Saúde). E ainda elogiou o estado brasileiro e o BNDES, referindo-se obviamente à Finep. Chegou a afirmar que o setor privado tem “medo” de assumir riscos, o que não acontece com o estado. Ao que tudo indica, essa senhora vê o mundo de cabeça para baixo, ou olha para trás pensando que está olhando para adiante. As teses que defende parecem um palimpsesto lavado ou raspado sem cuidado, ou ambas as coisas. Vejamos por quê.
A Internet, ou melhor, sua tataravó, foi de fato concebida em plena Guerra Fria por técnicos da NASA, mediante o ARPA (Advanced Research Projects Agency), mas só se expandiu e progrediu com o desenvolvimento da rede em ambiente mais livre, não militar — ou seja, privado —, em que não apenas os pesquisadores, mas também seus alunos e os amigos desses alunos, puderam ter acesso aos estudos já empreendidos e usaram sua inteligência e desenvolveram esforços para aperfeiçoá-los de uma forma fantástica.
O mesmo processo se deu com a Internet propriamente dita: foram jovens da chamada “contracultura” — e não funcionários do estado —, ideologicamente defensores da difusão livre de informações, que realmente contribuíram decisivamente para a formação da Internet como hoje é conhecida.
Masaru Ibuka, um engenheiro, e Akio Morita, um físico, ambos japoneses, logo após a II Guerra Mundial, procuraram o Ministério da Indústria e Comércio do Japão em busca de recursos para desenvolverem suas ideias. Receberam um sonoro “não”! Resolveram, então, fundar a empresa Totsuko, em maio de 1946, em um grande armazém bombardeado pelos americanos, em Tóquio. A nova empresa não tinha qualquer maquinaria e possuía muito pouco equipamento científico e contava apenas com a inteligência, conhecimentos de engenharia e o espírito empreendedor de Ibuka e Morita. Trata-se, como o leitor já deve ter percebido, simplesmente, da Sony.
Como você poderá ver aqui e também aqui, graças ao espírito verdadeiramente empreendedor desses dois fantásticos homens, a Sony cresceu e hoje seu nome está associado a inovação, tecnologia avançada, qualidade e durabilidade. Ver televisão em uma Bravia, trabalhar em um laptop Vaio, tirar fotos com uma Cybershot, jogarPlaystation, gravar com uma Handycam, ouvir música em um Walkman… Essas são apenas algumas das “crias” tecnológicas de dois indivíduos, graças ao “não” recebido dos burocratas japoneses. Perguntemos à Professora Mazzucato se eles eram funcionários púbicos.
E o que dizer de Steve Jobs, cofundador, presidente e Diretor Executivo da Apple Inc. e que revolucionou seis indústrias: computadores pessoais, filmes de animação, música, telefones, tablets e publicação digital? Era por acaso funcionário público? E Bill Gates e Paul Allen, criadores da Microsoft em 1975, em Albuquerque, no Novo México? Eram burocratas iluminados ou empreendedores que acreditaram em suas ideias e assumiram os riscos de colocá-las em prática?
Mais exemplos: Jorge Paulo Lehmann é um burocrata? E Alexandre Tadeu da Costa, fundador da Cacau Show? E Antônio Alberto Saraiva, criador da Habib´s? E Romero Rodrigues, da Buscapé Company? E Robinson Chiba, daChina in Box? E Flavio Augusto da Silva, que com apenas 23 anos decidiu lançar um projeto inovador com o objetivo de, em 18 meses, dar fluência na língua inglesa a adultos, e que, para fundar sua empresa, a Wise Up, usou R$ 20 mil de seu cheque especial, com juros de 12% ao mês? Qual o papel exercido pelo estado em todos esses casos, a não ser o de recolher tributos para benefício próprio?
Quanto ao GPS — e poucos sabem disso — foi uma ideia de uma estrela de Hollywood, a belíssima Hedy Lamarr, nome artístico de Hedwig Eva Maria Kiesler (1913-2000), nascida em Viena, estrela sexy de filmes como Idílio Perigoso (1944), Sansão e Dalila (1949), O Vale da ambição (1950) Meu Espião Favorito (1951), e A História da Humanidade (1957), entre muitos outros. Hedy criou a tecnologia básica para o Sistema de Posicionamento Global (GPS, na sigla em inglês) durante a II Guerra Mundial. Judaica de origem e horrorizada com o avanço nazista, queria ajudar os EUA e os aliados. Havia aprendido sobre radiocomunicação graças à convivência, ainda na Áustria, com o ex-marido, Fritz Mandl, um rico fabricante de armas e seus colegas engenheiros. E sua contribuição científica aconteceu quando já havia se divorciado de Mandl e fugido para os EUA.
Além do GPS, Hedy inventou também uma coleira fluorescente para cachorros e um aparelho de banho para deficientes. Mas, naquela época, ninguém levou seus dotes científicos, que eram admiráveis, a sério, preferindo admirar seus dotes físicos (também admiráveis), a ponto dela ter dito: “Meu rosto foi minha ruína”. Hedy foi uma burocrata ou economista de esquerda, Professora Mazzucato?
Conforme relatado aqui, a famosa atriz inspirou-se no som do piano para bolar sua maior invenção: em 1940, conheceu o compositor George Antheil, também curioso por ciência. Certa noite, quando tocavam piano, ela se deu conta de que cada tecla emitia uma frequência de longo alcance diferente. E, assim como elas se alternavam rapidamente em uma música, talvez algo parecido pudesse ser aplicado aos espectros de comunicação militar. Aprimorada por Antheil, a análise de Lamarr originou o sistema “salto de frequência”, no qual estações de radiocomunicação eram programadas para mudar de sinal 88 vezes seguidas (o mesmo total de teclas de um piano). Com isso, as forças inimigas teriam dificuldade em detectar esse registro alternado, que poderia ser então usado por navios e aviões, para orientar torpedos.
A dupla chegou a patentear a ideia e a ofereceu à Marinha dos EUA, mas foi rejeitada, sob o argumento de que seria demasiadamente cara (existe algo “caro” para governos)? A invenção perdeu — felizmente — exclusividade militar e se tornou a base de várias tecnologias atuais. Ela é aplicada, por exemplo, em satélites de orientação para meios de transporte civis — o famoso GPS (Global Position System) e também no wi-fi e no bluetooth.
Quanto ao BNDES e à Finep, é desnecessário comentarmos o que todos os brasileiros (e estrangeiros) com um mínimo de bom senso já sabem: que se trata de um órgão extremamente custoso para os pagadores de tributos e mero distribuidor de benesses para pseudo-empreendedores, aqueles que têm bons amigos em Brasília, ou que são amigos do rei ou rainha de plantão no Planalto. Ou que contratem bons lobistas.
Na página da University of Sussex há diversos vídeos com palimpsestos da professora Mazzucato, quase todos versando sobre o tema do “Estado empreendedor”, que nós austríacos sabemos ser um fenômeno tão contraditório quanto o “molhado seco”. Um desses vídeos tem o título de “The Entrepreneurial State: Debunking public vs. private sector myths”. E há um comentário do Professor Robert Wade, da London School of Economics, sobre o novo livro de Mazuccato, “The Entrepreneurial State”, lançado em junho deste ano, que me causou arrepios, a ponto de não conseguir relê-lo:
O livro Entrepreneurial State fornece um desmonte bem pesquisado e elegantemente escrito (até mesmo divertido) à crença que perpassa quase todo o espectro político, bem como a profissão econômica, de que “o mercado sabe melhor”. Dado que vários governos da atualidade estão às voltas com a questão de como estimular a produtividade e a inovação de seus setores industriais, o livro fornece diretivas — baseadas em casos exitosos e nem tão exitosos — de como fazer uma boa política industrial. Acima de tudo, mostra por que a comum pressuposição de que o estado ‘sobrepuja’ o setor privado — como se o setor privado fosse um leão enjaulado por um estado sufocante — é contraditada pela realidade de que governos de economias que vão dos EUA ao Brasil e China de fato ‘trazem’ inovações para o setor privado.
Creio que basta uma interjeição — que nada tem de científica, que não está nos dicionários, mas que todos entenderão — para descrever esse palavrório palimpséstico: argh!
É curioso lembrarmos que esses economistas que se autodenominam como “desenvolvimentistas” são de duas espécies: os ignorantes, que não conseguem interpretar corretamente o passado, e os “não-ignorantes mal intencionados”, que até enxergam o passado, mas o interpretam ao sabor e com as tintas da ideologia.
Dei o exemplo da economista britânica para ressaltar, primeiro, como os palimpsestos, que remontam ao século V a.C, continuam sendo usados. Simplesmente, tentam apagar os erros do passado — como no caso da defesa do “capitalismo de Estado” —, para reescrevê-los. Francamente, se isso é “desenvolvimentismo”, então borboletas são mamíferos…
E, segundo, para lembrar como nossa mídia valoriza esses garranchos, piores dos que sou obrigado a ler quando corrijo provas de certos alunos da UERJ.
Não existe “capitalismo de estado”, não existe “estado empreendedor”, não existe “função social do estado”, não existe “investimentos socialmente úteis”! Existe apenas intervencionismo. E seu oposto, que é a liberdade. Quando será que vão entender isso?
Uma boa leitura, escrita de forma simples, mas bastante esclarecedora é o livro de Adriano Gianturco Gulisano, “L’Imprenditorialità di Israel Kirzner — L’Etica della Proprietà e la Moralità Del Profitto nel Libero Mercato Imperfetto“, editado neste ano por Rubettino, na Itália. É uma boa vacina contra os palimpsestos dos “desenvolvimentistas do estado-empreendedor”.
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